Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado – Uma exposição e uma análise crítica. Parte I – A finança básica hoje – 14. Bancos Demasiado Grandes para Falirem (3ª parte-conclusão), por Finance Watch

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640
Jan Brueghel, the Younger Satire on Tulip Mania, c. 1640

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Parte I – O básico na finança de hoje

Parte I texto 14 TBTF

14. Bancos demasiado grandes para falirem (3ª parte-conclusão). 

QUE TEXTOS LEGISLATIVOS VISAM ENFRENTAR O PROBLEMA DOS BANCOS TBTF (TOO-BIG-TO-FAIL), E COM QUE RESULTADOS ATÉ AO MOMENTO?

Uma avaliação do trabalho legislativo da UE 2009-2014 na banca

logo finance watch Por Finance Watch, setembro de 2014

(3ª parte-conclusão)

2. CRIANDO FERRAMENTAS CREDÍVEIS PARA A GESTÃO DAS CRISES

Apresentação do problema:

Conforme explicado acima, as ferramentas de gestão das crises estabelecidas na BRRD e no SRM não são suficientemente robustas para serem credíveis em caso de grande crise ou de falência de um grande banco. As tentativas de passar as perdas de bancos demasiado grandes e demasiado interligados para outros lugares do sistema provavelmente aumentarão o risco sistémico ao invés de o absorverem. Isso forçaria as autoridades a fazer uma escolha difícil: salvar o banco, incluindo o dinheiro dos credores e dos depositantes (resgate externo ou bail-out) ou proteger o dinheiro dos contribuintes (não havendo resgate externo). Isso, por sua vez, alimentará o problema dos bancos demasiado grandes para poderem falir: a convicção de que as autoridades não passarão as perdas para os credores, mas sim para os contribuintes “fornecerá” um apoio ao financiamento para as próprias atividades que tornam a resolução impossível e o resgate externo inevitável.

A ameaça de resgate interno e de mecanismos de resolução deve ser credível: os investidores devem acreditar que, no calor de uma grande crise, o bail-in será aplicado e as autoridades terão os meios para evitar a chamada corrida ao dinheiro do contribuinte – resgate externo. Portanto, para além da maior capacidade de absorção de perdas (ver CRD IV) e de uma maior capacidade de impor perdas aos investidores e de mecanismos de resolução mais fortes (ver BRRD e SRM), deve ser decretada uma reforma estrutural dos bancos – abordando a forma e as atividades dos bancos de maior dimensão.

O que é que foi alcançado?

Reforma da estrutura bancária

A Comissão publicou uma proposta sobre a reforma da estrutura bancária em 29 de janeiro de 2014. Esta proposta será debatida e revista pelo Parlamento Europeu – eleito em 25 de maio de 2014.

Os objetivos centrais da regulação proposta (artigo 1º) incluem: evitar uma má afetação de recursos, incentivar os empréstimos à economia real, reduzir os conflitos de interesses, reduzir a interligação bancária e tornar possível a resolução dos bancos. A especulação feita na base de fundos próprios da instituição bancária (definição restrita) é proibida em caso de instituições sistemicamente importantes de nível global (G-SIIs-Global Systemically Important Institutions). A decisão de separar outras atividades de alto risco não é automática, mas é deixada às autoridades competentes europeias e nacionais e dependerá de um teste apertado sobre se existe ou não uma ameaça à estabilidade financeira.

FW analisa e recomenda: A proposta da Comissão Europeia sobre a estrutura bancária estabelece os objetivos corretos, mas tem fraca perspetiva de redução do ónus económico que bancos demasiado grandes para poder falir representam para os contribuintes da UE e para a economia real, e isto por três razões principais.

Em primeiro lugar, embora a proibição de atividades de alto risco por conta própria da instituição bancária seja bem-vinda, contribuirá apenas marginalmente para a redução de grandes prejuízos bancários e das subvenções implícitas nocivas que os acompanham.

Em segundo lugar, uma vez que qualquer decisão de separação não será automática (mas será feita numa base discricionária pelas autoridades competentes, com base num teste rigoroso sobre se existe uma ameaça à estabilidade financeira), é muito difícil prever se a separação das instituições demasiado grandes para poderem falir será realmente alcançada.

Finalmente, o texto é ainda mais enfraquecido pelo seu alto nível de complexidade administrativa e pelos numerosos atalhos que contém.

