CRISE DA DEMOCRACIA, CRISE DA POLÍTICA, CRISE DA ECONOMIA: O OLHAR DE ALGUNS ANALISTAS NÃO NEOLIBERAIS – 4. A CONFUSÃO NÃO É RESPOSTA À ORTODOXIA ECONÓMICA. O DEBATE SOBRE A MODERAÇÃO SALARIAL ALEMÃ – 2ª PARTE, por HEINER FLASSBECK e COSTAS LAPAVITSAS

Selecção de Júlio Marques Mota. Apresentação e tradução de Francisco Tavares.

A confusão não é resposta à ortodoxia económica. O debate sobre a moderação salarial alemã- 2ª Parte

Por Heiner Flassbeck and Costas Lapavitsas, Confusion is no response to economic orthodoxy. The German wage moderation discussion.

Flassbeck economics, 23 de Fevereiro de 2016 

Heiner Flassbeck Countries and RegionsEconomic PolicyEconomic TheoryEuropeGeneral Politics

(continuação)

3. “Enfraquecer economicamente o teu vizinho” através “do enfraquecimento do teu próprio povo”

A única questão analítica real a este respeito é: como foi possível a restrição salarial tornar-se um instrumento tão poderoso da dominação da UEM pela Alemanha? O elemento que deve ser tido em conta é que analisar o impacto da restrição salarial no desempenho exportador de um país é completamente diferente da análise do seu impacto na economia doméstica. Deste ponto de vista, não há dúvida que um país grande com intensas relações comerciais pode ter a capacidade de “prejudicar” os seus vizinhos através de uma depreciação real.

Storm (2016c) parece aceitar este ponto mas atribui-o ao desempenho excelente da produtividade alemã ao invés da restrição salarial nominal. Concretamente:

“É, no entanto, verdade que os custos unitários laborais alemães decaíram relativamente aos do resto da Eurozona … mas isto não foi o resultado da restrição salarial: foi totalmente devido ao impressionante desempenho da produtividade alemã.”

Esta afirmação não faz sentido uma vez que os dois elementos que formam o custo unitário laboral, ou seja, os salários nominais e a produtividade, não podem ser separados na forma sugerida por Storm. Numa união monetária os países com um elevado desempenho da produtividade têm de permitir um crescimento mais elevado dos salários por forma a igualar o crescimento do custo unitário do trabalho, tornando assim sustentável a união na ausência de alterações às taxas de câmbio.

Todavia, mesmo deixando de lado o argumento teórico, a ênfase de Storm no suposto superior desempenho da produtividade alemã é errada em termos factuais. O Quadro 2 mostra que, mesmo considerando a medida de produtividade preferida por Storm, em termos de produto por hora de trabalho, não houve nada de “impressionante” no desempenho alemão em geral. A comparação decisiva a este respeito, não obstante, é a França, um outro país fulcral da UEM, que tem sido de longe mais disciplinado do que a Alemanha no cumprimento da meta de inflação do BCE. O Quadro 3 mostra que a produtividade do trabalho francesa é mais elevada do que a alemã em termos absolutos, e a evolução da produtividade em França e na Alemanha tem sido muito similar desde 1999.

Quadro 2 Índice de Produtividade

Quadro 3 Produtividade na Alemanha e em França

Não houve, de modo algum, nenhum “milagre de produtividade” alemão que possa explicar o triunfo exportador da Alemanha e o seu domínio da Eurozona. O verdadeiro segredo do sucesso alemão é a elevadíssima restrição salarial, através da qual a Alemanha garantiu uma vantagem absoluta competitiva que acumulou ao longo do tempo. Quanto maior a vantagem absoluta, maior o ganho de quota de mercado da Alemanha na economia mundial. O estupendo aumento da quota das exportações alemãs no PIB e o seu crescente excedente de exportação refletem uma explosão de competitividade sem precedentes e irrepetível através da restrição salarial.

Em resumo, a Alemanha de facto “enfraqueceu” os seus vizinhos, essencialmente privando-os de quotas de mercado significativas no comércio regional e mundial. Esta mudança de rumo dos acontecimentos tornou-se possível, em primeiro lugar, porque os trabalhadores alemães foram eles próprios “enfraquecidos”, permitindo que os ganhos de produtividade fossem inteiramente para os detentores do capital e, em segundo lugar, porque os parceiros de comércio da Alemanha aceitaram esta forma de imperialismo económico e não empreenderam ações de retaliação [1].

Contra esta conclusão, Storm (2016c) utilizou depois o argumento de que os dados empíricos mostram que as elasticidades preço das exportações alemãs são pequenas. A consequência é que o sucesso das exportações alemãs teria sido presumivelmente determinado por outros fatores que não os ganhos de competitividade de preços resultantes da restrição salarial. De novo, Storm falhou o alvo. Se, na verdade, as empresas exportadoras alemãs tivessem a capacidade de fazer refletir custos unitários de trabalho mais baixos em preços de exportação mais baixos mas as elasticidades preço das exportações alemãs fossem baixas, o único resultado seria retardar o efeito negativo nos parceiros comerciais. Dito de outro modo, o receio de dumping salarial poderia ser rapidamente sentido pelos parceiros comerciais se as elasticidades fossem altas, ou poderia ser retardado durante um longo período se as elasticidades fossem baixas – no pressuposto de que entretanto não fosse empreendida nenhuma ação oposta. Contudo, no longo prazo as elasticidades não fariam qualquer diferença: os parceiros comerciais teriam de se ajustar à perda de competitividade.

