7. Anos 80: Os Coveiros do Novo Mundo / Entrevista com François Cusset: PARTE II

Os socialistas franceses têm mais de 30 anos de avanço sobre a Troika a defenderem as políticas de austeridade.

Crónica sobre os anos 80, sobre “Viva a Crise! “ – Texto 7 – Parte II


(In Blog Article 11, 08/04/2011)

Em 1995, esses movimentismos emergem no lugar de organizações deficientes e inventar novas formas políticas, relacionadas com a vida quotidiana e com aspetos durante muito tempo julgados não-políticos – o domínio cultural, o artístico ou os problemas do desemprego. A questão da luta social já não é somente a defesa do trabalho, que isto seja pelos trabalhadores ou pelos desempregados considerados encontrar um posto de trabalho, mas é também o desemprego enquanto situação de vida. Tudo isso é bastante novo na França e justifica-se a rutura. Embora, no fundo, nada seja interrompido.

Esta década é sempre a nossa, com efeito…

É necessário voltarmos aqui a Michel Foucault que  em  Naissance de la biopolitique, nos previne que o liberalismo e o neoliberalismo não são somente definidos em negativo, com formas minimalistas de governo para deixar atuar as forças do mercado, mas também em positivo, como uma nova maneira de produzir a vida, de instituir as normas, de fazer ter prazer. O regime neoliberal assume a vida, e incita‑nos incessantemente a prosperarmo-nos, a realizarmo-nos. … Se é assim que se define o neoliberalismo, este emerge e bem , de facto, no Ocidente neste momento, ligado à rejeição dos velhos constrangimentos dos anos 1960 e 1970, e assim conduz o jogo até agora.

Mas a uma tal posição, é necessário acrescentar duas grandes mudanças em relação ao impulso inicial. Primeiro, as perturbações tecnológicas do fim do século XX – nomeadamente o aparecimento de Internet, que acelera este movimento individualizando e virtualizando tudo, mas fornece também um espaço público alternativo novo. E seguidamente, o facto que a atual conceção dominante do mundo e o sistema que a acompanha não são estritamente neoliberais: constituem na realidade uma atrelagem estranha entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo ou conservadorismo securitário (6) . Digo “estranha” porque se esquece – e isto parece muito natural desde o 11 de Setembro … – que estes dois movimentos ideológicos não são a priori convergentes. De um lado, há o libertário-liberalismo do grande laisser-faire e as formas de vida a reinventar a partir do momento em que o mercado organiza tudo. E do outro lado, impõe-se um discurso civilizacional agressivo, militarista e intervencionista, centrado em valores religiosos e morais

Desde há dez anos, estas duas correntes fazem causa comum. Certos acontecimentos montados em neve, como o 11 de setembro, justificam esta articulação. Mas nunca se deve esquecer que a fraqueza do sistema dominante está exatamente aí. Que a sua fragilidade reside nestas duas dimensões suscetíveis de entrarem em conflito.

Esta fragilidade no entanto não é de modo nenhum manifesta …

Isso não obsta a sua realidade. Acredito que a coexistência destas duas correntes tem a ver com um cinismo supremo, como um conluio entre o à boca da cena e os bastidores. A ode aos valores – regresso às raízes, à identidade, à Europa ou à América cristã – seria um divertimento espetacular: as elites veem-no como um espetáculo dado à boca de cena e permitindo preservar, nos bastidores, o acordo sobre o essencial, ou seja, sobre o neoliberalismo e os seus apoios públicos, sobre a preservação dos interesses das classes possidentes.

Sois islamófobos ou islamófilos? as pessoas disputam-se, zangam-se violentamente sobre este tipo de pergunta. Este debate de valores convém cinicamente às elites, que sabem que o fundo da questão não está aí, está algures. Recordemos que o Islão é ao mesmo tempo Al-Qaida e Dubaï – seja o integrismo de uma ínfima minoria, e uma tentativa maioritária de conciliar religião de Estado e desenvolvimento económico pós-moderno, acelerado. Recordemos também que vale melhor, para estas elites ocidentais, um Irão sob o controlo dos mollahs, ameaçando Israel e a América de maneira puramente teórica do que um Irão comunista ou terceiro-mundista.

