12. O ano de 1983: A « viragem para as políticas de rigor » em questão – PARTE II

Contudo, 1983 parece ser o momento da viragem para a política de rigor, aquele em que se concretiza a mudança do campo da ideologia para o campo da realidade económica, em especial porque é o momento onde a soberania económica dos Estados é verdadeiramente posta em causa pelo ambiente internacional.

Os socialistas franceses têm mais de 30 anos de avanço sobre a Troika a defenderem as políticas de austeridade.

Crónica sobre os anos 80, sobre “Viva a Crise! “ – Texto 12 – Parte II

(Por Floriane Galeazzi e Vincent Duchaussoy, 02/05/2011)

A  CONDICIONALIDADE  POLÍTICA EXTERNA

A partir do fim do verão 1982, a viragem operada em junho por ocasião da segunda desvalorização aparece insuficiente. Apesar da força de certas medidas faróis, à imagem do bloqueio dos preços e dos salários, a nova desvalorização e o plano de acompanhamento não permitem de sanear verdadeiramente a situação económica caótica contra a qual o país é confrontado.

Sair do Sistema monetário europeu (SME)?

Após uma curta acalmia, o franco permanece um alvo privilegiado dos especuladores, obrigando Banque de France a mobilizar uma parte não negligenciável das suas reservas para apoiar a moeda nacional. Enquanto a necessidade de uma nova viragem, ou antes uma acentuação da viragem já esboçada em junho, parece evidente, um debate vai agitar as cúpulas do poder. Em face da perspetiva de uma política de austeridade que não diz o seu nome e que poderia revestir os traços de uma negação da linha seguida desde Maio de 1981, alguns vão tentar promover não uma política verdadeiramente outra, mas outro modo operacional. Assim constitui-se um grupo informal de homens políticos e de membros da sociedade civil – economistas nomeadamente – em apoio ao Presidente. Estes são regularmente ouvidos por François Mitterrand, no Eliseu.

Estes “visitantes do serão” – nome que lhes dará Pierre Mauroy – propõem dar outro conteúdo à escolha decisiva que se perfila, acompanhando o rigor com uma saída do franco dos Sistema Monetários Europeus (SME). Certamente, a moeda nacional ficaria assim entregue a si-mesma, à sua própria força, e teria assim que enfrentar uma vaga forte de especulação mais vasta ainda e que seria acompanhada pela necessidade de uma política de rigor ainda mais reforçada. Mas a moeda nacional libertar-se-ia ao mesmo tempo dos critérios de convergência impostos pelo SME. O Estado teria assim as mãos livres para efetuar a política económica e monetária que desejasse.

Sobre o plano político em contrapartida, uma tal saída do SME não viria ela a torna responsável a Europa – e particularmente a Alemanha – da mudança de orientação política e económica intervinda em França? É o discurso que desejam abertamente ter alguns destes “visitantes do serão ”. Face ao risco de comprometer os progressos da construção europeia e reavivar tensões escondidas com o vizinho alemão, o presidente Mitterrand tomará in fine a decisão de manter o franco no SME. Sobre este ponto, os pareceres dos testemunhos divergem. Para alguns, o presidente terá hesitado até ao limite; para outros, tomou esta decisão desde o início mas escondeu-o dos partidários da saída por razões de tática política. Pouco importa, finalmente, o momento em que esta decisão foi tomada. Esta vai permitir dar um conteúdo positivo à política de rigor, que muitos socialistas percebem como uma renúncia, se não for uma negação. A Europa portanto será colocada, desde então, no centro das prioridades do novo governo, tanto quanto a presidência francesa do Conselho europeu ao primeiro semestre do ano 1984 permitirá pôr rapidamente em relevo a ação da França em prol da construção europeia. É também um alívio para a Alemanha, a qual exigia à França que adotasse uma política económica mais conforme à efetuada pelos seus principais parceiros, precisamente numa preocupação de convergência.

O papel da Alemanha

A política efetuada na França desde maio de 1981 valeu ao país algumas de recomendações urgentes por parte de certas instituições comunitárias, que vêem nela a ameaça de uma distensão das relações entre a França e a Alemanha, tradicionais motores da construção europeia. Herança da sua História e do traumatismo nascido da queda da República Weimar, a Alemanha é visceralmente ligada a uma política de gestão rigorosa das finanças públicas. Uma nota redigida em dezembro de 1981 pelos serviços da embaixada da França na Alemanha resume a opinião dos meios económicos e da opinião pública alemã sobre a política económica efetuada na França: “A nível da filosofia das instituições, e ainda mais do vocabulário, a quase totalidade dos atores da vida económica permanece visceralmente ligada aos conceitos da economia liberal. […] A política económica francesa realiza um esforço indispensável de convergência, mas tenta-o numa conjuntura internacional que torna o sucesso improvável. […] Contrariamente à convergência procurada na CEE, a política económica francesa é um fator de divergência”

