Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado – Uma exposição e uma análise crítica. Parte I – A finança básica hoje – 10. Os Derivados, as falhas do sistema financeiro e a economia global (1ª parte), por Randall Dodd

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640
Jan Brueghel, the Younger Satire on Tulip Mania, c. 1640

Seleção, tradução e montagem de Júlio Marques Mota

Parte I – O básico na finança de hoje 

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10. Os Derivados, as falhas do sistema financeiro e a economia global (1ª parte)

Por Randall Dodd

Este texto é uma montagem baseada em dois artigos de Randall Dodd: “Backgrounder: Derivatives” publicado por Initiative for Policy Dialogue em 28 de junho de 2010 e “Primer Derivative Instruments” publicado por Financial Policy Forum, Derivatives Study Center, 2004.

 

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(1ª parte)

Introdução

Os derivados desempenham um papel importante e útil na economia, mas – como a crise financeira grave de 2008 demonstrou amplamente – levantam igualmente diversos e graves perigos quanto à estabilidade dos mercados financeiros e à economia como um todo.

Os derivados são frequentemente utilizados com o objetivo útil da cobertura e da gestão de riscos, e este papel torna-se tanto mais importante quanto os mercados financeiros se tornam cada vez mais voláteis. Os mercados de derivados servem igualmente para determinar os preços de muitos ativos financeiros e de matérias-primas assim como o valor económico de eventos não destinados à venda tais como o clima. Contudo, eles também são utilizados para finalidades improdutivas como, por exemplo, a evasão fiscal, contornando os quadros legislativos que foram concebidos para fazer com que os mercados financeiros sejam seguros e de boas práticas, através da manipulação da contabilidade, dos ratings de crédito e dos relatórios financeiros. Os derivados são utilizados igualmente para cometer fraudes e para manipular os mercados.

Os derivados são ferramentas poderosas que podem ser utilizadas para proteger os riscos associados normalmente com a produção, o comércio e a finança. Os derivados facilitam a gestão de riscos permitindo que uma pessoa reduza a sua exposição a determinados tipos do risco transferindo esses riscos a uma outra pessoa que possa estar mais disposta a carregar tais riscos. Os agricultores utilizam produtos derivados para se protegerem contra o risco de que o preço de suas colheitas venha a cair antes destas estarem concluídas e transportadas para os mercados. Os bancos utilizam derivados para reduzirem o risco de que as taxas de juro a curto prazo que pagam aos seus depositantes aumentem relativamente à taxa de juro fixa a que são remunerados os empréstimos que concedem a longo prazo e noutros ativos. Os fundos de pensões, as companhias de seguros e outras empresas de serviços utilizam derivados para se protegerem contra grandes descidas no valor dos seus portfólios. As empresas de serviços públicos essenciais podem proteger o preço (tipicamente muito volátil) a que compram o gás, o petróleo e outros combustíveis da mesma fonte assim como (cada vez mais desregulado e, como tal, variável) o preço a que elas vendem a energia elétrica. As empresas internacionais protegem o seu risco (volátil) cambial relativamente às divisas estrangeiras necessárias para realizar transações e investimentos.

Como testemunho da sua utilidade, recordemos que os derivados desempenharam um papel no comércio e financiaram-no desde há milhares de anos. Foram encontrados contratos de derivados escritos nas tabuletas de argila da Mesopotâmia que datam de 1750 anos antes de Cristo. Aristóteles mencionou uma opção, que é um tipo de derivado, e como é que ele foi utilizado para a manipulação do mercado, no século IV antes de Cristo. (Política, capítulo 9). Sobre transações sobre derivados aparecem registos numa bolsa de mercadorias em Veneza no século XII. No início do século XVII, futuros e opções eram negociados sobre stocks e mercadorias tais como o caso das tulipas em Amsterdão. Os japoneses convertiam em contratos de futuros os recibos dos armazéns em que eram entregues os seus sacos de arroz durante o século XVIII. Nos E.U., os contratos a prazo e futuros começaram a ser formalmente negociados e trocados no Chicago Board of Trade desde 1849.

Hoje, os derivados são trocados em quase todo o mundo e a dimensão destes mercados é enorme. Dados para 2008 divulgados pelo Banco de Pagamentos Internacionais colocam o valor dos contratos de derivados negociados no mercado de balcão acima dos $680 milhões de milhões de dólares. Para comparação, note-se que os dados do FMI para o cálculo do PIB ao nível mundial apontam para um valor de 65 milhões de milhões de dólares.

Mas o que são os produtos derivados?

Um derivado é um contrato financeiro cujo valor é ligado ao preço de algo que lhe é subjacente, seja uma mercadoria, um ativo financeiro, uma taxa, um índice ou a ocorrência ou a magnitude de um evento. O termo derivado resulta do facto de o preço destes contratos derivar do preço do produto ou elemento que lhe está subjacente. Diferentemente das ações, títulos do tesouro e empréstimos bancários, os derivados, em geral, não envolvem a troca ou a transferência do principal ou do título. Mais ainda, a sua finalidade é capturar, sob a forma das mudanças de preço, alguma mudança de preço subjacente ou de um evento. Os exemplos típicos dos derivados incluem futuros, mercados a prazo, swaps e opções, e estes produtos podem ainda ser combinados com os títulos tradicionais e com os créditos a fim de se criarem títulos estruturados que são geralmente conhecidos como instrumentos híbridos.