.Para retornar a esta estranha atrelagem … seria necessário talvez falar de biopolítica securitária para descrever esta produção de normas de defesa da vida, em volta das lógicas de criminalização do risco, do princípio de precaução e da produção mediática do medo à escala mundial. Mas o neoliberalismo é também a economia de mercado, a fórmula portanto não é, pois, suficiente…

Não se poderia resumir tudo isto pelos termos de sociedade de controlo?

Num texto famoso, Post-scriptum sur les sociétés de controle, Gilles Deleuze enuncia que a época é dominada por um novo paradigma: o controlo substituiu a disciplina – que é constrangimento imposto ao corpo, obrigação física. As sociedades modernas apoiam-se  assim sobre a divulgação sem fim de um princípio flexível de controlo, operando nomeadamente por delegação em  novas funções. O Instituto de Emprego é uma perfeita ilustração destas novas instâncias de controlo: os seus empregados já lá não estão para fornecer uma ajuda financeira ou para fornecer aconselhamento, estão lá para controlar a existência social e privada dos desempregados. E para se assegurarem que estar no desemprego não seja diferente de estar no trabalho.

VOICI

Acrescente-se a isto a endogeneização da vigilância, de tal modo os indivíduos já integraram a necessidade do controlo. Todos nós o sentimos, quer se trate dos nossos medos sobre a saúde, sobre o aquecimento climático, sobre as catástrofes naturais… Trata-se com efeito de uma nova obrigação feita a cada um, e que cada um se impõe a si-mesmo, de  ter de acrescentar a sua contribuição,  a sua pedra,  a um esforço coletivo de menor risco.

A Internet joga também o seu papel nesta lógica de autocontrole. O Facebook, por exemplo, tornou-se uma maneira para cada um de se assegurar que tem os mesmos modos de expressão e de prazer, as mesmas preocupações anódinas que todos os seus amigos e vizinhos. Não é necessariamente uma homogeneização, mas esta lógica de controlo difunde-se por toda a parte.

Reencontramo-nos bem longe da exuberância dos anos 1980…

Com esta revindicava-se  com efeito o excesso, até ao espetacular, de mau gosto e com o risco de se  ir demasiado longe. O princípio do prazer do empresário, por exemplo, estava ligado ao risco vital, por conseguinte, a  desportos extremos; é muito menos verdadeiro hoje. Penso que o equivalente – o equivalente estrutural, diria Bourdieu – do salto ao elástico ou da escalada de Anapurna nos anos 1980, como sendo o ideal do quadro eficiente, seria hoje o Clube Med Gym… Isto é um meio sem perigo para reforçar diariamente, pouco a pouco, as suas defesas. O neoliberalismo exige doravante que cada um aperte bem as cavilhas de suporte de suspensão e não desperdice as suas possibilidades.

Os anos lantejoulas e das emissões em horário nobre, prime-time, sobre o encanto das empresas não podia durar sempre. Há uma maturação desta amálgama ideológica, que ensina cada um a controlar-se depois de se ter libertado. Desempenha também um efeito geracional: nos anos 1980, este composto é defendido por pessoas que andam na casa dos quarenta anos e retransmitido seguidamente à geração seguinte, que eles matraquearam de modo ideológico e a quem repetiram sobre todos os tons: “Os jovens, não pensem nisso, não venham para as ruas. As barricadas, acabaram-se, acabamo-las para vocês. Sigam antes a revolução mediática, tecnológica, etc.…” Uma vez a informação transmitida, impõe-se um ar mais composto, menos ligado aos casacos do avesso e menos prosélito.

Esta nova geração identifica-se perfeitamente com a sua época?

