Que fazer: escolher Macron, escolher Martine Le Pen ou escolher não escolher? por Júlio Marques Mota – Introdução

Em torno da segunda volta das eleições em França, uma série de textos intitulada Que fazer: escolher Macron, escolher Martine Le Pen ou escolher não escolher?

Dedico esta série de textos à minha antiga aluna M. Abreu  e às vítimas da globalização feliz que irá continuar a ser praticada.

Nota introdutória[1]

Houve eleições em França. Os resultados são de todos conhecidos. Nesse domingo de Abril que não é de modo nenhum um Abril de portas mil, fui como tomar uma bica no meu café habitual, a Pastelaria Vénus. Estava bom tempo, tomei café na esplanada. Passa por mim, uma antiga aluna minha, de nome M. Abreu. Muito delicadamente, pergunta-me se estou muito preocupado com o que se irá passar em França. Sorri e convidei‑a a sentar-se, o que fez e agradeceu. Uma daquelas mulheres com quem dá mesmo muito gosto falar.

Perguntei-lhe: Preocupada, porquê?

Bem…porque, ao que se diz, a Marine Le Pen irá ganhar. Ora, não o vejo a ficar agradado com essa hipótese, respondeu.

Sorri, olhei-a de frente e, calmamente, disse-lhe: dê-me, minha querida amiga, uma razão que seja, pela positiva, para que eu deseje que ganhe o candidato Macron.

Bem, Macron é um democrata, Le Pen não é uma democrata, é uma fascista. Olhe a questão dos migrantes, diz-me ela com uma certa tremura na voz.

Retorqui: Sabe, tinha que me mostrar que Macron é verdadeiramente um democrata. Quem é Macron, que ideias defende para o desenvolvimento da França, que ideias defende ele para o desenvolvimento da França, e a si, que é profundamente católica, que ideia tem ele do trabalho, de quem trabalha, de quem ganha salários de miséria? Ele, que visão tem de tudo isto? Quanto ao trabalho, digo-lhe que o que ele pensa está escrito na lei Macron e na lei laboral dita El Khomri[2]. Está igualmente exposta na lei Jobs Act de Itália, está também inscrita nos programas de austeridade impostos à Grécia, a Portugal e a outros. Está igualmente inscrita na perseguição aos direitos dos precários e dos desempregados. Deste modo, podemos bem dizer que o programa de Macron é o programa da União Europeia, é o programa da austeridade que está a destruir a nossa Europa, aquela Europa que a M. Abreu tem na alma e eu no coração. É também o programa da senhora Merkel, a quem já prestou vassalagem. E partilha com ela a mesma visão de Estado e de futuro, o da Europa a duas velocidades, em que a França e a Alemanha têm de decidir, e os outros…têm que obedecer. Pergunte ao grupo de países dito de Visegrado, o que pensam sobre tudo isto, dado que, sobre a Europa a duas velocidades, toda a imprensa ocidental se calou… Por outras palavras, estamos a falar de simulacro de democracia, ou antes, de Democracia amordaçada, capturada.

Mas, já agora, que visão da Democracia é esta em que foram feitas concessões excecionais à Inglaterra violando os tratados, exatamente a desfavor dos migrantes, sejam eles externos à União Europeia ou sejam eles pertencentes ao espaço Schengen? Falando ainda de emigração, que raio de visão de Democracia se tem na Europa para que, num contexto de centenas de milhares de migrantes a vaguearem pela Europa, não se alterou o Acordo de Dublin que afeta brutalmente os países do Sul da Europa em graves dificuldades com as finanças públicas e com os altos níveis de desemprego enquanto poupa financeiramente, e pela razão inversa, os países do Norte, países estes depois disponíveis para uma migração seletiva. Mas depois, só depois, percebe? Citando de memória, um deputado da extrema-direita francesa dizia uma coisa bem significativa: os países do Norte querem ficar com os sírios e mandarem-nos os árabes[3]! Mais ainda, que raio de visão da Europa é esta que se ofereceu a Cameron, do ponto de vista dos direitos sociais, o direito de discriminar os ingleses da restante população, cidadãos da zona euro ou externos a ela, violando-se assim as leis europeias? Mais ainda, que raio de visão da Europa é esta que se paga aos turcos para fazerem o trabalho sujo contra estes mesmos migrantes? Sabe, do ponto de vista da Democracia, a Turquia fica muito longe… muito longe, não é verdade?

