Populismo e Democracia: O populismo é o “grito de dor” da moderna democracia representativa. Ouçam-no! – 2. O populismo é democrático: Maquiavel e a ganância das elites (2ª parte). Por Lorenzo Del Savio e Matteo Mameli

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

2. O populismo é democrático: Maquiavel e a ganância das elites (2ª parte).

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Mameli e Del Savio

 

Por Lorenzo Del Savio e Matteo Mameli(*), publicado por MicroMega Il Rasoio di Occam em 13 de fevereiro de 2014

 

(continuação)

 

Os argumentos políticos do Maquiavel democrático

O potencial profundamente democrático do pensamento de Maquiavel poderia não ser evidente a quem se limite a uma leitura superficial da sua obra mais famosa, o Príncipe, com os seus preceitos sobre a conquista e sobre a gestão do poder que pode, como é sugerido por Dario Fo num conhecido e muito bonito sketch, talvez ser utilizado com objetivos defensivos pelas potenciais vítimas.

São em contrapartida os Discursos que constituem o principal objeto da disputa interpretativa entre os neo-republicanos e McCormick. Para os neo-republicanos os Discursos são o principal elo de ligação entre o pensamento romano e a modernidade política, à qual transmitem um ideal de liberdade vista esta como o usufruto passivo de uma condição na qual a segurança pessoal é garantida pela lei, que tem a função primária de proteger os cidadãos das arbitrariedades das maiorias violentas e imprevisíveis (9). Para McCormick, os Discursos são,  em vez disso, uma longa análise das virtudes das instituições populares da República romana que melhor garantem a liberdade para a maioria e para a proteção da República relativamente à ganância opressiva das elites políticas e económicas.

Entre outras coisas, a contribuição de Maquiavel permite salientar a potencial insuficiência dos mecanismos eleitorais como meio de controlo popular sobre o poder detido pelas oligarquias, em contraste, por conseguinte, com a teoria neo-republicana baseada na representação e nas eleições entendidas como atos de autorização das decisões políticas. Esta contraposição teórica era já evidente na época do Renascimento, onde a disputa sobre o destino da República florentina opunha de um lado os pensadores aristocráticos e elitistas – como Guicciardini, que a partir da explícita condenação dos humores e das capacidades do povo, preferia governos “pequenos” sobre o modelo da constituição da República de Veneza – e, por outro lado, Maquiavel, que tomava como referência a República de Roma para propor correções de contestação à inevitável deriva oligárquica das repúblicas. Maquiavel une, por conseguinte, numa visão profundamente realista a inevitabilidade sociológica das oligarquias e um julgamento fortemente negativo sobre as consequências do seu poder quando este poder permanece incontrolado.

É este Maquiavel que, na nossa opinião, pode servir para se analisar as instituições políticas das democracias contemporâneas. O agnosticismo a propósito do conflito de classe entre oligarquias e povo está implícito nas instituições atuais. Isto explica os limites democráticos destas mesmas instituições, especialmente nas situações em que a riqueza e o poder estão concentrados nas mãos apenas de uns poucos indivíduos. Por conseguinte, este discurso assume hoje significado especial, tendo em conta os dados sobre o forte crescimento nestes últimos trinta anos das desigualdades económicas em muitas nações, incluindo nas democracias ocidentais como a Itália (10).

Queremos sublinhar aquilo que, na nossa opinião, julgamos mais desconcertante no Maquiavel dos Discursos, a saber, a aberta admiração pela história extremamente conflituosa da República romana. É ao conflito, a um certo tipo de conflito, que Maquiavel atribui o sucesso da República romana, sucesso que no mundo clássico se atribuía ao justo equilíbrio entre os elementos popular, senatorial e monárquico da complexa constituição romana (11). A tese de Maquiavel era provavelmente surpreendente aos olhos dos seus próprios contemporâneos, os quais estavam familiarizados com a teoria política comunal que tomava a concórdia civil como sendo o supremo valor republicano. Realmente Maquiavel partilha com os seus imediatos antecessores a condenação dos “tumultos” civis, mas distingue claramente a luta de fações, devido ao facciosismo das famílias oligárquicas, que é, em todo o caso, de condenar, da salutar “discórdia” entre os humores da maioria e o desejo de poder e de prestígio de uns poucos (12)