Digamos, a nova geração   banha-se dentro dela, na sua realidade e nos seus mitos. É necessário de resto sublinhá-lo: a questão da produção de narrativas é crucial na era neoliberal. Não há mais grandes narrativas ideológicas ou utópicas, e é pois necessário que a pequena narrativa individual – à qual se está condenado, dado que apenas subsistem formas de desenvolvimento e de realização individuais – se torne fabulosa. Pelo horror, à American Psycho (7) Pela metamorfose do empresário egoísta em filantropo mundializado, à maneira de Georges Soros ou Bill Gates. Ou pela figura da minoria que vinga os seu pelo seu sucesso – a mulher, o imigrante ou o muçulmano.

Para que a ideologia neoliberal funcione, é necessário que esta se conecte sobre uma dimensão fabulosa, sobre uma qualquer história relevante. Ela fá-lo muito bem: em trinta anos, a capacidade de produzir histórias convincentes, permitindo as pessoas de se identificarem com um coletivo, passa assim da esquerda à direita. É muito notável.

Anteriormente, a direita propunha apenas um sistema de valores, sem dimensão narrativa, quando a esquerda constituía um grande reservatório utópico de histórias possíveis; agora estamos na situação inversa: a esquerda defende certos valores mas não consegue pô-los em histórias tão bem quanto a direita.

As condições de produção das histórias são perturbadas pelo individualismo desenfreado e pela fragmentação das estruturas coletivas, bem como pela culpabilização – qualquer emprego do futuro ou do condicional, próximo da utopia, é considerado suspeito… A única experiência de esquerda que tem renovado este reservatório narrativo situa-se na América do Sul. O que aí se passa hoje é essencial: à escala de um continente e com um verdadeiro dinamismo global, o indigenismo e o comunismo, duas fontes da esquerda que frequentemente se têm combatido, reencontram-se. Há nestas regiões uma real vitalidade das lutas e de narrativas de lutas… A chegada  de Evo Morales à presidência boliviana, que começa por rebeliões de aldeias contra a privatização da água (8) , é aqui exemplar: não há lá nada de ideológico, exatamente apenas da esfera do narrativo.

Em França, a questão do alojamento e da guetização, muito concreta, poderia constituir uma semelhante fonte de histórias; não é este o caso, devido a uma evidente desconexão entre os produtores de discursos à esquerda e as vítimas da guerra social. Esta rutura foi inaugurada triunfalmente pelos socialistas e a sua loucura tecnocrática, no início dos anos 1980.

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Esta rutura é reivindicada. No livro, tu retornas por exemplo à celebração do bicentenário da Revolução francesa, tão desmedida quanto enganadora …

É verdadeiro que a celebração do bicentenário é confiada ao publicitário Jean-Paul Goude: este concebe um gigantesco desfile da história francesa em technicolor, concebido como um anúncio publicitário. Não somente a Revolução francesa acabou, como os historiadores conservadores no-lo martelam apresentando o social e a luta como um longo parênteses a ser novamente encerrado. Mas além disso é celebrada como uma lembrança publicitária, com fantasias, lantejoulas e ambiente neo-pop…

Não se pode – no entanto – reduzir a questão a este exemplo. Um dos primeiros sintomas da viragem ideológica e do regresso à ordem moral da contrarevolução não é o de apagar a história, mas de voltar a ela. É o regresso da história oficial, a história obscena. A história dos vencedores.


Notas:

6. François Cusset faz aqui uma explicita referência à obra de Wendy Brown, Les Habits neuf de la politique mondiale. Néolibéralisme et néoconservatisme (Les Prairies Ordinaires, 2007).

7. American Psycho, romance mítico do escritor americano Bret Easton Ellis, onde descreve a história de um trader mergulhando pouco a pouco numa loucura assassina. ´

8. Trata-se da batalha da água, ou seja quatro meses (de Janeiro a Abril de 2000) de luta dos habitantes de Cochabamba para fazer abortar a privatização do sistema municipal da gestão da água.


(O oitavo texto desta série será publicado amanhã, 28/06/2017, 22h)


Texto original aqui

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