Mas, já agora, tomemos um exemplo nosso, muito simples. Há dias publiquei um artigo sobre a minha e a sua Faculdade de Economia, onde sem nenhuma ponta de vergonha se contratam pessoas, doutorados, por manifestação de interesses, ou seja, em que cada doutorado que concorre para ocupar um cargo escreve a dizer que está interessado em trabalhar nas condições que lhe são oferecidas e estas condições são pura e simplesmente degradantes —em média, e por decisão do Magnífico Reitor, paga-se a um doutorado o mesmo que se paga a uma empregada doméstica, vulgarmente referida como mulher-a-dias, e num contrato que não lhes dá nenhuma garantia substantiva—. Esta é a política para o ensino vinda de Bruxelas, tutelada pelo Eurogrupo, pelo BCE, pela Comissão Europeia. Acha que assim se pode alguma vez fazer ensino de qualidade? Doutorados remunerados ao nível da empregada doméstica e com os professores mais preocupados com o seu «rating», dado o medo de caírem no desemprego por insuficiente classificação, é esta a paisagem universitária em Portugal. Acha que se vai assim a algum lado, quando se destrói a massa cinzenta que seria o suporte do futuro do país[4]?

Repare, com Macron tenho uma certeza, esta Europa irá continuar a degradar-se e aí, minha amiga, tenho medo no final da explosão de todo um continente. O cinismo é total: se a política europeia aplicada como modelo único a toda a gente está correta, porque é que afinal cada vez que há eleições num país da zona euro se tem medo, muito medo mesmo, da zona euro rebentar? E veja todo o discurso que se vai implantar, o do voto útil. Mas já reparou no paradoxo de tudo isto: as eleições não são a expressão do que os eleitores querem, são, pelo contrário, a expressão do que eles não querem. Promove-se pois o ódio, a diabolização[5] do adversário para que, por exemplo, se vote em X contra Y, não porque se gosta de X, mas porque se não gosta de Y. Acha que isso é democracia? Sem ódios, prefiro antes a visão de Orwell que não é nada a mesma coisa do que atrás descrevo quando nos diz “É necessário parar de acreditar que a política é a escolha entre o bem e o mal, isto é uma crença digna de um jardim infantil, ela é sempre a escolha entre o menor dos males. ” E é aqui e desta forma que a questão da opção Macron—Le Pen se deve colocar. Mas explicar qual é o menor dos males está então a perspetivar que sociedade é que quer, que sociedade é que deseja para futuro dos nossos filhos e netos. Concorda comigo?

Calo-me, olho a minha amiga que está profundamente silenciosa. Olho‑a e sinto-lhe os olhos húmidos, como se, à imagem de Maria, chorasse pelo mundo, pelas nossas dores, pelas nossas angústias. Reduzo o meu angulo de visão esperando dos seus lábios a resposta que lhe pedi, e vejo-a a sussurrar e tão baixinho, tão baixinho que só Deus a poderia ouvir. Sente-me na expectativa de uma resposta sua, olha-me e diz-me: Já lhe respondo, estou a rezar por tudo o que ouvi.

Agradeci-lhe pela seriedade posta naquele seu ato de rezar por este nosso mundo tão mal tratado. Não podia ser de outra maneira, tal o sentimento de fraternidade que transparecia daquela concentração daquela cara, tal a ternura que se sentia nestas suas palavras. Esperei, portanto.

Diz-me, segundos depois: Sabe sempre bem conversar consigo. Fica-se é com dúvidas que não tínhamos e perdem-se algumas das nossas certezas mais queridas. Desculpe o meu silêncio, mas quando a realidade me agride tanto, sinto-me na necessidade de rezar. Dá-me sentido, dá-me força.

Pois é, mas vocês, católicos, têm uma boa almofada na vida, Deus, que tem a dimensão de todas as nossas dores, mas eu não O tenho. Tenho que arranjar na força da lógica e da ética para comigo e para com os outros a força da vida e isto, por vezes, é muito difícil.

Levantamo-nos, despedimo-nos, com uma pergunta e uma resposta: Vai a Fátima? Claro que vou. Sorri-lhe e rematei: vai ver o único líder mundial digno de crédito, digno de muito respeito.

Foi assim a minha manhã. À tarde, a cinco minutos depois do fecho das urnas, telefona-me um amigo meu, alguém que tomo como meu irmão, perguntando-me, se eu estivesse em França, em quem votaria na segunda volta, Em ninguém, gritei alto. E fui duro: não se combatem as Marine Le Pen com as políticas seguidas por François Hollande, Manuel Valls e Macron, e este é o vosso erro. E todos corremos o risco de pagar bem caro esse erro.

