Crise da democracia, crise da Política, Crise da Economia: o olhar de alguns analistas não neoliberais – 15. Reflexões sobre a economia alemã. Uma abordagem macroeconómica. Parte 1: Introdução. Por Egon Neuthinger

Seleção e tradução de Francisco Tavares, revisão de Júlio Marques Mota

 

Crise da democracia texto 13 analise ciclo economico

15. Reflexões sobre a economia alemã. Uma abordagem macroeconómica. 

Parte 1: Introdução.

 

Por Egon Neuthinger, economista, antigo funcionário do Ministério das Finanças da Alemanha e colaborador em diversas instituições de investigação.

Publicado por Flassbeck-economics em 1 de junho de 2016 flassbeck_logo

Introdução de Heiner Flassbeck

Egon Neuthinger, nascido em 1926, é um economista alemão que tem trabalhado em matérias macroeconómicas desde há meio século em diversas instituições de investigação. Pude conhecer Egon no início dos anos de 1980 e fiquei sempre impressionado com a sua lucidez e o seu extraordinário compromisso em reavivar e recuperar o pensamento macroeconómico. Mesmo agora, com 90 anos de idade, ele não pára de lutar por uma abordagem mais equilibrada da política económica alemã. Isto é muito meritório. Ficamos muito satisfeitos por publicarmos o que ele pensa sobre as lacunas e deficiências das políticas que a Alemanha tem prosseguido desde há demasiado tempo.

Heiner Flassbeck

1.Introdução geral à série de textos

Nas próximas semanas, publicaremos uma série de textos sobre o desempenho da economia alemã. A economia alemã foi e é, em todo o lado, qualificada como sendo altamente eficiente e bem sucedida. Ao mesmo tempo o país tem um amplo e fiável sistema de dispositivos sociais de bem-estar. Esta combinação de orientação para o mercado e intervenções do Estado com motivações sociais data desde os anos 50, quando os fundamentos básicos de ordem económica e social foram estabelecidos. A marca e o resultado destes dois ingredientes constitutivos estão, em termos ideais, expressos no bem conhecido conceito de “economia social de mercado”. Defenderemos aqui que, ao longo das décadas, emergiram alguns aspetos problemáticos e muito desagradáveis das estruturas económicas. Trata-se dos desajustamentos na procura interna e o recente e enorme surto do excedente da conta corrente da balança de pagamentos. Ambos estes aspetos têm a ver com a política de manutenção do crescimento dos salários reais abaixo dos aumentos de produtividade. O elevado excedente da conta corrente deveria ser abordado pelos economistas e pela política económica, uma vez que é um indicador de um significativo desequilíbrio. Os economistas alemães e os decisores políticos deveriam, por conseguinte, iniciar um debate exaustivo sobre os caminhos e maneiras de reestruturar gradualmente a economia alemã na direção de um maior recurso à procura interna agregada.

Estes textos tratarão diversos temas que contribuíram para o específico desenvolvimento da economia e sua atual estrutura. Começaremos pelos efeitos de longo prazo da política monetária. Os principais objetivos da política monetária foram a consecução e cumprimento de uma estabilidade duradoura dos preços e a obtenção de uma conta corrente estruturalmente positiva. Será apresentada a orientação básica do enquadramento político destes objetivos. Os textos proporcionarão informações valiosas relativamente aos mecanismos e interdependências setoriais dentro da economia. Trataremos também as consequências da depressão das contas financeiras nacionais e refletiremos sobre a questão da estagnação que surgiu, atendendo à fraca recuperação das nossas economias.

2.Equívocos sobre a economia alemã

À primeira vista o estado presente da economia alemã poderá ser considerado bastante ou mesmo altamente satisfatório: o crescimento económico é à volta de 1,5% na sua taxa potencial, o desemprego é bastante baixo, em torno de 6%, o índice de emprego é elevado, a conta do setor público está equilibrada ou atinge mesmo excedentes e a dívida pública em relação ao PIB está a diminuir. Tudo isto acontece num ambiente de preços estáveis ou mesmo deflacionários. Nos debates alemães este estado de coisas é realçado por um esmagador número de economistas alemães, de decisores políticos e a maioria do público alemão. Assim, é bastante compreensível que os economistas alemães e os decisores políticos aconselhem outros governos da União Económica e Monetária (UEM), que são menos “bem sucedidos” ou estejam em situação difícil, a seguirem o exemplo alemão e a prosseguirem políticas económicas idênticas de “reformas estruturais”.

