Crise da democracia, crise da política, crise da economia: um olhar de alguns analistas não-neoliberais – 15. Reflexões sobre a economia alemã. Uma abordagem macroeconómica. Parte 3: Reformando as economias. Por Egon Neuthinger

Seleção e tradução de Francisco Tavares, revisão de Júlio Marques Mota

 

Crise da democracia texto 13 analise ciclo economico

15. Reflexões sobre a economia alemã. Uma abordagem macroeconómica.

Parte 3: Reformando as economias.

Por Egon Neuthinger, economista, antigo funcionário do Ministério das Finanças da Alemanha e colaborador em diversas instituições de investigação.

Publicado por Flassbeck-economics em 20 de junho de 2016 flassbeck_logo

 

1.A necessidade de reformas. Mas quais reformas, e por quem?

Na parte 1 desta série de textos, apresentámos os desequilíbrios na economia europeia e o papel que a moderação salarial alemã desempenhou na sua criação. Na parte 2, debatemos a evolução dos preços e salários na Alemanha.  A terceira parte começará por fazer as muito necessárias propostas de reforma. A maioria dos países da UEM mostram presentemente ligeiras taxas positivas de crescimento, em média de uns 1,5 %. O crescimento em França e Itália é positivo, mas tímido. Todos estes países continuam com elevados défices públicos – principalmente a Grécia, mas também a Espanha, Portugal, França e Itália. Enquanto na Alemanha o excedente da conta corrente da balança de pagamentos estabiliza a economia, nos países em crise o equilíbrio do setor público continua a desestabilizá-los. Por último, mas não menos importante, todos os países em crise têm elevadas taxas de desemprego, para cima de 10% em França, Itália e Portugal, à volta de 20% em Espanha e ainda mais elevada na Grécia.

Este insatisfatório desenvolvimento em curso em alguns países da UEM, incluindo a França e a Itália, fortalece o argumento de que estes países deveriam iniciar ou continuar a implantação de reformas nos seus mercados de trabalho, de produto e dos serviços e, se necessário, ajustar os seus custos laborais. Existem sempre áreas na economia nas quais políticas competitivas e de crescimento fundamentadas conduziriam a melhores resultados do mercado. Políticas adequadas de oferta são sempre úteis. Todavia, tais reformas são difíceis de atingir sem afetar negativamente a procura, que é, claro, crucial. O conselho de alguns economistas alemães para que a França e a Itália e outros países simplesmente sigam o exemplo alemão tem de ser questionado: deverão estes países conseguir excedentes nas suas contas correntes como na Alemanha e consegui-lo com idênticas restrições salariais em linha com cortes na despesa pública? Isto pode ser possível? Não esqueçamos que a procura interna na Alemanha também se tornou fraca quando as reformas estruturais (moderação salarial e flexibilização do mercado de trabalho) foram implantadas. Conseguiu uma elevada procura do exterior e excedentes na conta corrente, mas não conseguiu o forte impulso da procura interna que a maioria dos observadores previa. É, em qualquer caso, altamente duvidoso que a França e a Itália, dada a sua produção e estrutura da procura, estivessem aptas a gerar uma procura do exterior consideravelmente mais elevada para os seus produtos, como a Alemanha conseguiu, e criarem um saldo substancialmente positivo na suas contas-correntes.

Em relação à procura interna, a experiência dos países da periferia não confirmou a previsão de que as reformas estruturais impulsionassem a procura interna. Existe, em vez disso, o perigo de que a França e a Itália vivam para terem o mesmo destino que esses países: elevada e duradoura recessão e elevado desemprego. Por conseguinte, a França e a Itália deveriam ser aconselhadas a ter uma dupla abordagem: utilizando medidas do lado da oferta e do lado da procura. Como a procura interna é comparativamente maior em França e em Itália do que na Alemanha (em percentagem do PIB), políticas restritivas orçamentais e outras no setor privado teriam efeitos negativos imediatos na procura interna e, consequentemente, no crescimento e no desemprego.

A lógica económica diz-nos que nem todos os países podem alcançar excedentes na conta corrente da balança de pagamentos – um excedente de um país é o défice de outro. É também difícil antever como reagirão as forças de mercado. O exemplo de países mais pequenos da UEM, nos quais foram implantadas reformas estruturais restritivas como parte do pacote de medidas de austeridade, não mostra que isso tenha trazido uma real recuperação desses países. Na realidade, o inverso é o que se passou. Isto deveria tornar-nos a todos muito prudentes. Fortes argumentos apoiam a tese de que sem uma alteração de relançamento na política económica alemã, através de salários mais elevados e maior défice público (primordialmente em infraestruturas) juntamente com significativos cortes nas taxas dos impostos sobre os grupos de rendimentos baixos e médios, será bastante duvidoso que ocorra uma significativa recuperação em França ou em Itália ou em qualquer outro país da UEM. Isto é especialmente verdade hoje, em tempos de pressão deflacionária e de estagnação.