Lembrei-me então. Não nos podemos esquecer do que nos dizem Michel Onfray, Balibar, Christophe Guilluy, Gerard Bua, Jacques Le Goff e muitos outros. Diz-nos Michel Onfray:

«Tudo porque o que tornou possível a família Le Pen, desde há um quarto de século que dura esta saga não foi nem atacada nem combatida. Pelo contrário: o que gerou o seu sucesso tem sido mesmo amplificado com as políticas de austeridade e de precariedade impostas na Europa. Não se combate a irresistível ascensão de Marine Le Pen pela diabolização, mas pela drenagem dos pântanos em que se alimentam as suas ambições políticas. Neste caso, com uma política realmente de esquerda, a favor das classes mais modestas, daqueles que trabalham ou que querem trabalhar.

O que é que explica esta estranha perversão que consiste em estar a alimentar o monstro que se quer combater? Uma razão bem simples: aqueles que a atacam, mas que poupam tudo o que a torna possível, fazem muito exatamente parte de tudo o que a torna possível.

Deixem-me explicar: quando Mitterrand foi eleito em 1981, a FN valia menos de 1% dos votos. Hoje, Marine Le Pen vem em segundo lugar no primeiro turno com mais de 20% dos votos e o partido é o primeiro a nível nacional e é agora necessário que todos se juntem contra ela, direita e esquerda, tudo à mistura, para que não venha a ser eleita.»

Gérard Blua é ainda mais duro quanto às responsabilidades do PS nesta situação:

«A extrema-direita era até então totalmente inexistente e ninguém ignora que a Frente Nacional lhe deve tudo. A falência da França, o esmagamento do Partido Comunista, a proporcionalidade – um presente inestimável – atiraram o voto da classe trabalhadora para os braços de Jean-Marie Le Pen. Última hipocrisia de um político envelhecido e desgastado a não poder já esconder-se por detrás de qualquer imagem idealizada de uma esquerda mais envelhecido e mais gasta ainda do que ele próprio. Surge então o balanço sem concessões do que foi chamado na época “a experiência socialista”, expressão terrível para aqueles que acreditaram votar “na mudança socialista”. Enganados desde o início. Toda esta confusão não foi outra coisa senão um balão de ensaio. Uma simples tentativa. Uma improvisação ideológica. Eis-nos para o que nos tinha convidado François Mitterrand, ao som do rufar de muitos tambores e tiradas líricas assinadas Rouget de Lisle. Artifícios grosseiros, elegantemente arrumados na caixa de ferramentas do Partido Socialista.» (…)

“Dezassete anos depois da dissolução do socialismo na sombra de seu Grande Referente, a sociedade francesa, destruída a partir do seu interior pelos seus mitos humanitários vindos do humanismo das Luzes, inventou repentinamente um conceito completamente novo: a eleição por defeito. Isto não significa votar num candidato a cujas ideias nós aderimos, significa, isso sim, votar contra quem se goste menos e a favor seja de quem quer que seja. Com uma figura de estilo de boa retórica a ajudar, a anáfora, foi assim que o Secretário-geral do Partido Socialista, François Hollande, se tornou o presidente de todos os franceses sem o ter verdadeiramente procurado. Desde então, é François, o Pequeno, como certamente assim lhe teria chamado Victor Hugo, que pode assumir o controlo de um Estado para quem deste nunca se passou uma carta de condução em seu nome. E depois de um desastre ambiental sem precedentes, a França viu-se perante uma constante inundação política. Ao longo dos meses, ofegante, a França retinha a sua respiração para escrutinar o Zuavo do Palácio do Eliseu, a famosa medida-padrão dos principais naufrágios nacionais. A monarquia, muito difamada, tinha-nos dado os Merovíngios e os Capetos. Aqui e agora vivemos na magnífica República dos batráquios! Agora: Mergitur nec Fluctuat. Quando a mais pequena bicicleta aquática se tornou num submarino, a sua liderança tornou-se num catavento. O declínio intelectual da esquerda francesa, incapaz de tomar uma só decisão que seja em linha com a precedentemente descrita, sempre à imagem do seu Líder Mínimo, o único presidente da Quinta República que renuncia a disputar um segundo mandato. No fundo do buraco. Um longo caminho de mentiras. Onde a cacofonia monstruosa já deixou de ser capaz de reivindicar Mozart no triste jogo das cadeiras musicais, uma vez que todos, todos os instrumentos estão desafinados e em que também já não há maestro da orquestra”.

