5. O jornal “LIBÉRATION“ e os patrões : juntos desde 1984 – PARTE II

Os socialistas franceses têm mais de 30 anos de avanço sobre a Troika a defenderem as políticas de austeridade.

Crónica sobre os anos 80, sobre “Viva a Crise! “ – Texto 5 – Parte II

(Sébastian Fontenelle, in blog Bakchich, 2014)

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Convém por conseguinte, explica Libération, concluir a mutação que a esquerda realista deseja de todo o seu coração e de mandar para o sótão das antiguidades a antiga França, cristalizada no Estado-Providência, de que o excelente François de Closets tão magnificamente demonstrou, num maravilhoso best-seller “publicado em junho de 1982”, que ela está povoada, nos seus espaços de trabalho, de milhões de parasitas que querem – é o título desta “fenomenal” obra: “Sempre mais! ” “

E certamente, admite Jean-Claude Guillebaud – a quem cabe o encargo de fazer a promoção: Closets estava apenas e sem “nenhuma dúvida” movido “por motivações angélicas”, quando redigiu este fascinante livro.

Mesmo “O delicioso e desonesto desejo tem aí a sua quota-parte.”

Mas este pecado venial de hipocrisia não é nada, face às qualidades do seu maravilhoso ensaio (e do seu “milhão de exemplares vendidos legitimamente”), que tem a grande virtude de mostrar que “uma luta de classes de pasta-de-cartão” dissimula nos “recantos escuros “da sociedade real” uma repugnante “geografia” onde sedimentam, impunes, os “mini-corporativismos” e “as vantagens em espécie”, como se chovesse – e de cartografar, em suma, uma França de pesadelo onde próspera, sob o cómodo (abrigo) do “sindicalismo”, um horroroso “corporativismo social.”

Assim, diz-nos Libération, que conduziu nestas águas sujas subterrâneas uma longa (mas tão edificante) e conflituosa (mas tão pedagógica) “investigação”: num só ano, o de 1983, houve imensas provocações.

Em 3 de janeiro, por exemplo, “os funcionários das mesas de jogo -croupiers” de um casino de Monte Carlo estiveram “em greve” para defender – pensamos estar a sonhar – os seus “benefícios adquiridos e a segurança.”

No dia 17 de Março, outro exemplo da arrogância insuportável de certos assalariados: ” os técnicos” de Antenne 2 mobilizaram-se “contra a mudança geográfica dos serviços da cadeia de televisão” , temendo – tudo indica que eles não tinham ainda assimilado a necessidade de aprender a mudar de vida – a “fragmentação de suas atividades.”

No dia 23 de Março “oitocentos trabalhadores dos correios-carteiros” egoístas puseram-se “em greve em Toulouse” somente para protestarem injustamente “contra a transferência do centro de triagem, para a periferia da cidade,” e para reclamarem – suprema afronta – “uma redução de tempo de trabalho de 39 horas para as  38 horas para o pessoal de dia, e 35 para 32 h 30 para os turnos noturnos por compensação do tempo mais longo de transporte. .

E, claro: esses bandidos sociais transformaram em reféns “três milhões de cartas em sofrimento.”

Será que irão punir esta indecência?

Nini lamenta Libération: “Depois de seis semanas de greve”, o gang dos carteiros viu “satisfeitas as suas principais reivindicações” .

Ainda em Março, “os empregados descontentes das Alfândegas ” deixaram passar os carros nas fronteiras ” (sabe Deus quantas toneladas de armas de guerra e de heroína pura foram então introduzidas no país): estes criminosos reclamavam “a compensação por horas trabalhadas durante a noite.”

E assim por diante, mês após mês, ad nauseam: no dia 13 Abril, por exemplo, os responsáveis pelas ” fontes ” de Paris “que desde há 30 anos que não tinham efetuado nenhum corte de água” puseram-se, por sua vez, em greve, com a finalidade de obter do seu empregador “um aumento de 600 francos”, e Presidência da Câmara de Paris ter-lhes-á respondido, naturalmente, que eles eram “ricos” (pois que recebiam “entre 6.300 e 10.500 francos por mês”, e gozavam de “passagem à reforma aos 60 anos ” a que se acrescia “para metade deles”, de “alojamento de função”), mas estes sanguessugas do povo grosseiramente “responderam”: “Nós não somos privilegiados.”

E caetera.

E caetera.

E caetera.

Então, é pois claramente sugerido através de um fustigar um tanto maníaco das reivindicações, sistematicamente apresentadas como injustas, os assalariados em geral e os funcionários públicos, em particular: na nova França, liberta das garras do Estado de que Libération por antecipação saúda o seu advento, o inimigo, é o sindicalista, caricaturado pelos July boys em defensor obtuso de privilégios escandalosos – esperem, essas pessoas ganham até 6.300 francos por mês e desejariam, além disso, que os enchemos de mimos?

De um modo mais geral: o inimigo, é o assalariado que (não somente não percebeu que a vida é subjacente à empresa e de que nada é tão chocante como um despedimento litigioso feito já ao pôr-do-sol, sob o vasto horizonte da flexibilidade), para além do seu descaramento que vai ao ponto de protestar que tem alguns direitos.