A acumulação de riquezas e de poderes é para Maquiavel uma consequência inevitável da liberdade económica e pessoal concedida pela constituição republicana. Com igual necessidade, as duas classes sociais que assim se constituíram – as oligarquias de um lado e o resto dos cidadãos por outro – são caracterizadas por interesses e aptidões divergentes, que Maquiavel descreve com abundância de detalhes e com uma clara simpatia para com o povo. Os ricos tendem inevitavelmente a aumentar o seu poder opressivo, a fim de aumentar a sua fama e a sua riqueza, enquanto as pessoas comuns estão antes interessadas em defender a liberdade e os poucos haveres, sempre ameaçados em face dos poderosos , que o seu humilde estatuto social lhes pode garantir (dos Discursos I.7) (13). Em apoio desta tese, Maquiavel cita a violenta e mortífera reação da aristocracia romana face à tentativa de reformas e de redistribuição das terras agrícolas defendidas pelos Graco [os irmãos Tibério e Cayo, cujo pai fez carreira política sob a proteção dos Cipiões] (Discorsi I.5 e Discorsi I.37), à qual contrapõe a pacífica secessão da plebe como reação aos vexames dos patrícios e à exclusão da vida política nos primeiros anos da república (Discorsi I.4 e Discorsi I.40). É desta contraposição entre os diferentes desejos das multidões e das oligarquias que Maquiavel conclui que “os desejos dos povos livres, raramente são nocivos à liberdade porque esses desejos são o resultado ou de serem oprimidos, ou do medo de virem a ser oprimidos.” (Discorsi I.4).

Maquiavel insiste particularmente sobre a bondade do julgamento político do povo para defender esse direito das críticas que mais tarde se encontram na tradição guicciardiniana e do temor mesmo dos neo-republicanos quanto às maiorias ignorantes, preguiçosas, opressivas e às vezes violentas. Algumas das ideias que Maquiavel emprega são inspiradas pelo pensamento antigo e vão na direção de instituições nas quais o poder de decisão é confiado largamente ao povo e isto na base da variedade de perspetivas e de abordagens que a inclusão das classes populares garante ao governo público. Contudo, o argumento mais original baseia-se no melhor conhecimento pela parte popular dos perigos gerados pela ganância dos poderosos e no interesse prioritário que os cidadãos comuns têm pela liberdade pessoal (Discorsi I.58). Maquiavel reconhece os limites da virtude e das competências das pessoas comuns mas, de uma forma completamente moderna, sugere que os problemas devidos a tais limites poderão ser plena e naturalmente amortecidos dentro de instituições deliberativas genuína e plenamente participativas, tomando como exemplo o caso em que a plebe romana tinha lutado duramente para obter o direito à eleição a uma certa magistratura tendo seguidamente escolhido para esta posição um membro da aristocracia, dando uma demonstração de razoável imparcialidade. A lição metodológica de Maquiavel é aqui muito importante: mesmo quando se reconheça os perigos do populismo – que são geralmente exagerados pelos teóricos da oligarquia – eles nunca deveriam sempre ser contrapostos a um sistema político no qual peritos iluminados gerem virtuosamente o poder, mas ao poder das oligarquias tal como como nós as conhecemos da história, compostas por pessoas que pertencem aos potentados económicos ou técnicos e tecnocratas orgânicos pertencentes a estes mesmos potentados. Por mais que estes peritos possam dizer – e mesmo acreditar – que querem prosseguir o bem comum, as suas tentativas de prosseguirem este bem comum estão inevitavelmente, e às vezes involuntariamente, ancorados aos seus interesses privados e ao seu desejo de prestígio e de reconhecimento político.