Diz-nos Christophe Guilluy, geógrafo e consultor junto das coletividades locais. Um dos grandes conhecedores da França profunda:

“Na França periférica, onde as categorias populares se sentem desprezadas, a presença de instituições com comunidades visíveis ainda garante uma forma de integração. Em toda a “coerência”, com o desaparecimento dos departamentos, a França dos invisíveis estaria a parir instituições invisíveis! Fecha-se assim um círculo! Por detrás de uma reforma que pode aparecer como consensual, o projeto é sempre o mesmo: reforçar as grandes metrópoles globais mundializadas sem se interessar pelos outros territórios[6]. Pessoalmente, considero que os nossos dirigentes cinicamente têm andado a enterrar as classes populares desde há muito tempo. Talvez eles pensassem que estas [uma vez mortas] não iriam reaparecer e que se podia refazer uma sociedade constituída só por quadros? Salvo que as pessoas continuam a viver, e mais, a viverem mais tempo. A classe política está a enfrentar uma realidade social que lhe era imprevisível e dispersa no espaço[7]. Não tendo nenhum contra modelo, os dirigentes políticos não tiveram outra opção que não seja impulsionar economicamente o que pode funcionar e fazer um pouco de política redistributiva. O problema [vindo da globalização selvagem e da sociedade do endividamento que a acompanhou], é que, com a questão da dívida, isto se torna cada vez mais complicado e as pessoas começam a manifestar a sua cólera, como se pode ver no voto Frente Nacional ou através do movimento bretão dito de boinas vermelhas[8]. “

Mais tarde, como reação aos textos publicados no blog A Viagem dos Argonautas, recebo um email de um grande amigo meu com a seguinte pergunta: «une petite question: la petite Marina est-elle (ou pas) sinistre?»

Respondi-lhe:

«De há muito tempo que para mim a situação em França seria o retrato a papel químico do que se passou nos Estados Unidos, com uma diferença: aqui não foi nas primárias eliminado nenhum candidato de qualidade, porque os não havia. Quanto a saber quem é mais sinistro, sinceramente não sei. Mas sei uma coisa: o Macron necessariamente vai falhar, pelo contexto europeu e porque o seu programa é uma vergonha com a assinatura dos industriais franceses e de Pisani-Ferry, coladinho ao que pretende Schauble. Assim, rapidamente se irá correr para uma direita mais dura ainda que Marine Le Pen. Ao contrário, se ela chega ao Poder, fará, se o fizer, dançar Bruxelas e obrigará esta a infletir ou então irá tudo rebentar. Aí a esquerda terá a sua palavra a dizer e a ganhar. Se o não fizer, bom, então nada vale a pena até que a História determine o que vale a pena. Tarde de mais então, se assim for».

E a contra-resposta deste meu amigo de muito longa data não se fez esperar:

«Na década de 1930, pensando quase assim, chegou-se aonde se chegou. Por isso, acho de uma total inconsciência não perceber que o essencial não tem que ver com ressentimentos, mas com “sentimentos do tempo”: Marx ou Engels, se ressuscitassem, não poderiam admiti-lo, mas os operários (os velhos operários) votam LP porque não está em causa apenas o estômago mas outras coisas que durante muito tempo estavam escondidas por outros tempos. I. e., também muitos – após a devastação de uma GRANDE CRISE – passaram a apoiar, então o Signore Mussolini e o Herr Hitler. Até se arrependerem quando a violência e a força destruíram tudo. Mas só aí e sem grandes remédios, a não ser o de sempre: GUERRA.

É bom não esquecer as histórias da HISTÓRIA e ser prudente no que se diz, no que se dá a conhecer e se divulga. Porque um dia pode ser tarde para voltar atrás.»

E ficámos por aqui. Mais tarde, o meu amigo António Marques escreve um belo texto em A Viagem dos Argonautas, onde afirma:

“E, claro, como papalvo me confessei, papalvo continuaria a ser se fosse francês, usando do tal pragmatismo do meu querido companheiro Hélder Costa, votando na segunda volta em Emmanuele Macron, mas com a consciência de que não estaria a engolir sapos, mas sim um grande crocodilo e, ainda, com a perfeita convicção de que estaria a contribuir para adiar por mais algum tempo uma solução que tem de ser encontrada para a U. E., que acontecerá com maior dor quanto mais tarde vier a realizar-se.”

No fundo, estamos todos de acordo que Macron não serve. A grande diferença é que os meus três amigos defendem que se vote Macron porque se impede uma tragédia em França e na Europa enquanto eu digo que votar Macron significa adiar a tragédia, agravar os problemas e ter, depois, uma tragédia bem maior.