Para exorcizar o vergonhoso espectro da reivindicação corporativista onde chafurda o assalariado, Libération  convoca, na austeridade, a bela e nobre figura do homem em que se prevê a euforia coletiva de um futuro próximo e no qual se encarna a ousadia libertária da França pós-estatal: este homem é o empresário.

Ou, para o dizer de forma mais vulgar, é o patrão.

Louvado seja o seu santo nome.

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Claro: acontece que este exemplar personagem manifesta, ele também, e à sua maneira, contra o que ele considera como iniquidades.

Por exemplo, observa Laurent Joffrin, acontece (muito) regularmente que ele recorra ao emprego de assalariados não declarados, e este “trabalho negro tem um custo financeiro” relativamente alto, uma vez que “representa num país como a França algo como 5% do PIB ” (que corresponde ” a igual montante de dinheiro perdido para o Estado e para a Segurança Social “e que ” acrescem a carga dos que cumprem as leis “), ao mesmo tempo que dá origem a um não menos encorpado “custo social” em que a “não-conformidade com a legislação social lesa os trabalhadores que ocupam esses postos de trabalho” (mas seriam bem aconselhados a não se queixarem muito, uma vez que assim, explica Joffrin, eles “às vezes encontram interesse” nessa situação. nessa escravatura.

Mas para tudo isso, e mesmo que se passe um pouco por cima: o patrão fora-de-lei continua a ser, quando se leva tudo em conta,  muito mais acolhedor, como este é visto a partir da redação do jornal em que se prepara uma França melhor, do que os funcionários irresponsáveis (e outros assalariados) que fizeram da greve um hóbi. .

Para estes últimos: Libération é muito pouco condescendente, como já vimos.

Enquanto para os primeiros, Laurent Joffrin encontra rapidamente suficiente circunstâncias atenuantes.

Na verdade, revela o discípulo (barbudo) de July numa fórmula em que se adivinha, para o seu jornal, todo um futuro de trocadilhos: “O trabalho negro, nem todo ele é negro. “

Bem pelo contrário: este é, num país percluso de proibições estáticas-legislativas, “a válvula de segurança que supera a rigidez económica”.

Enquadrar o trabalho?

Verificar que os assalariados não são aí demasiado mal tratados?

É muito agradável, obrigado por eles, explica Laurent Joffrin: é mesmo, sem sombra de dúvida, “moralmente desejável”.

Mas o enganador brilho desta moralidade tem o seu reverso, e tais “medidas”, de enquadramento por simpáticas que possam parecer a quem se tenha poupado a uma reflexão um pouco longa sobre as virtudes da ilegalidade patronal, “reduzem o emprego aumentando a rigidez do fator trabalho”.

Bem, então, este contornar da lei, é testemunha principalmente, para além dos seus custos financeiros e sociais, de uma astuciosa e inteligente flexibilidade, que pode então ser aplaudida, e Joffrin não se poupa a fazê-lo – ele que a que aplaude para concluir que o “trabalho negro” é um “fenómeno útil”, acrescentou.

Obrigado, patrão.

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Porque ele rapidamente compreendeu (numa altura que isso não era [ainda] imediato e em que apenas uma minoria de especialistas socialistas-mediáticos podiam testemunhar a vanguarda destas convicções) que o individualismo será a partir de então a base do género humano, que a verdadeira vida está subjacente ao o (espírito) de empresa, que um homem encarna, majestaticamente, em 1984, as qualidades exigidas para a nova França, segundo os jornalistas Laurent Joffrin e Serge July: o visconde de Vendée Philippe le Jolis de Villiers de Saintignon, mais conhecido com o nome plebeu de Philippe de Villiers, de que Libération narra, em êxtase, a sua edificante emancipação.

Villiers, sub-perfeito, “aborrecia-se nas cinzentas hierarquias do Estado”, explica primeiramente Jean-Claude Guillebaud – a quem cabe agora contar retomar a narrativa.

Um brilhante produto de ENA “a Escola Nacional da Administração”, o alto-funcionário (mas nobre), Villiers sentia borbulhar nas suas profundezas escaldantes desejos “de iniciativa” e de “autonomia, dois géneros raros nos tristes gabinetes da função pública”.

(Encarada por Libération – que nunca forçou contudo a insubmissão até ao ponto de recusar as ajudas estatais à imprensa, isso é que não – a função pública é, por definição, triste, enquanto o Estado é de uma [muito descorada] tonalidade que varia do acinzentado ao franco cinzento de Lubianka, a sede do KGB russo: as cores vivas, alegres, [com o trabalho ao negro] existem sim no sector privado.)

Resultado, “em 1977”, Villiers liberta o punk que está dentro dele e, trocando “a sua vara de diretor” por “uma ideia, um sonho alegre”, apresenta a sua demissão.

A sua ideia é exumar “um tesouro dos mais modernos”: “o passado” de Vendeia

O seu sonho alegre, bem colorido, é fazer deste (moderno) passado “um espetáculo que reuniria”, em Puy-du-Fou, “os camponeses do tempo antigo”, tal como nas épocas mais remotas em que estes se curvavam perante os seus bons patrão, “e as técnicas mais futuristas”, mesmo com os computadores.


(A terceira parte deste texto será publicada amanhã, 22/06/2017, 22h)


Texto original aqui

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