3. “Viva a crise!”, Uma fábula de trinta anos – Parte II

Os socialistas franceses têm mais de 30 anos de avanço sobre a Troika a defenderem as políticas de austeridade.

Crónica sobre os anos 80, sobre “Viva a Crise! “ – Texto 3 – Parte II


(In Regards.fr, 21/02/2014)

“Tornarmo-nos uma espécie de Afeganistão”

O termo não faz parte ainda dos nossos dicionários, mas tem-se a impressão de se estar a falar de mundialização, com estes Japoneses capazes de fabricar calculadoras eletrónicas aos milhões. A retórica do declínio ressoa como um discurso profundamente ansiogénico “A Europa está talvez em vias de subdesenvolvimento”, “em vias de falhar a terceira revolução industrial”, a ponto “de se tornar , e de todos os pontos de vista, uma espécie do Afeganistão”, afirma Michel Albert. “Nós estamos sem sombra de dúvidas condenados a nunca mais podermos enriquecer. E talvez, em breve, estejamos condenados a empobrecer”. À boa maneira da ciência-ficção, imagina-se que o México recusa pagar a sua dívida e que isso vai desencadear uma crise mundial. “Seis meses depois, a França contará nove milhões de desempregados. ” No papel de estrela convidada, Denis Kessler dá ares de crítico … a visão neoliberal dos Estados Unidos e dos bancos americanos. E eis‑nos também face a Alain Minc, de ar um pouco untuoso e de olho a piscar, a ponderar este cenário em que nos promete “um 1929 mas de evolução lenta”. O autor de L’Après-crise est commencé é, como Michel Albert, membro da Fundação Saint-Simon.

simon

Enquanto a França conhece “uma grande tempestade” na qual os nossos governos “ deixaram de saber dirigir a economia e a sociedade ”, três “remédios milagres” contra o desemprego são desacreditados através de reportagens fictícias: fazer com que os imigrantes se vão embora, (as ruas estão juncadas de lixo não recolhido, as fábricas abandonadas sem trabalhadores especializados, os ouvriers OS, fechar as fronteiras (a França está isolada, os consumidores pagam a fatura, os contrabandistas congratulam-se), e o terceiro milagre desacreditado seria o de aumentar o número de funcionários (pois o aumento dos impostos para pagar os funcionários provoca novos despedimentos). Mas há um culpado: o funcionário, executado por uma via rápida que surpreende: “desde há dez anos, a parte do rendimento de que o Estado se apropria sob a forma de impostos e contribuições sociais tem subido sucessivamente atinge hoje quase 50% do rendimento gerado. Este dinheiro serve numa grande parte para financiar os salários da função pública, mas este dinheiro faz falta às empresas.”

Philippe de Villiers, o homem do futuro

Vem depois um pedagogo de uma enorme bravura. No dia 23 de Fevereiro… 2014, o historiador Henri Amouroux descreve a falência dos sistemas de proteção social e o desmoronamento democrático que resultou do desmoronamento económico. Em 1990, “é a realidade do Estado Providência que se desmorona”: o desemprego, a insegurança, a guerra civil, o regresso à Idade Média. Irónica mas acompanhada de uma música que angustia à boa maneira de John Carpenter, a sequência seguinte apresenta a terceira guerra mundial como uma eventualidade. Então, como é que se pode sair da crise, se é que se pode sair dado que a crise é uma fatalidade? “A crise é uma possibilidade, é um pouco como um parto.”

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A emissão difunde diversas histórias de sucesso, uma após outra. A de Annette Roux, “samurai de Vendée” e presidente do construtor de barcos Beneteau, mas sobretudo a que Michel Albert apresenta como um dos seus camaradas de promoção da ENA, “ao mesmo tempo um homem da associação, um homem da tradição e um homem dos computadores”. Entra aqui, Philippe de Villiers, organizador do espetáculo high tech de Puy du Fou com o seu orçamento de mil milhões de cêntimos e os seus lucros reinvestidos. A região de Vendée pode ser a nossa Califórnia, os lazeres, a cultura, a comunicação e as novas tecnologias serão a nossa tábua de salvação. E seguidamente, resta-nos a Europa. De resto, eis-nos, a seguir perante Christine Ockrent que aparece para nos apresentar Margaret Thatcher na qualidade de presidente dos Estados Unidos da Europa recebida por Ronald Reagan na Casa Branca. Os outros temas do seu telejornal seguem-se depois: o sucesso comercial da traducette, instrumento indispensável para comunicar em línguas diferentes, a sociedade BIOP, conglomerado informático europeu que remonta à IBM, o Vinicola, “a bebida mais consumida no mundo, uma sábia combinação dos vinhos europeus”…

