REFLEXÃO, por ADÃO CRUZ – ARTE E PINTURA – UM TEXTO de ISRAEL COHEN

 

(Recentemente falecido, o meu grande amigo e colega cardiologista Israel Cohen, também pintor e amante da arte, enviou-me este texto em 2007. Em jeito de homenagem aqui o publico)

 

Reflexão

 

Tenho visto, lido e reflectido alguma coisa sobre Arte em geral e Pintura em especial. Quanto mais o faço, mais facilmente inevitáveis associações de ideias vão despertando e amadurecendo em mim.

Neste pequeno e despretensioso texto, quase me limitarei a fazer uma interpretação-síntese de palavras, ideias e pensamentos de grandes artistas, dispersos por vários contextos, tempos e lugares. Servirão de substrato para esta reflexão.

Corro naturalmente o risco de chegar a conclusões em que uma componente subjectiva importante, induzida justamente pela minha interpretação e pensamento próprios, possa introduzir alguma distorção ou exagero.

Muito amplas superfícies de contacto ou pontes existem naturalmente entre todas as Artes, no entanto cada uma tem as suas especificidades e singularidades próprias, de tal modo que não tentarei generalizar.

Olharei só a Pintura.

Será então que uma pintura artística acabada se poderá comparar, ou identificar, com um ser vivo, dotado de personalidade própria, autónomo e independente, tal como um ser humano?

Vejamos.

Pensemos num artista, concebendo e executando o seu trabalho sobre uma tela. Parece evidente que ele vai transferindo para ela como que uma parte do seu património genético, estabelecendo-se um fluxo e permanente diálogo entre obra e autor.

À medida que o trabalho vai progredindo e a transferência se vai processando, então qualquer coisa de novo acontece. Esse material vai sendo assimilado e transformado numa estrutura viva, que se vai construindo a si própria, tornando-se progressivamente mais autónoma, mais independente do progenitor. Começa então aqui uma mudança de protagonismo, passando o autor para um segundo plano, um quase espectador comandado pelo seu trabalho. O controlo da situação passa, pois, para o outro lado.

Cria-se assim uma nova individualidade ou identidade, dotada de corpo e “alma”, com personalidade e vontade próprias, com as suas possíveis fraquezas e limitações, mas também com a sua força e energia.

Quando a obra considerar que nada mais tem a receber, terá de se impor e dizer: “Pára! Estou pronta! Nem mais um risco, traço ou ponto!” Então o autor deverá escutar bem estas palavras e humildemente obedecer.

Se isto não acontecer, é porque muito provavelmente, nada de digno do nome de “obra de arte” terá sido criado, o trabalho algures se perdeu, abortou.

Aqui chegados, penso fazer sentido um pequeno parêntesis para dizer alguma coisa sobre o “estádio de fluxo”. Trata-se de um estádio mental situado a um nível ainda mais alto do que a concentração máxima, em que tudo parece fluir harmoniosamente, sem qualquer esforço ou interferência por parte do artista, ou do cientista, apenas para dar dois exemplos. Ora este tipo de situação, teoricamente acessível a todas as pessoas, não o é na prática, e também está longe de ser permanente, mesmo naqueles que têm o privilégio de a ele poderem aceder. É que muito especiais circunstâncias, para além da pessoa em si, são requeridas.

Desta múltipla e muito especial constelação de factores, pessoais e extra-pessoais, resultaram, por exemplo, as grandes teorias científicas que tiveram como consequência, os enormes saltos dados em certas alturas na História da Humanidade, e, também, grandes obras-primas de artistas que todos conhecemos.

Mas voltemos à nossa reflexão, no ponto em que a deixámos.

Se existiu a tal imposição de parar, então a transferência e o diálogo terminaram, o autor terá apenas direito a um último olhar, para logo se afastar e deixá-la entregue à sua vida própria, às suas interrogações, dúvidas, certezas e incertezas, mas sobretudo à convicção de que, a partir daí, será ela e só ela, livre e autónoma, a responder perante todos os que a olhem, a vejam, a tentem apreciar.

Será mais dinâmica ou mais estática, mais tonal ou mais cromática, persuasiva ou conflituosa, suscitará espantos, paixões, simpatias ou antipatias, ódios ou invejas, ou até indiferenças. Será simples, modesta, sincera ou irónica, sarcástica, cínica, vaidosa, ambiciosa. Será ansiosa, temperamental e volúvel, ou calma e tranquila. Será bela, dengosa, harmoniosa, ou irascível e violenta. Voluptuosa, exuberante, concupiscente e promíscua, ou tímida e reservada. Introvertida ou extrovertida, ou até esquizofrénica ou bipolar. Revolucionária ou politicamente correcta, inteligente, ou nem por isso. Poderá ser tocada, retocada, copiada, reproduzida, restaurada, mas manter-se-á sempre única, exclusiva, irrepetível. Sujeitar-se-á a críticas e discussões e também a promoções, despromoções, marketing, compra, venda e até troca. Tal como nós. Como toda a gente.

Enfim, para o bem e para o mal, deverá sobreviver, quanto mais não seja materialmente, muito para além do seu progenitor, mas, de certeza, nunca se recordará dele. É que, uma vez cortado o cordão umbilical que os uniu, ficou para sempre truncada a sua memória.

A ele… talvez até venha a ser reservado um lugar na História da Arte, mas ela nunca o saberá…

Israel Cohen

Dezembro de 2007

 

1 Comment

  1. Uma lição magnifica. Não lhe vejo nem “distorção nem exagero”. O Autor, muito felizmente, deixou-nos a sua “componente subjectiva”, doutro modo, em matéria de Arte, nada fazia sentido. Se o instrumento de medida, pela sua própria intervenção, vicia o objecto em estudo, no caso desta Reflexão só temos de agradecer essa circunstância. CLV

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