Mas dir-me-ão que fujo à questão, uma vez que não respondo à pergunta: se estivesse em França, onde votaria? Tenho o direito de escolher não escolher e essa opção seria, do meu ponto de vista, a posição afetiva e intelectualmente mais cómoda. Mas estamos aqui como a Alice no país das Maravilhas, em que escolher não ir para lado nenhum é ainda escolher ir para algum lado, mesmo que este lado seja nenhures, seja estar onde está. Esta é a opção tomada por Jerôme Leroy num artigo intitulado Escolher não ter de escolher porque com a segunda volta temos como opção o mundo absurdo de Kafka e do Processo ou o mundo de Orwel e de 1984.

Esta é uma opção que poderia tomar, deixando então aos outros o poder de decidirem por mim, mas não é, logicamente, a única.

Do meu ponto de vista e por razões equivalentes, se bem que simétricas, às que levaram o António Gomes Marques a afirmar que votaria Macron, hoje, eu diria que engoliria um hipopótamo mas poderia votar Le Pen, em nome da queda do euro, passo necessário embora não suficiente, longe disso, para se sair da crise atual. Não há saída da crise possível sem a queda do euro e não haverá queda do euro se não sair primeiro um grande país. A Grécia aí está a mostrá-lo à evidência.

Partimos pois de visões diferentes. Para António Gomes Marques votar Macron é resistir à força destruidora do “fascismo” de Marine Le Pen, votar Le Pen é votar no fascismo. Para mim, votar Macron é votar no aprofundar da crise e em manter a França e por aí a Europa como um conjunto de Lander da senhora Imperatriz Angela Merkel, enquanto votar Marine Le Pen é votar numa nacionalista, politicamente à direita[9] e economicamente à esquerda no momento presente. Hipóteses de partida diferentes, decisões de votação diferentes. Logicamente assim.

Quanto à comparação Macron—Marine Le Pen, vejamos o que nos diz um homem, um grande economista que para nós é um dos melhores analistas da situação em França, Jean-Luc Gréau, antigo conselheiro económico do Patronato francês, hoje MEDEF, e cuja honestidade intelectual é à prova de bala. Basta ler os seus livros ou os seus artigos, para termos a certeza do que dizemos a seu respeito.

«Emmanuel Macron é o candidato de Berlim. Que prejuízo que os eleitores não leiam o Financial Times, Wall Street Journal ou The Economist que fazem constantemente o seu elogio. Não somente devido ao seu neoliberalismo sempre reafirmado. Mas também porque é pró-Europa e pró-Alemanha. A sua eleição seria um alívio para Angela Merkel e o Bündesrepublik, depois do Brexit, da eleição de Trump, do aparecimento dos movimentos populistas um pouco por toda a parte na Europa. Os líderes de Berlim, que tomaram o poder a favor da crise do euro, compreenderam que a Europa está ameaçada de rutura. Não querem reencontrar-se no meio das ruínas do sistema. Macron, providência dos meios de comunicação social de esquerda, dos meios de comunicação social neoliberais, é também a sua providência.

É outro Emmanuel, Emmanuel Todd, que nos deu o pano de fundo desta situação quando rebatizou François Hollande de Vice-Chanceler da Alemanha, encarregado duma das suas províncias, a França. Não há nenhuma necessidade que o nosso território seja ocupado pelo exército alemão para que os nossos dirigentes políticos e os nossos meios de comunicação social se ponham ao serviço da potência alemã. A traição dos intelectuais está de regresso, bem ajudada pela política xenófila da chanceler. Angela Merkel encarna os valores de abertura do sistema neoliberal. Neste novo contexto, a colaboração antes tão mal vista é agora reabilitada à meia voz.

Este é o ponto-chave para entender o que pode separar em segundo plano um Fillon de um Macron. Fillon não dá as mesmas garantias de subordinação à Alemanha. O seu projeto para levantar as sanções económicas contra a Rússia incomodou toda a gente ao revelar que ele não estaria necessariamente às ordens da Chancelaria em Berlim.»

Sobre Marine Le Pen, diz Jean-Luc Gréau:

«Os meios de comunicação social acabaram por substituir os vocábulos políticos ou ideológicos por vocábulos geográficos. Fillon é o candidato do centro direita, Macron o candidato do centro esquerda. E Marine Le Pen a candidata da extrema-direita – far right em inglês. Seria mais esclarecedor dizer que é a candidata nacionalista. Mas seria então colocada na esfera sulfurosa do fascismo mais ou menos confesso como o dos dirigentes da China, comunistas nacionalistas, do Primeiro‑ministro indiano que governa à cabeça do Partido nacionalista, do presidente russo, do novo presidente americano e, com um pouco de audácia, da chanceler de Berlim que defende com unhas e dentes os interesses da Alemanha em todas as circunstâncias. A sua incriminação tornar-se-ia problemática.