Na conceção da política económica e monetária da Alemanha, o banco central alemão (Bundesbank) desempenha um papel preponderante. Não é por conseguinte surpreendente observar que nas instituições comunitárias, o Comité monetário e o Comité dos governadores de bancos centrais da Comunidade Económica Europeia (CEE) estão entre os mais críticos quanto política efetuada pela França. É particularmente visado o alargamento do défice público, o qual ameaça aos olhos dos Alemães a convergência necessária para o bom funcionamento do Sistema monetário europeu. Ora, a Alemanha, nomeadamente através do Bundesbank – único banco central que é independente – goza então cada vez mais de uma audiência preponderante no seio das suas instituições. Cada vez mais, a Alemanha acentua as suas observações e exerce uma verdadeira pressão política a fim de impor ao governo francês que adote uma política mais restritiva, de forma a acalmar os temores de Além-Reno.

É por conseguinte também em relação à esta relação de forças desencadeada com o vizinho alemão que é necessário compreender a escolha – mais político do que económica – de manter o franco no SME. Se, em qualquer hipótese, as consequências económicas de tal saída pudessem ser enfrentadas, as consequências políticas que teria feito pesar sobre o par franco-alemão e a perenidade da construção europeia revelar-se-iam sem qualquer dúvida bem mais importantes.

A CRISE POLÍTICA

Face à reorientação progressiva da linha da política económica do governo, o Partido socialista aparece muito claramente em retirada. Levado pela euforia da vitória de maio de 1981, o Partido socialista pareceu viver à distância esta viragem progressivo, não fazendo de novo ouvir a sua voz que ao sair desta viragem.

O Partido socialista face à viragem para as políticas de rigor

A dificuldade dos socialistas em reagir às medidas anunciadas em Março de 1983, por falta de terem sido alertados pelos sinais premonitórios destilados pelo governo desde a primavera 1982, acentuou sem dúvida, na nossa opinião, a ideia de uma rutura de fundo. É por conseguinte apenas desde 1983 que o Partido socialista pareceu reaparecer no debate, mesmo se testemunhar indiscutivelmente uma certa dificuldade para admitir a viragem para as políticas de rigor. Esta viragem vinda relativamente cedo, parece contraditório com os propósitos tidos até então sobre o aumento da procura pelo aumento do consumo, do crescimento e do investimento. Face a esta mudança de orientação de política que ele tem dificuldade em negar, o Partido socialista reage por conseguinte timidamente, o que se explica nomeadamente pelo facto de que antes de 1982-1983, os céticos sobre a política efetuada desde 1981 são pois sobretudo pouco audíveis.

Piores ainda, estes estão em geral no governo, e nomeadamente identificados como minoritários do partido (Delors, Rocard), o que asfixia um pouco mais a sua capacidade a fazer entender as suas vozes num eco de unanimismo. A esse respeito, a composição do governo é de natura que a questionemos. Nota-se assim a presença de ministros que têm a categoria de ministros de Estado embora não ocupem verdadeiramente uma pasta (Michel Rocard no Plano, Charles Fiterman nos Transportes). Mais surpreendente ainda, o ministro da Economia e as Finanças aparece apenas em décima primeira posição na ordem protocolar que além do mais tem ao seu lado um ministro delegado para o Orçamento, Laurent Fabius, que age em autonomia no que diz respeito ao seu ministro de tutela e sai sempre vencedor de todas as arbitragens presidenciais que o opõem ao seu ministro de tutela, Resulta daí um mal-estar político e divisões profundas no governo que, por si-só não poderia explicar a viragem para as políticas de rigor de 1982-1983, mas em que estas devem ser tomadas em consideração. Foi necessário por conseguinte esperar por 1983 de modo que a voz do partido se levante de novo. Embaraçado por esta mudança de orientação política que não diz o seu nome, o seu primeiro secretário, Lionel Jospin, inventa a teoria “do parêntese”, hábil maneira de não negar a viragem sem, no entanto, se mostrar crítico em relação ao governo. É também uma maneira de fazer compreender que esta viragem é temporária, que se trata de reencontrar um certo equilíbrio financeiro antes de retomar o curso da política anunciada durante a campanha presidencial. No imediato, o partido fica bastante soldado face a este novo dado político e aceita sem demasiado ruido um realismo que vive no entanto bem mal. É a opinião que, ela, não aceita.