Nesta base deve ser reconsiderada a importância e a possível atualidade das instituições populares que Maquiavel discute. Guicciardini tinha observado que as eleições eram um instrumento elitista altamente funcional: garantiam a pontual ratificação pelos populares das deliberações que “os melhores” (ou seja a elite) tomavam autonomamente. McCormick reconhece na interpretação eleitoralista do controlo popular típica de Guicciardini aquela que se tornará a seguir a teoria representativa da democracia nas mãos dos constituintes americanos ou, mais radicalmente, a teoria da seleção da elite em Schumpeter (14). Os recursos exigidos na competição eleitoral excluem de facto a parte popular da vida pública executiva, deixando às multidões um papel inteiramente passivo e de pura “autorização” das decisões políticas tomadas por outros. Não é por acaso que Maquiavel contrapõe às eleições o sistema de seleção das magistraturas políticas por sorteio, difundidas na Atenas clássica e de um modo mais limitado na República florentina. A lotocracia pelo menos evitava alguns dos mecanismos que permitem à elite ter mão livre na vida política, como em especial a maior capacidade dos pertencentes à elite de poderem mobilizar recursos para obter o consenso publico. O sorteio para alguns cargos públicos torna concreta a possibilidade de que cidadãos estranhos às oligarquias consigam ocupar tais cargos, uma eventualidade largamente apenas teórica, mesmo nos sistemas nos quais os cargos são formalmente contestáveis por cada um dos pretendentes. Nas repúblicas antigas, um tal sistema tinha a vantagem adicional de induzir uma conduta cautelosa nos “poderosos”, que podiam recear encontrar cidadãos de base popular em posições proeminentes (15).

Uma outra instituição da República romana que Maquiavel considera muito positivamente é o tribunato: um cargo político reservado ao povo com o objetivo principal de limitação do poder das magistraturas executivas. O tribunato tem características inteiramente estranhas aos cargos das modernas repúblicas democráticas, dado que se trata de cargos reservados ao povo e é, assim, uma magistratura explicitamente “classista”. Esta solução não cristaliza o estatuto subordinado da parte popular mas, reconhecendo o caráter inevitável do conflito e a dominação da elite, fornece à parte popular um importante meio de contestação. Além disso, os poderes típicos do tribunato não se limitavam ao direito de veto, solução que configuraria um sistema político no qual a elite governa e a maioria dos cidadãos tem um papel meramente passivo e reativo, mas incluía poderes de apresentar propostas. Em Roma, o tribuno podia convocar as assembleias populares e impor ordens do dia populares à discussão no Senado (16).

 

A importância contemporânea do Maquiavel democrático

A natureza “classista” do tribunato encarna uma descrição da vida política em termos de conflito entre grupos caracterizados socioeconomicamente que parece adaptada às circunstâncias atuais. O povo para Maquiavel inclui todos que não pertencem às fileiras do poder e que não têm por conseguinte recursos suficientes para prosseguir os seus interesses reencaminhando as instituições republicanas. O povo, por conseguinte, nas repúblicas contemporâneas como no tempo de Maquiavel, inclui a imensa maioria dos cidadãos. Isto permite continuar a utilizar a útil linguagem de conflito – útil porque identifica os mecanismos de dominação que deveriam ser eliminados ou, pelo menos, controlados – num contexto como o atual que é extremamente plural do ponto de vista dos processos produtivos. Trata-se com efeito de um contexto em que muitos dos mecanismos de opressão atingem até mesmo os trabalhadores autónomos, os pequenos e médios empresários, que fazem parte da chamada economia do conhecimento [knowledge economy], etc. Ou seja, para dizê-lo de uma forma bem mais simples, nesta conceção, significativamente diferente da vulgata marxista que a muitos pode vir à cabeça logo que se fala de classes, há apenas duas classes: a dos 99% a que se referem os militantes de Occupy Wall Street quando dizem “we are the 99%” e a restante, ou seja, os 1% mais ricos, os que pertencem às oligarquias que controlam de forma direta o poder económico, financeiro e político. Se os números são seguramente ou não de 99 contra 1 não tem aqui nenhuma importância. O valor simbólico permanece.