Quanto ao seu programa, dever-se-ia ficar satisfeito por esta ter identificado na fraude social e nos desperdícios da má gestão territorial as principais fontes de despesas parasíticas, de ter encarado o abandono das 35 horas através da negociação, e, acima de tudo, por ela ter compreendido os problemas da saída do euro. Primeiro desafio: o restabelecimento da competitividade no que diz respeito à Alemanha que, se assim não for feito, exigiria reduções massivas das elevadas cargas salariais que apenas existem no imaginário patronal. Segundo desafio: a capacidade de criar a moeda para financiar os investimentos prioritários de natureza económica, militar ou ecológica de forte retorno sobre a despesa (no limite de 20 mil milhões de euros). E se tivéssemos de criticar a sua apresentação, seria para dizer que Marine Le Pen não tem nenhuma possibilidade de obter um desmantelamento concertado da prisão monetária, como ele na verdade pretende: o carrasco alemão não lhe dará o cupão de saída. Necessitará, se for sincera, de dar um grande passo em frente e enfrentar o sistema.»

Uma notícia divulgada hoje mostra-nos que possivelmente a nossa posição não seja tão incorreta quanto o possa parecer a uma esquerda que ainda acredita em milagres desta União Europeia, a indicação do primeiro-ministro de Marine Le Pen se esta for eleita: Nicolas Dupont-Aignan.

Pela sua primeira declaração conjunta neste sábado, 29 de abril, Marine Le Pen e Nicolas Dupont-Aignan disseram mais sobre o “Acordo de governo”, evocado ontem pela Presidente de Debout La France. E isso inclui Matignon para Nicolas Dupont-Aignan, que será nomeado chefe do governo se o candidato da extrema-direita ganhar o Eliseu.

«Se Presidente da República, nomearei Nicolas Dupont-Aignan primeiro-ministro da França», disse Marine Le Pen, prometendo «uma maioria presidencial coerente» e assegurando que «não se trata de uma aliança de conveniência». «Nicolas Dupont-Aignan é um patriota sincero e exigente. Nicolas Dupont-Aignan mostrou que era capaz de sair do conforto das posições instaladas», disse ela no preâmbulo da sua comunicação.

Aconselho os leitores a visitarem o sítio deste economista, cujo endereço é http://blog.nicolasdupontaignan.fr/ e tirem as vossas conclusões.

A terminar o presente trabalho, deixem-me reproduzir as respostas de Jacques Le Goff a dois sítios diferentes sobre a problemática aqui tratada:

«O mundo operário já não existe e esta realidade não é somente um complot do neoliberalismo. O movimento operário como portador de uma forma de messianismo histórico, é agora coisa do passado. Em contrapartida, a classe operária não desapareceu, as desigualdades não desapareceram, os precários aí estão mas não se pode querer que sejam eles os portadores de uma missão de  superação do capitalismo, isto é uma forma de fazer política que para mim é morta. Mas isto não quer dizer que as classes sociais desapareceram. E há nisto um elemento essencial, é que uma parte da esquerda está totalmente desligada da prova do real. Esta construiu um universo que significa um corte profundo com as camadas populares. As fraturas para mim são tanto sociais quanto culturais.

Como é que se explica que esta esquerda tenha abandonado as classes populares?

“O problema é que esta esquerda continua a reclamar-se desta classe operária, destas camadas populares, enquanto elas estão estoirando totalmente dispersas pelos diferentes partidos. Falava-se do povo de esquerda, e entre 1981 [com a chegada de Miterrand ao poder] e agora, pode-se medir a enorme diferença criada. A forma como aparece o partido socialista para as grandes massas, é que, mesmo no seu seio, os dirigentes se reconfortam no “esquerdismo” cultural. Poderia tomar o exemplo de uma cidade como Paris, é caricatural!

Hoje já nada disto existe e a diversidade da esquerda também já não é um indicador de sua riqueza, mas um sinal da sua fragmentação, tendo como pano de fundo a crise da sua doutrina. Isto não é apenas o comunismo totalitário que está em questão, mas as ideias e representações que moldaram a esquerda desde o século XIX. O mitterandismo e o hollandismo foram o seu túmulo. Estamos no final de um ciclo histórico.