Na consciência coletiva, a mudança da política do governo socialista estabeleceu-se com a desvalorização de Março de 1983. Contudo, as medidas tomadas então em Junho de 1982 iniciam já a “nova estratégia” da política económica do governo.

1982 ou 1983? O rigor em perspetiva

Assim, é feita menção da política “de rigor” no ano político de 1982. O ano de 1982 é aquele em que a posição externa da França está mais degradado, é igualmente o ano das medidas de referência na luta contra a inflação (bloqueio dos preços e dos salários). A tomada de consciência da necessária adaptação ao contexto económico mundial é anterior a 1983. “O plano Delors” posto em prática nessa época é apenas o prolongamento das medidas tomadas no verão de 1982. O objetivo da vertente social, através da política para o emprego, não é ainda francamente atingido, as contribuições obrigatórias permanecerão elevadas até à primeira coabitação e a orientação para mais flexibilidade é adotada realmente apenas em 1984. A mudança essencial de este período reside no fim do modelo inflacionista.

Há uma mudança evidente, mas que não pode concentrar-se unicamente em torno da desvalorização de Março de 1983. A reorientação da política económica do governo de esquerda é ao mesmo tempo mais precoce e mais lenta do que vulgarmente se afirma. Não se trata de uma viragem francamente neoliberal porque continua a existir uma importante vertente social; trata-se pois de uma adaptação do projeto socialista aos fortes constrangimentos que agem sobre os fundamentais económicos mas igualmente sobre a relação de forças internacional.

Contudo, 1983 parece ser o momento da viragem para a política de rigor, aquele em que se concretiza a mudança  do campo da ideologia para o campo da realidade económica, em especial porque é o momento onde a soberania económica dos Estados é verdadeiramente posta em causa pelo ambiente internacional. Trata-se sem dúvida da tomada de consciência da interdependência das economias e da necessidade de encontrar respostas coordenadas às crises mundiais. Este aspeto põe em evidência a interação entre constrangimentos externos e crise política interna.

O ano político de 1983 fala “do desencanto de todos os franceses” na sequência ao realinhamento do mês de Março. E é sem dúvida aqui que situa a mudança, na reivindicação da aplicação de uma política de rigor, pelo menos no momento em que é anunciada, o que cristalize as numerosas tensões no Partido socialista e no governo. Assim, a crise que envolve a desvalorização de Março de 1983 é sobretudo política. Contudo, a forte degradação da posição externa da França entre 1981 e 1983 força o governo a rever a sua política. A tomada em conta das situações dos nossos parceiros económicos e a adaptação a estes últimos tornaram-se elementos indispensáveis para conduzir a economia francesa a integrar a economia mundial.

Assim, durante estes trinta últimos anos, um esquema narrativo dominante traçou os contornos dos dois primeiros anos da presidência de François Mitterrand. Tomando como base as suas promessas de campanhas, o Presidente e os seus governos adotam uma política redistributiva que se opõe ao contexto de crise internacional que é um contexto de não relançamento das economias. Em face deste constrangimento e após uma terceira desvalorização no espaço de dezoito meses, o poder converte-se, subitamente, a uma política restritiva marcada pelas medidas do plano de acompanhamento da desvalorização de 25 de Março de 1983. É “a viragem para as políticas de rigor”. À luz dos trabalhos recentes, este esquema narrativo parece-nos que deve ser matizado. Não se trata de negar a realidade de uma mudança de orientação política, mas de pôr em perspetiva a progressividade com a qual esta se pode ser instalada.

Aí, onde alguns estigmatizaram uma viragem a 180 graus, nós optaremos por uma curva progressiva, esta marcada por dois momentos – que constituem, por assim dizer, a entrada e a saída da referida curva – da máxima intensidade. A primeira viragem, preparada desde há vários meses antes, é iniciada no dia seguinte ao da cimeira internacional de Versailles em junho de 1982, enquanto uma segunda desvalorização, vinda corrigir as insuficiências da primeira, é acompanhada de fortes medidas como o bloqueio dos preços e os salários. É, definitivamente, uma primeira viragem. Mas, por falta de ser afirmada politicamente, desta rutura não se apercebeu nem a opinião pública nem o aparelho do partido. É por esta razão que as medidas de Março de 1983, que constituem a saída de curva e não fazem por conseguinte nada mais do que prolongar as medidas iniciadas nove meses antes, serão sentidas como brutais. Porque desta vez, a reorientação política não é negada. Embora seja apresentada mais como sendo transitório, é mais ou menos assumida embora soe aos olhos da opinião pública como sendo o fim das promessas de campanha, se é que não é mesmo entendida como uma negação da política até aí desenvolvida.


(O décimo terceiro texto desta série será publicado amanhã, 13/07/2017, 22h)


Texto original aqui

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