Apesar de os salários alemães terem, recentemente, crescido mais em linha com a Regra de Ouro (crescimento da produtividade mais meta de inflação ligeiramente abaixo de 2 %), ainda existe um grande fosso negativo no nível salarial global alemão. Avaliado á luz da Regra de Ouro – o acordo original – o nível geral dos salários alemães deveria ser entre 15 e 20 % mais elevado do que é hoje. Claro que o número depende do ano tomado como base, mas é definitivamente verdade se calculado desde o início da UEM. No que respeita aos ajustamentos necessários, o estado atual das contas financeiras de todos os setores macroeconómicos deveria ser tido em conta. Na Alemanha, além do tradicional excedente dos agregados familiares, o setor das empresas tem também um saldo financeiro positivo. Se neste ambiente, o setor público (o governo) também se empenha em atingir um orçamento equilibrado ou mesmo excedentário, a pressão exercer-se-á no setor exterior para absorver as poupanças alemãs. É útil recordar aqui que na sequência do Procedimento por Desequilíbrio Macroeconómico (MIP) dos países da UEM, um excedente da conta corrente até 6% do PIB não está estabelecido como sendo um desequilíbrio fundamental.

É comum mas, não obstante, verdade: os países com um grande setor público e dívidas ao exterior são criticados por “viverem para além das suas possibilidades.” Aparentemente, a Alemanha, o país com o mais elevado excedente da conta corrente, “vive muito abaixo das suas possibilidades.” Esta aberta assimetria é raramente mencionada pela corrente económica dominante na Alemanha. O remédio, tal como proposto por esta corrente, de que “os países com défices no setor público e na conta corrente da balança de pagamentos têm de fazer ajustamentos e os países com saldos positivos nessas contas não têm de fazer ajustamentos”, é assimétrico e não aceitável para os países parceiros. O problema do ajustamento – quem deve ajustar e quem não deve – é um velho e controverso tema, que é determinado pelo contexto de poder e não pelo económico. Na realidade, os países mais fracos têm de ajustar-se. Esta é a má e unilateral política económica. A Alemanha é um dos maiores países credores. O seu poder económico dominante compra poder político. Desequilíbrios económicos conduzem a desequilíbrios de poder. Todavia, existem sinais de que esta constelação pode estar a mudar. Os atuais desequilíbrios económicos são tão disfuncionais que podem esperar-se sérios conflitos entre credores e devedores. Por quanto tempo esta instável constelação, que asfixia a recuperação na Europa, poderá durar? É possível que futuros conflitos possam por em perigo a posição económica e política da Alemanha no médio ou longo prazo? Será a Alemanha eventualmente forçada a pagar um preço elevado pela sua posição de credor? A corrente dominante na Alemanha não presta atenção, ou raramente o faz, a estas considerações e questões, apesar de elas serem, claro, absolutamente cruciais.

2.Uma nova concepção de políticas para a Alemanha

Não obstante o silêncio da corrente dominante e a falta de vontade dos decisores politicos de tratarem da principal causa dos desequilíbrios macroeconómicos, é possível implantar uma política económica que, em última análise, conduza a resultados satisfatórios. É necessário um correto mix de políticas monetárias e orçamentais, bem como ações microeconómicas de operadores do mercado. Seria de esperar que a comunidade científica académica pressionasse no sentido de uma mudança, mas a corrente dominante não altera a sua posição rapidamente. Contudo, existe também uma evolução positiva: um sempre crescente número de economistas e representantes de outras ciências sociais (mais de tendência heterodoxa) têm ficado cada vez insatisfeitos com a visão da corrente dominante. Mas, existe um obstáculo de ordem psicológica a ultrapassar. É a tradicional crença na sociedade alemã de que os excedentes de exportação e um bom desempenho exportador fazem parte do desempenho alemão em geral.

O problema de que os nossos excedentes são os défices de outros e de que prejudicam a procura no exterior raramente é mencionado. Neste âmbito deve assinalar-se que a estrutura produtiva da economia alemã, nas últimas décadas, orientou-se muito para a procura vinda do exterior. Esta situação foi fortemente influenciada pelas políticas monetárias alemãs, que estão muito orientadas para a estabilidade dos preços. Estas políticas refrearam a procura interna, fortaleceram a competitividade internacional e orientaram as empresas alemãs para os mercados externos. Neste contexto, as inúmeras críticas alemãs da atual política monetária pouco convencional do BCE são altamente impressionantes. Em condições normais, uma adequada e consistente manipulação das taxas de juro pelo banco central é, muitas vezes, suficiente para estabilizar a economia. Na presente situação de taxas de juro zero ou até negativas e uma armadilha de liquidez global, a política monetária esgotou-se. É, por conseguinte, absolutamente necessário ativar políticas orçamentais (investimentos públicos).