Comentário do jornalista Gil Mihaely : “No entanto, a crise não está a ajudar, milhões de vulneráveis, marginalizados” e “vitimas gravemente atingidas com a globalização” (Patrick Buisson) não poderia formar uma nova base sociológica para a esquerda…

O movimento operário não é simplesmente uma classe no sentido económico e social, era um mundo no sentido antropológico do termo com os seus valores de solidariedade e de cooperação, com a sua moral e os seus comportamentos, as suas associações e as suas organizações, com um forte sentimento de pertença. Hoje, este mundo operário morreu, o que não quer dizer que os trabalhadores como categoria social e as camadas populares tenham desaparecido. “Os precários” não formam um movimento que se estruturaria em torno de valores comuns e de um projeto alternativo de sociedade. As gentes de Nuits Débout e os zadistes não têm muito a ver com as empregadas das caixas dos supermercados, com os transportadores dos centros logísticos, com os motoristas Uber ou com os pequenos agricultores… A base sociológica está, pelo menos, feita em migalhas.

A fragmentação não é a única razão. Lembremo-nos que, durante este período, Paris passou a votar à esquerda e que Saint-Denis (Bobigny) passou a votar à direita, o que sugere que a esquerda já não é o partido dos pobres, mas sim dos ricos. Como têm escrito muitos bons autores, a esquerda abandonou o povo. E hoje, “os pobres votam à direita.“

Mais um grande autor a dizer-nos quem é que criou a Frente Nacional, com a diferença que Le Goff nos indica caminhos de análise para se poder progredir na discussão.

A minha conclusão, aqui está ela, feita na base da leitura dos textos que passamos a editar sob o titulo Que fazer: escolher Macron, escolher Martine Le Pen ou escolher não escolher.

Se os autores selecionados estão certos, então a minha opção estará relativamente certa. Se errados, então logicamente eu estarei errado. Simplesmente, creio nestes autores, e muitos deles conheço-os desde há muito tempo, daí a minha opção, da mesma forma que todos os meus amigos referidos que defendem a opção contrária, acreditam na diabolização de Marine Le Pen e reduzem tudo a isso. Deixemos então a História esclarecer-nos.

De uma maneira ou de outra era muito bom que enquadrássemos a questão da opção Macron—Le Pen em face da sociedade que temos e que explica o dilema, e em face igualmente da sociedade que desejamos, e que discutíssemos o que poderá então explicar a opção retida por cada um de nós. As análises dos autores citados dão boas pistas, penso eu. Mas não será assim, é o que nos diz Michel Onfray:

“O essencial está algures. O Capital põe em cena estas diversões o que lhe permite ficar na sombra e continuar a trabalhar na sua obra, tranquilamente. Na segunda-feira, é dia de retomar o trabalho; e nada mudou. [ Até ao] retorno de um novo profeta que quererá ser vizir no lugar do vizir”.

Coimbra 29 de Abril de 2017.

Júlio Marques Mota

Os textos a publicar são os seguintes:

  1. 1981-2017: socialistas, uma breve história do que aconteceu, por Gérard Blua
  2. Henri Guaino, não votarei nem Macron nem Le Pen, entrevista
  3. A mudança é agora? por Jean-Luc Gréau
  4. Macron-Le Pen, escolher não ter de escolher, por Jérôme Leroy
  5. Deliciosas crónicas de uma esquerda em decomposição : Laurent Bouvet entre os zombis, por Matthieu Baumier
  6. O princípio do fim – o apodrecimento da França em marcha, por Michel Lhomme
  7. Escolher Macron é guilhotinar a França: “This is the end…”, por Jean-Paul Brighelli
  8. O perigoso programa do candidato Macron, por Roland Hureaux
  9. Macron-Le Pen: os sem dentes ainda não perderam. Nada está ainda decidido, por Matthieu Baumier
  10. Que circo! Analisando as eleições francesas, por Will Denayer
  11. Entrevista a Michel Onfray

 

[1] Agradeço ao António Gomes Marques a leitura atenta que fez a este texto. Como é natural, todos os erros ou incorreções que se possam detetar são da minha inteira responsabilidade.

[2] A classe média francesa pede agora, em nome da sua tranquilidade, aos despedidos ou precarizados por efeito da aplicação da lei Macron, que votem Macron!

[3] O primeiro-ministro de um destes países do Norte e ainda no poder disse a um amigo meu, durante uma viagem de avião, que a imigração síria era uma imigração desejada no seu país! Talvez não seja por acaso que desde a presidência Obama os principais defensores da invasão da Síria eram países europeus! Ainda agora com Trump, se viu a mesma coisa.

[4] Poder-se-á pensar que estou a exagerar mas garanto, eu estou a ficar muito aquém do que sobre a Universidade e sobre a sua produção de diplomas que atestam menos o saber do que  a ignorância dos seus detentores, poderia ser dito. Sugiro a quem pense que estou a exagerar que leia o artigo de Jorge Olímpio Bento (2017), Guião para um filme sobre perversão, usurpação, exploração e anestesia. Ensino Superior – Revista do SNESup n.º 57, pp. 16-19.  Não se trata de um sindicato da CGTP!