“Ter-se-á aquilo que se merece ”

Se a emissão por vezes deixa pairar uma ou outra dúvida sobre as suas intenções, a conclusão de Yves Montand esclarece-as. Desta vez, este já não esconde a sua apoquentação, ele acusa o telespectador e o seu dedo indicador é apontado sobre todos aqueles que ainda não são chamados de assistidos. “ Veja-se, não sei se vos convenci. Mas, para mim, eu retenho uma ideia de tudo isto. É que, finalmente, tudo o que se possa dizer ou que se possa fazer, finalmente, serão vocês, e apenas vocês, que encontrarão a solução. Não há salvador supremo não há super patrão, não há super-homem. São vocês, são vocês que assumirão o vosso destino em mãos, que saberão o que querem, que verão o que se pode fazer, que saberão exigi-lo, são vocês que avançarão! Ou ter-se-á a crise, ou sair-se-á da crise, mas em qualquer dos casos, ter-se-á o que se merece.”

A política preconizada em Viva a crise!, na verdade, infligiu-nos o que ela nos pretendia poupar – ainda que os seus defensores digam, hoje, que é assim porque não se foi então suficientemente longe nas politicas seguidas.

Esta hora e meia que pretendia assinalar o fim das ideologias impunha uma outra a coberto do pragmatismo económico, a responsabilização individual, a exortação a renunciarmos “aos privilégios”, atacando a política anteriormente seguida assim como os movimentos sociais. O que Pierre Rimbert chamará “a pedagogia da submissão ” em marcha. Os anos seguintes irão vão preencher os compartimentos lexicais vagos: mundialização, deslocalizações, assistencialismo, “cargas” sociais, etc. E trinta anos após, a crise está ainda bem viva

O número fora-de-série de Libération:

O outro lado da emissão televisiva, é o número especial homónimo de Libération : uma centena de páginas, vinte francos, Montand na capa, editorial de Serge July. Divertir-nos-emos também da presença de Laurent Joffrin, jornalista da secção de economia igualmente a trabalhar na peça difundida pela televisão (reencontrá-lo-emos num outro avatar televisivo, do mesmo calibre, chamado “Os bons, a crise e os perdedores”). É ele que explica que a boa vontade dos socialistas “quebrou-se não sobre o muro do dinheiro, mas sobre o muro da realidade”.

O texto de Serge July está escrito sob o mesmo registo : “ nada mais será como dantes”, “a palavra de ordem já não é “ mudar a vida”, mas sim mudar de vida”, “não há doutor milagre” face ao risco de “subdesenvolvimento”. Um pouco mais à frente, “é necessário transformar os sujeitos passivos em sujeitos ativos, fazer dos cidadãos assistidos cidadãos empreendedores (…) Quais são os símbolos que definem o que se convencionou chamar de Estado providência? A segurança social, os subsídios familiares, o subsídio de desemprego, as pensões de reforma … Os povos ocidentais têm vivido numa espécie de oásis social desde há vinte anos.

E, como liberal-libertário, July apela a “ uma grande revolução cultural ocidental”, esperando dar “à cada um de nós o desejo de mudar de vida, ou seja, que numa mesma existência mudemos várias vezes de profissão, de lugar de habitação, eventualmente mesmo de país, de residência e, por via de consequência, que mudemos de cultura, de amizades e de parceiro conjugal, permanecendo ao mesmo tempo nós mesmos”. O que é que há de melhor que uma filosofia de publicitário para resumir um discurso que nega as ideologias para impor a sua ?


Texto original aqui

Veja-se também :

Libération et les patrons : ensemble depuis 1984, Sébastien Fontenelle (Bakchich)

Il y a quinze ans, « Vive la crise! »“, Pierre Rimbert (Le Monde diplomatique)

La vie sans mode d’emploi – putain d’années 80, de Désirée et Alain Frappier, Mauconduit, 2013.

La décennie. Le grand cauchemar des années 1980, de François Cusset, La Découverte, 2006.


(O quarto texto desta série começará a ser publicado amanhã, 19/06/2017, pelas 22h)

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