Estas políticas foram defendidas como estando em linha com a tradicional ordo-visão alemã de fortalecimento das forças de mercado. Após a Grande Recessão em 2008/09, a Alemanha utilizou a sua crescente influência e poder principalmente para completar o quadro legal e institucional da UEM com o objetivo de assegurar políticas nos estados-membros a favor de finanças públicas sãs e de redução da dívida pública, de reestruturação do setor privado cortando salários excessivos e rendas, bem como despesas públicas supérfluas, como condições básicas para “os dispositivos de assistência” aos estados-membros com problemas. Estas “políticas de austeridade” são defendidas como indispensáveis para recuperar a nível mundial e de forma sustentada a competitividade das empresas e corporações da UEM. É verdade que esta abordagem política circunscrita neoclássica e neoliberal é aceite como sendo o ambiente natural das economias de hoje pela maioria dos governos da UEM e da UE. Visto numa perspetiva mundial o cerne, ou o essencial, desta doutrina também é compartilhado por outras economias de mercado, ou capitalistas, desenvolvidas, como os Estados Unidos, o Japão, o Reino Unido e o Canadá e pelos mercados emergentes. Contudo, as experiências políticas dos EUA, do Japão e do Reino Unido apresentam diferenças em relação ao credo da UEM em algumas áreas.

Todavia, dentro da corrente dominante, existem significativas omissões e incorretas apreciações sobre a Alemanha. O principal erro da maioria dos economistas alemães e decisores políticos é a sua recusa em reconhecer o enorme e fundamental desequilíbrio na procura alemã e na estrutura da produção como se manifesta no enorme excedente da conta corrente da balança de pagamentos de 8% do PIB. O excedente da conta corrente converteu-se, entretanto, num “salva-vidas estrutural“, como disse uma vez o economista neo-austríaco Fritz Machlup. A economia alemã presentemente simplesmente “necessita” de procura externa e de exportações líquidas de tal magnitude. Poderão existir opiniões controversas fundamentadas e percepções quanto ao significado de “fundamental” a este respeito, mas se a Alemanha necessita presentemente de uma tão grande procura líquida do exterior o termo “fundamental” justifica-se. O segundo erro na atitude política alemã consiste em que o papel dos salários não é entendido como o fator mais importante a que deve ser imputado o surgimento do tremendo excedente da conta corrente.  Internacionalmente, os salários alemães no passado foram sempre vistos como um aspeto de reduzida importância. Mas desde meados dos anos 90, foi implantada uma verdadeiramente dramática moderação salarial, senão mesmo dumping salarial. O simples raciocínio económico leva à conclusão que esta evolução dos salários é a causa principal do dramático surto do excedente da conta corrente. A contrapartida é a correspondente falta de procura interna. Esta óbvia conexão de causa e efeito é amplamente ignorada no debate dominante; o desempenho exportador é antes apresentado como a consequência dos poderes superiores alemães de inovação e criação de produto.

A apresentação que se segue aborda as causas desta constelação alemã. Tenta explicar que existiram fortes peculiaridades intrínsecas e imanentes nos caminhos do pensamento económico e ação alemães. O resultado do desenvolvimento alemão não é quase natural ou atribuído por Deus, mas antes o resultado específico de políticas de curto e longo prazo. O fenómeno da conta corrente funciona como uma linha vermelha ao longo de décadas até ao atual clímax. Vemos o excedente da conta corrente como um desequilíbrio fundamental, isto é, decisivo. Por conseguinte, é sobre isto que vamos concentrar a nossa atenção.