As soluções institucionais que dão poder direto às multidões podem condicionar, de acordo com Maquiavel , o poder excessivo das oligarquias, e o florentino propõe mesmo, de forma sub-reptícia, a sua instituição aos seus amigos aristocratas, aos quais os Discorsi são dedicados, usando como pretexto presumidas vantagens que a elite retiraria em termos de glória e até mesmo militar. Mas deixando de parte os pretextos e excluindo evidentemente qualquer motivação militarista, preconizamos que soluções análogas podem ser imaginadas, mesmo para as constituições contemporâneas, que devem enfrentar, hoje como aos tempos de Maquiavel e da República romana, os problemas ligados à concentração do poder. Mesmo em Itália, embora com características que lhe são próprias, o problema é grave. Basta reparar com atenção nas portas giratórias entre a finança, a grande indústria e a política, através das quais alguns dos nossos Primeiros-Ministros mais recentes ocuparam importantes posições em instituições de consultoria financeira e em bancos de investimento. Um tal fenómeno é apenas o exemplo mais evidente dos múltiplos mecanismos que ligam estreitamente o poder económico e financeiro às alavancas das decisões políticas. A sistemática entrega dos poderes de soberania a estruturas supranacionais e a bancos centrais completamente desligados do controlo democrático é talvez o aspeto mais preocupante de um tal sistema de influências, pelo menos se considerarmos o impacto das políticas monetárias, económicas e comerciais sobre a condição e as perspetivas da maioria das pessoas.

(continua)

Lorenzo Del Savio e Matteo Mameli, Il populismo è democratico: Machiavelli e gli appetiti delle élite. Texto disponível em: http://ilrasoiodioccam-micromega.blogautore.espresso.repubblica.it/files/2014/02/machiavelli-populismo.pdf

Autores:

(*)Lorenzo Del Savio: Doutorado em “Ethics and Foundations of the Life Sciences” na Universidade de Milão (Escola Europeia de Medicina Molecular). Atualmente é investigador pós-doutorado na Universitaetsklinikum Schleswig-Holstein em Kiel (Alemanha), trabalhando em projetos científicos na área da biomedicina, centrando os seus interesses na bioética, filosofia da tecnologia, teoria política e evolução humana. Vd https://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/philosophy/people/staff/associates/visit/Del-Savio.aspx

(*)Matteo Mameli: Licenciado em Filosofia pela Universidade de Bolonha e doutorado em Filosofia pela Universidade de Londres. É atualmente Leitor de Filosofia no King’s College Londres; foi investigador na London School of Economics e no King’s College da Universidade de Cambridge; é membro eleito do Conselho do Royal Institute of Philosophy. É também membro do Conselho editorial do jornal académico Topoi. (Vd http://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/philosophy/people/staff/academic/mameli/)

 

NOTAS

(9) Veja-se por exemplo Guarini E, “Machiavelli and the crisis of the Italian Republics” (pg. 28) in Bock G, Viroli M, Skinner, Q (op. cit.).

(10) Consulte-se o Almanacco di Economia di Micromega, “Il ritorno dell’eguaglianza”, de 03/2013.

(11) Veja-se o livro VI da Storie di Polibio.

(12) Veja-se também Bock G. “Civil discord in Machiavelli’s Istorie Fiorentine” in Bock G, Viroli M, Skinner Q (op. cit.).

(13) Referiremos as passagens relevantes dos Discorsi indicando respetivamente o número do livro e do capítulo.

(14) Schumpeter J, Capitalism, Socialism and Democracy, Harper and Brothers, 1947; particularmente o capítulo XXII.

(15) Sobre a lottocrazia veja-se por exemplo Guerriero A, “The lottocracy”, Aeon Magazine, 23 January 2014, http://aeon.co/magazine/living-together/forget-elections-lets-pick-reps-by-lottery/

(16) De tais poderes contestatários talvez se possam ver vestígios em alguns instrumentos da Constituição da República Italiana, em particular o referendum de revogação e a iniciativa abrogativo e a iniciativa legislativa popular. Todavia, estes instrumentos são limitados e falta-lhes, além disso, na forma como estão estruturados, aquele elemento em que insiste Machiavelli, a saber, o facto de deverem ser instrumentos institucionais aos quais a elite não tenha acesso direto.

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