Além disso, um simples teste mental apoiaria este ponto de vista. Suponhamos que, durante um período, as empresas alemãs não conseguiriam refletir os custos unitários de trabalho mais baixos nos preços de exportação. Nesse caso não haveria nada para medir em termos de elasticidades. Ainda assim as margens de lucro das empresas exportadoras alemãs seriam consistentemente mais elevadas do que as dos seus concorrentes, tornando assim possível ser bem sucedido nos mercados de exportação através de técnicas e medidas que não os preços.

O efeito mais importante da desvalorização real é a criação de novas oportunidades para os agentes económicos. Se a variação da taxa de câmbio real se dá num país com uma estrutura produtiva diversificada e relações comerciais implantadas, as suas empresas e trabalhadores qualificados agarrariam rapidamente a oportunidade apresentada por preços de exportação significativamente mais baixos que ocorressem de um dia para outro; de maneira equivalente, agarrariam a oportunidade de obter grandes lucros adicionais se se mantivessem os preços.

Se os resultados das oportunidades criadas por uma desvalorização real aparecem nas estatísticas do PIB do presente ano ou no desempenho das exportações do ano seguinte é uma questão que permanece em aberto. Se, por exemplo, os lucros adicionais foram utilizados para melhorar a qualidade do produto – uma estratégia que os fabricantes de automóveis alemães utilizaram com bons resultados a seguir à depreciação real dentro da UEM – o efeito benéfico poderia ser de longo prazo, mesmo se as elasticidades de curto prazo parecessem modestas. O ganho continuaria a beneficiar a Alemanha.

Contudo, os ganhos não beneficiaram os trabalhadores alemães, ou o povo alemão em geral. A estratégia da restrição salarial foi originalmente destinada a estimular o emprego pela alteração dos preços relativos dos fatores bem como pela reestruturação da produção na direção de processos trabalho intensivos. Esta estratégia não foi bem sucedida porque – contrariamente ao pensamento neoclássico que a apoiava – um abrandamento do crescimento dos salários seria seguido, inevitavelmente, por uma queda da procura doméstica [2].

Concretamente, a restrição salarial reduziria imediatamente a procura agregada dos agregados familiares dos trabalhadores; como a procura agregada dos assalariados cairia, as empresas ficariam relutantes em investir, mesmo se novos investimentos fossem absolutamente necessários para reestruturar a produção à luz dos novos preços relativos do trabalho e do capital; pior ainda, com a procura em queda e o declínio da utilização da capacidade do stock de capital existente, o investimento em capital fixo tenderia também a cair, enfraquecendo assim a procura doméstica posteriormente. O resultado final seria, tipicamente, uma subida, e não uma queda, do desemprego.

Isto é precisamente o que aconteceu na Grécia, em Portugal e em Espanha quando os programas de resgate da troika forçaram cortes nos salários. A pressão sobre os salários nominais começou em 2008, com o salário real por hora a cair em termos absolutos de 2010 em diante. Após 2010, e dada a redução absoluta dos salários reais, o desemprego continuou a subir quase ao mesmo ritmo que durante a crise mundial. Isto poderia ter sido somente o resultado da contração imediata do agregado da procura que se seguiu ao declínio dos salários reais. Em vez de se formarem preços para regressarem ao mercado, os trabalhadores encontraram-se numa situação de desemprego uma vez que já não podiam comprar os produtos que produziam.

Um processo similar aconteceu na Alemanha à medida que a procura doméstica permaneceu estagnada durante vários anos refletindo a estagnação dos salários reais. Todavia, a graça salvadora para a Alemanha foi o seu extraordinário sucesso no comércio internacional, que assegurou o emprego apesar da fraqueza da procura doméstica. A política fracassou, mas a Alemanha foi salva “enfraquecendo” os seus vizinhos e exportando o seu próprio desemprego.

(continua)

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[1] N.A. O mecanismo básico estava já explicado no famoso capítulo 19 de Keynes, 1936.

[2] N.A. Para mais análise sobre este ponto ver, UNCTAD, TDR 2012, e Flassbeck, 2013.

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Poderão ler o original clicando em:

http://www.flassbeck-economics.com/confusion-is-no-response-to-economic-orthodoxy/

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Para ler a Parte I deste trabalho de Heiner Flassbeck e Costas Lapavitsas, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, clique em:

CRISE DA DEMOCRACIA, CRISE DA POLÍTICA, CRISE DA ECONOMIA: O OLHAR DE ALGUNS ANALISTAS NÃO NEOLIBERAIS – 4. A CONFUSÃO NÃO É RESPOSTA À ORTODOXIA ECONÓMICA. O DEBATE SOBRE A MODERAÇÃO SALARIAL ALEMÃ – 1ª PARTE, por HEINER FLASSBECK e COSTAS LAPAVITSAS

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