Começaremos por apresentar algumas intervenções preliminares e opiniões de alguns eminentes economistas alemães. Não é uma coincidência que eles façam parte da comunidade de antigos banqueiros centrais. No Wallstreet Journal (Europe) de 6 de Novembro de 2014, dois economistas alemães altamente posicionados, Otmar Issing, antigo membro da Comissão Executiva do Banco Central Europeu, e Ludger Schuknecht, diretor geral e economista chefe do Ministério das Finanças alemão, antigo membro do BCE, publicaram um artigo sobre “A Verdade sobre os Défices da Alemanha Post –Reforma”. O objetivo dos autores é justificar as políticas alemãs do lado da oferta de 2003 como uma operação bem-sucedida bem como as reformas estruturais e a consolidação orçamental. Segundo eles, os cortes na despesa pública de 2003 em diante “lançou os fundamentos de finanças públicas sãs, elevado emprego e crescimento.” Esta “estrada para o sucesso” alemã é recomendada como um exemplo que outros países da UEM, principalmente a França e a Itália, deveriam seguir. Mais resumidamente, Issing afirmou no  Financial Times de 23 de Outubro de 2014:

“Imagine que lhe é pedido que aconselhe um país sobre política económica. O país tem quase pleno emprego, o seu crescimento está (…) no seu pleno potencial. Não existe subutilização de recursos – aquilo que os economistas designam de diferencial de produção – e o orçamento do governo está equilibrado mas o nível de dívida está muito acima do objetivo. Tudo coroado por uma política monetária extremamente livre. Esta é precisamente a situação na Alemanha (…) Onde está o livro de economia que defenda que um país assim deveria incorrer num défice para estimular a economia?”

Issing, então, corretamente enfatiza que perante uma infraestrutura pública em degradação e também de investimento privado a despesa pública deveria aumentar, mas as despesas sociais deveriam ser então reduzidas a fim de evitar o aumento da dívida pública. Como se pode ver, não há referência nestas afirmações ao excedente da conta corrente e como chegámos a este excedente. E isto está errado. Não é admissível analisar a estrutura geral de uma economia e deixar de lado elementos importantes que não se deseja abordar.

As afirmações e opiniões acima citadas refletem o tipo específico de raciocínio económico atualmente dominante na Alemanha. Em relação aos decisores políticos, este credo está, naturalmente, mais profundamente enraizado dentro do partido Cristão-Democrata (CDU) e da União Cristã Social (CSU), mas os Sociais Democratas estão também, aparentemente, cada vez mais atraídos por ele. E, naturalmente, a larga maioria do público na Alemanha segue-o.

A origem deste modo de pensamento económico data dos anos 50, ou pelo menos dos anos 70 e 80.  A sua essência encontra registo de entrada no Tratado de Maastricht. Na sua estrutura geral foi estabelecido o predomínio da política monetária com o objetivo de manter a estabilidade dos preços; os outros dois pilares principais da política económica, nomeadamente a política orçamental e a política salarial operam dentro da estrutura geral do enquadramento monetário. A política monetária enquanto limitação orçamental macroeconómica tornou-se o instrumento primordial da política macroeconómica. A tarefa principal da política orçamental é a alocação de recursos económicos do modo mais eficiente dentro do princípio das finanças públicas sãs.  A política salarial é responsável pela consecução de um elevado nível de emprego. Em termos de teoria económica: este é a missão Neoclássica. O cumprimento dos objetivos essenciais macroeconómicos, estabilidade de preços, a alocação dos recursos e o pleno emprego está atribuído separadamente a cada um dos três pilares da política económica. O leitor poderá reconhecer que tal atribuição assenta fortemente na harmonização e equilíbrio induzido e na auto regulação do sistema económico. Intervenções do Estado não são necessárias num enquadramento destes.

A visão oposta é a designada abordagem tipo Missão Cooperativa. Foi o economista holandês Jan Tinbergen quem, já nos anos 50, considerou estes objetivos económicos essenciais como  uma tarefa habitual dos três domínios de política e apelou a uma contínua coordenação entre eles. O ponto de vista teórico que está por detrás da solução cooperativa é inspirada na descrença e negação Keynesianas de que as economias entregues a si mesmas poderão, a longo prazo, produzir resultados económicos e sociais satisfatórios. A abordagem cooperativa não foi prevista no Tratado de Maastricht de 1992 como uma opção política. Foi considerado impraticável por motivos de ordem teórica e prática, embora existam suficientes razões para supor que esta recusa foi tomada por motivos ideológicos.