Uma exposição simplesmente notável do que se passa no ensino superior e, confesso, a sua descrição de Universidade e dos seus laureados mostra-nos a destruição a que a Universidade está agora sujeita, sob a tutela do que poderíamos considerar como novos bárbaros, novos vândalos da sociedade da precariedade. Tudo o que no artigo está descrito é confirmável ponto a ponto. Dado o profundo silêncio que se verifica na sociedade portuguesa sobre este tão importante tema, resta-nos a pergunta: onde está a nossa esquerda universitária? Talvez a gerar gentes bem mais fascistas que a Marine Le Pen, é o que se pode dizer no contexto do presente texto.

Como nota bibliográfica de Jorge Olímpio Bento informamos: Professor Catedrático da Faculdade de Desporto da U.Porto desde maio de 1993, tendo sido Presidente do Conselho Científico (1986-1996). Entre 1995 e 1998, assumiu o cargo de Pró-Reitor da Universidade do Porto.

[5] Como assinala Guaino num texto publicado antes da primeira volta no sitio Atlântico: “O resultado (…) decorrente é que se irá ter, na segunda volta, o espetáculo do confronto entre uma figura jovem do sistema, Emmanuel Macron, e Marine Le Pen. Este debate não vai deixar qualquer espaço para uma análise das diferenças sobre temas tão importantes e complexos como a Europa, as fronteiras, a globalização, a civilização.

Eu não concordo com a ideia de apelar ao apoio a E. Macron no dia 7 de Maio, porque considero que se devem abandonar as fachadas ideológicas: Mélenchon não é um bolchevique e Marine Le Pen não é uma fascista. “Nesse sentido, não votarei por Madame Le Pen e não quero, de modo nenhum, votar em Macron., porque votar Macron, é votar no sistema com o qual eu não concordo. “

[6] Nota de Tradutor. Este processo conduzido na Inglaterra correspondeu claramente a um verdadeiro «tsunami» social. Destruíram-se praticamente todas as redes sociais de apoio, um recuo enormíssimo relativamente à TINA de Margareth Thatcher.

[7] Nota de Tradutor. No horizonte em que situava, a ideologia dominante da esquerda de então era a produção de bens manufaturados e agrícolas para os outros, os bens de alto valor acrescentado para nós. Isto significa o opção por produção de bens e serviços com forte utilização de mão-de-obra altamente especializados para nós, a mundialização feliz, de que um dos seus defensores era Robert Reich. Um outro foi Gordon Brown que se manifestou na City mais ou menos assim, em 2006. As fábricas para os chineses, os serviços para os indianos, a finança para os ingleses e americanos. Os resultados estão à vista: a Inglaterra é socialmente um inferno e os Estados Unidos têm um Trump como Presidente a falhar a tudo o que prometeu.

Nesta lógica seria então imprevisível a situação de agora. Ora foi na base desta lógica que perdemos muitas das produções de alto valor acrescentado, ficámos com os engenheiros que agora trabalham a 700 ou a 800 euros por mês. A realidade inscreve-se na dureza das condições de trabalho precário, os liberais de esquerda e de direita esqueceram-se de uma verdade muito simples, a de que haverá sempre trabalhadores Moulinex.. Aí os temos, engenheiros ao “custo” da mão-de-obra não especializada da Moulinex de outrora e possivelmente a votar Le Pen.

[8] Este movimento de revolta na Bretanha está também ligado á criação de leitões que se comem na Bairrada, penso eu, está ligado ao trabalho sem mínimos sociais de migrantes na Alemanha a 2,50 a hora, contra o salário legal nos matadouros em França, à volta dos 9 euros!

[9] E por isso aceito completamente a tese de Guaino de que é sempre desagradável votar num ou noutro candidato, porque em ambos iremos assistir à redução do espaço de debate político, fundamental em Democracia. A reflexão sobre os grandes problemas que atravessam as nossas sociedades serão pura e simplesmente silenciados, ignorados. Mas em ambos, sublinhe-se.

 

6 Comments

  1. Subscrevo por inteiro todo o conteúdo deste artigo ! Vou votar o domingo, na Embaixada de França em Lisboa… e estava ainda hesitante quanto ao sentido do meu voto, mas o seu texto foi para mim muito esclarecedor. Custa no entanto deixar Marine Lepen passar, ou pelo menos deixá-la fazer um score que ultrapassa os 40%!

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