Contrato a prazo

A mais simples e talvez mais antiga forma de um produto derivado é o contrato a prazo. Neste contrato há a obrigação de comprar (ou de vender) uma determinada quantidade de um artigo específico no futuro a determinado preço ou a determinada taxa numa data especificada. Por exemplo, um contrato a prazo de divisas (mercado cambial a prazo) requer que a parte A compre (e a parte B venda) 1 milhão de euros contra o pagamento em dólares americanos a $1,0865 por euro- daqui a um ano, a partir de agora. Um acordo sobre taxa de juro a requer que a parte A contraia um empréstimo (é a parte B a emprestar) de $1 milhão por três meses a uma taxa de 2,85% anual, a partir de agora.

Considere o exemplo do agricultor que entra num contrato a prazo para vender o milho sobre as colheitas. O agricultor precisa de plantar o milho na Primavera, quando o preço é de $3 por alqueire, a fim de o ceifar em Outubro e para essa data o preço do milho, da sua venda, no mercado local é ainda desconhecido. A fim evitar o risco de uma diminuição do preço, o agricultor poderia entrar num contrato de venda a prazo, ou seja vender 50.000 alqueires de milho ao negociante local de grão ou ao silo de cereais, e para entrega entre 5 e 15 de Outubro ao preço de $3,15 por alqueire (a qualidade, tal como o milho amarelo nº1, seria especificada igualmente). O agricultor ficaria assim numa posição dita longa [1] em milho físico ou no mercado à vista e ficaria numa posição curt[2] no mercado a prazo; o negociante do milho ficaria numa posição longa em milho no mercado a prazo. Por conseguinte, o agricultor protegeria o seu risco de preço deslocando o risco da sua posição longa em milho para o negociante, para a posição longa que este assume no mercado a prazo. O negociante de milho poderia ou manter a sua exposição longa do risco de preço como um especulador ou proteger-se desse mesmo risco entrando num outro contrato a prazo – desta vez como um vendedor do milho que comprou antes – com um especulador ou com um outro hedger como, por exemplo, um fabricante de processamento de produtos alimentares que queira ele também proteger a sua exposição ao risco de eventuais aumentos de preços do milho no futuro.

Embora seja provável que o negociante de milho tenha contratos similares com muitos outros agricultores neste mercado local, e seja provável ter um modelo padrão para cada tipo de contrato a prazo, os contratos são considerados serem em si-mesmos únicos, bilateralmente negociados, e o seu preço não é divulgado ao mercado, à imprensa, à agência do levantamento de dados do governo nem a nenhum regulador do governo. O contrato a prazo pode ser colateralizado pelo título às colheitas. O contrato seria estabelecido com o agricultor em que se determinaria que a quantidade e a qualidade especificada no contrato seria entregue em lugar especificado e em data especificada em contrapartida de um pagamento feito para a conta do agricultor.

Este é um exemplo típico de um contrato a prazo de mercadorias mas o seu conteúdo e funcionamento não são diferentes para contratos a prazo sobre títulos, créditos ou outros itens. As condições de entrega variarão provavelmente de acordo com a natureza dos mercados subjacentes à vista ou mercados a pronto. Pode haver cláusulas para as grandes situações adversas ou para situações de “força maior” que permitam a revogação antecipada do contrato. Similarmente, com os contratos a prazo sobre a eletricidade é provável que se reconheça a incapacidade potencial de transferir a eletricidade para um ponto da rede ou de um ponto na rede.

Os mercados a prazo para títulos do Tesouro no mercado primário, no mercado cambial e nos contratos a prazo sobre taxas de juro são muito grandes e muito líquidos.

(continua)

Textos de Randall Dodd disponíveis em:

“Backgrounder: Derivatives”, Initiative for Policy Dialogue, 28/06/2010, http://policydialogue.org/files/publications/Derivatives.pdf

e “Primer Derivative Instruments”, Financial Policy Forum, Derivatives Study Center, 2004, http://www.financialpolicy.org/dscinstruments.htm

 

Notas

[1] Posição Longa: Posição contratual assumida por um investidor que beneficiará com a subida do preço e sofrerá uma perda com a descida de preço do ativo em causa. Assim, por exemplo, caso o investidor assuma inicialmente uma posição compradora num contrato de futuros que venha a ser fechada através da venda do mesmo instrumento financeiro a um preço inferior, será realizado uma perda correspondente a essa diferença. Caso a posição seja fechada a um preço superior o investidor registará um ganho.

[2] Posição curta: Posição contratual assumida por um investidor que beneficiará com a descida do preço e sofrerá uma perda com a subida de preço do ativo em causa. Assim, por exemplo, caso o investidor assuma inicialmente uma posição vendedora num contrato de futuros que venha a ser fechada através da compra do mesmo instrumento financeiro a um preço inferior, será realizado um ganho correspondente a essa diferença. Caso a posição seja fechada a um preço superior o investidor registará uma perda.

 

 

 

 

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