3. Recomendações de política

A nossa análise leva-nos a formular algumas recomendações de política. Uma nova visão e concepção para a política salarial deveria tornar-se um elemento proeminente na política económica da UEM. O desenvolvimento interno da UEM registado até agora deveria ter convencido já economistas e decisores politicos de que políticas salariais desorganizadas e descoordenadas constituem obstáculos graves à convergência dentro da UEM, um perigo real para o seu equilíbrio interno e uma causa constante de desequilíbrios macroeconómicos. A omissão da política salarial no catálogo de políticas do Tratado de Maastricht e, mais tarde, o desprezo da Regra de Ouro teve duras consequências para a Europa. A Alemanha foi sempre a força condutora por detrás da política da UEM. A recusa e e marginalização da Regra de Ouro para a política salarial dentro dos países da UEM é sinal de que os decisores políticos e conselheiros consideram a política salarial como um instrumento para ganhar vantagens competitivas através de uma política de moderação salarial. A função da política salarial numa união monetária e com moeda comum é, assim, gravemente vista de forma totalmente errada. Em tal meio ambiente, o uso divergente da política salarial é a raiz de enormes e duradouros desequilíbrios entre as economias dos países-membros. As políticas salariais que não sigam a Regra de Ouro são somente um dispositivo de apanhar o que vier à rede. Este não era o acordo original e é má política económica. A concepção da Regra de Ouro era para, explicitamente, impedir o surgimento de desequilíbrios macroeconómicos. Isto não quer dizer que não existam outros fatores que também provocam desequilíbrios, mas aqueles causados por distorções salariais são os mais importantes. As normas de equilíbrio orçamental nestas circunstâncias nada fazem para a restauração do equilíbrio entre países. A primeira recomendação de política e, consequentemente, evidente: a evolução salarial dentro da UEM necessita ser coordenada e obedecer à Regra de Ouro Salarial.

Segundo, a inclusão da política salarial no catálogo de políticas concretas da UEM deve ser complementada com uma alteração na abordagem política que tem sido seguida, em direção de uma política cooperativa distinta, bem longe do padrão dominante neoclássico que atribui estabilidade, pleno emprego e alocação de recursos separadamente aos principais atores macroeconómicos.

Em vez disso, os grandes objetivos de política económica deveriam ser uma tarefa comum a ser prosseguida pelos três decisores políticos macroeconómicos. Isto implica muito mais e constante coordenação, harmonização e sincronização das medidas de política. Tal coodernação e, na verdade, cooperação, poderia proporcionar um muito melhor clima para as necessárias, embora socialmente dolorosas, reformas. Tais reformas poderiam encontrar apoio politico mais rapidamente num ambiente cooperativo do que no grave clima dos ‘riscos morais.’ A cooperação deverá ser gerida numa espécie de “do ut des”, ou seja, ‘dou para que me dês’ [nt: equivalente ao popular “toma lá, dá cá”].

É esta visão uma apreciação ingénua do mundo? Implica certamente que a arquitetura [do tratado] de Maastricht e outros enquadramentos políticos, tais como o “six pack”[1] [alterações ao Pacto de Estabilidade e Crescimento], teriam de ser alterados no fundamental. A missão de cooperação do Consenso Social-Democrata Keynesiano necessita certamente de contínua coordenação política e é, consequentemente, uma labuta árdua e cansativa. Mas este é também o caso da atual prática política.

Texto original em: http://www.flassbeck-economics.com/reflections-on-the-german-economy-a-macroeconomic-approach-part-3-reforming-economies-by-egon-neuthinger/

NOTA

[1] N.T. Principais alterações introduzidas nas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento pelo “Six-Pack” (cinco regulamentos e uma diretiva da UE):
1. Monitorização dos desequilíbrios macroeconómicos em toda a UE
Este sistema ajuda a detetar numa fase precoce eventuais problemas económicos, tais como perda de competitividade ou práticas insustentáveis. Se forem detetados desequilíbrios inaceitavelmente elevados, pode ser acionado um procedimento por desequilíbrio excessivo. Se um Estado-Membro pertencente à área do euro não tomar, de forma reiterada, medidas no sentido de corrigir os desequilíbrios identificados, podem ser aplicadas multas como último recurso.
2. Garantia da disciplina orçamental (tanto na vertente preventiva como na vertente corretiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento)
  • definição do conceito de “desvio significativo” em relação ao objetivo de médio prazo a atingir por cada país em termos de equilíbrio orçamental
  • maior rapidez e facilidade na aplicação do procedimento por desequilíbrio excessivo – pode ser lançado se o rácio da dívida pública exceder 60% do PIB
  • introdução de sanções graduais para os Estados-Membros da área do euro, que podem atingir 0,5 % do PIB em caso de ausência reiterada de medidas
3. Introdução do Semestre Europeu
O “Six-Pack” sincronizou os calendários dos processos existentes de coordenação das políticas económicas reunindo-os num único procedimento, conhecido por Semestre Europeu.
O Semestre Europeu permite que os Estados-Membros alinhem melhor os seus objetivos políticos e tenham em conta, numa fase precoce, os objetivos e recomendações estratégicos da UE nos processos nacionais de definição de políticas.
Atos jurídicos do “Six-Pack”:

 

 

Leave a Reply