Os temas de cooperação foram tão somente uma pequena parte das linhas de orientação anuais nos relatórios da Comissão Europeia aprovados pelo Conselho Europeu e apenas com carácter de recomendações. E enquanto as tarefas da política monetária dentro da UEM permaneceram bastante inalteradas desde o Tratado de Maastricht original, as prescrições para a política orçamental foram gradualmente apuradas via Pacto de Estabilidade e Crescimento e, posteriormente, o travão às dívidas europeias, que permite o financiamento do défice em apenas 0,5 % do PIB em tempos económicos de normalidade. Na realidade, isto significa que o principal objetivo de política consiste na criação de um orçamento equilibrado no longo prazo. Em contrapartida, na solução cooperativa, uma parte importante da política económica é atribuída à política salarial. No Tratado de Maastricht não existe qualquer referência à política salarial; a evolução salarial era vista como resultado das forças de mercado. Reconhecidamente, nas orientações anuais de política as políticas salariais são mencionadas e recomendadas, por exemplo, que a subida dos salários reais se mantenha abaixo dos aumentos de produtividade.

Todavia, na cimeira de Colónia em 1999, a política salarial fez expressamente parte do enquadramento de política. Isto foi conseguido sobretudo pelas mãos dos decisores políticos austríacos e alemães, e principalmente pelo então Ministro das Finanças Oskar Lafontaine e seus conselheiros. Com o estabelecimento do Diálogo Macroeconómico (MED) em aditamento à coordenação macroeconómica, ainda que fraca, entre todos os atores da política económica, incluindo os parceiros sociais, foi criado um consenso social-democrata keynesiano. A evolução dos salários nominais nacionais deveria ser orientada para o objetivo do BCE quanto ao nível de preços, ligeiramente abaixo de 2% acrescido da evolução dos aumentos de produtividade nacionais. Esta equação salarial, quase a Regra de Ouro para a política salarial numa união monetária com taxas de câmbio fixas, é por si mesma neutral quanto aos preços, e assegura uma distribuição do rendimento estável, sendo também neutral em termos de emprego. Mas, mais importante ainda no caso de uma união monetária com taxas de câmbio fixas, esta fórmula salarial é neutra em relação à  competitividade internacional. A política salarial juntamente com estas linhas de orientação não cria por si mesma os desequilíbrios macroeconómicos fundamentais que surgiram na UEM.   Escusado será dizer que num ambiente de política económica no qual a importância da competitividade entre estados-membros e versus o resto do mundo é enfatizada como condição  sine qua non para a sobrevivência da UEM, esta regra salarial deveria ser evidente por si mesma e sem necessidade de maior elaboração. Infelizmente, esta fórmula salarial não encontrou entrada na política económica prática porque os governos da UEM não tiveram a visão global e a aptidão para aceitarem essa alteração. Neste contexto, será útil recordar que num sistema de taxas de câmbio perfeitamente flexíveis, os salários que não estivessem em linha com a produtividade seriam eliminados em virtude das movimentações da taxa de câmbios. Assim, a fórmula de Ouro Salarial numa união monetária assegura uma evolução competitiva dos salários, mas não conduz a desequilíbrios importantes entre os países.

Neste contexto, será esclarecedor observar a estrutura das contas financeiras setoriais em 2015: O excedente da conta corrente da balança de pagamentos elevava-se a 8,7% do PIB. O excedente do setor privado era de 8,1% e o excedente do setor público era de 0.7 %. Notavelmente, o excedente das corporações não financeiras era de 4,1% do PIB. Fatores favoráveis como a taxa de câmbio e os preços do petróleo certamente tiveram o seu papel nesta situação. O investimento das corporações estava, todavia, ainda longe de atingir um ritmo satisfatório e as distorções estruturais permaneciam. O instituto alemão de Investigação Económica prevê, no seu último relatório, um excedente na conta corrente da balança de pagamentos em 2020 de cerca de  5,25 % do PIB. De qualquer modo, a questão deve ser colocada e respondida: se com estes parâmetros as habituais reservas contra o financiamento do défice prevalecem.

Na 2ª Parte trataremos de dois fatores fundamentais do desempenho económico alemão: salários e preços.

Texto original em http://www.flassbeck-economics.com/reflections-on-the-german-economy-a-macroeconomic-approach-by-egon-neuthinger/

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