• Ver o relatório de FW ‘The importance of being separated’

• Ver de FW factsheet on the effects of bank separation

• Ver de FW o comunicado à imprensa sobre a proposta de reforma estrutural bancária apresentada pela Comissão

 

3. MELHORAR A CAPACIDADE DE ANTECIPAR E LIDAR COM AS CRISES

Apresentação do problema:

O sistema bancário europeu é dominado pelos bancos internacionais (bancos demasiado grandes para poderem falir – TBTF) que operam em muitos países europeus. Em caso de grandes dificuldades que um destes bancos esteja a enfrentar, as autoridades nacionais podem estar em conflito com o interesse nacional e serem tentadas a proteger os “campeões nacionais” contra o interesse geral mais vasto, mesmo para além das suas fronteiras. Por conseguinte, é essencial deslocar a responsabilidade tanto para a supervisão (SSM-Single Supervisory Mechanism) como para a resolução (SRM-Single Resolution Mechanism) ao nível da UE dos grandes grupos bancários, a fim de tornar o sistema eficaz e evitar conflitos de interesses.

O que é que foi alcançado?

União Bancária Europeia

Em setembro de 2012, o Conselho Europeu emitiu uma comunicação intitulada “Roteiro para uma união bancária“. A União Bancária Europeia é uma visão política para uma maior integração da UE com o objetivo de reforçar e alargar a regulamentação do sector bancário no euro area[2]. Os seus três pilares são:

  • um Esquema de Garantia dos Depósitos (DGS)[3] ,
  • um Mecanismo Único de Resolução (SRM)-ferramenta de gestão de crises para a união bancária, espelhando os instrumentos previstos pela Diretiva de Recuperação e Resolução de Bancos (BRRD) (ver acima),
  • e um Mecanismo Único de Supervisão (SSM) centralizando a supervisão dos bancos da zona euro.

Um dos principais objetivos da união bancária (e do SSM em particular) é construir um quadro de tomada de decisões comuns e assumir a responsabilidade coletiva pelos bancos, principalmente os maiores.

O SSM é destinado a garantir que o Single Rulebook (quadro único de regras) (compreendendo por ex. a CRD IV) é aplicado de forma consistente na UE. Por conseguinte, a supervisão prudencial de cerca de 130 bancos da zona euro, que representam quase 85% dos ativos bancários totais na zona euro, será realizada pelo Banco Central Europeu em estreita cooperação com as autoridades nacionais competentes.

O BCE tornar-se-á o único supervisor em novembro de 2014. Antes de assumir as novas responsabilidades, o BCE finalizará uma avaliação abrangente composta por dois pilares: uma revisão da qualidade dos ativos (revendo a qualidade dos ativos dos bancos) e os testes de esforço (analisando a resiliência dos balanços dos bancos a cenários de dificuldade). Ao BCE é também concedido o poder de iniciar o processo de resolução no âmbito do SRM.

Os documentos de regulação sobre o SSM[4] foram publicados no jornal oficial em outubro de 2013.

FW analisa e recomenda: A união bancária poderá enfrentar o seu primeiro teste quando o BCE realizar a sua avaliação exaustiva dos bancos: o que acontecerá se os bancos que necessitam de aumentar o capital após a avaliação não o puderem fazer nos mercados privados?

  • Novas regras (auxílio estatal e BRRD) visam exigir que os investidores existentes contribuam para a recapitalização de um banco. No entanto, uma série de salvaguardas e cláusulas de fuga permitem que as autoridades públicas deixem esses investidores privados “fora de perigo”, especialmente se a estabilidade financeira está em risco, caso em que, em vez disso, o dinheiro público pode ser usado para recapitalizar o banco.
  • A interligação de grandes bancos pode constituir uma ameaça à estabilidade financeira: as autoridades não vão querer arriscar um efeito dominó que propaga as perdas de um banco para todo o sistema. Isso lança dúvidas sobre a credibilidade do resto do quadro de gestão de crises: se os contribuintes não podem ser protegidos depois de uma ronda de testes de esforço, como poderiam eles ser protegidos quando expostos a uma crise financeira real?
  • A FW defende que uma reforma estrutural dos bancos reduziria a interconectividade e melhoraria a credibilidade da resolução.

Veja o relatório de FW sobre a união bancária e a reforma da estrutura bancária, Europe’s Banking Trilema

Parte I texto 14 quadro final

 

Texto original “TOO-BIG-TO-FAIL (TBTF) IN THE EU” em http://www.finance-watch.org/ifile/Publications/Reports/TBTF-note-Finance-Watch_EN.pdf

Notas

[2]  Outros países da UE não pertencentes à zona euro podem também fazer parte da União Bancária através de um acordo assente numa forte cooperação com o SSM.

[3] Embora os Estados-Membros tenham acordado a harmonização dos regimes nacionais de garantia de depósitos (nomeadamente a aplicação da garantia de depósito até 100.000 EUR), não foi possível encontrar um acordo sobre um DGS partilhado e comummente financiada. Este pilar da união bancária foi, por isso, adiado

[4] As normas SSM incluem também a regulamentação da EBA (European Bank Authority).

Notas técnicas (*)

Alavancagem: qualquer técnica utilizada para multiplicar ganhos e perdas de um investimento, através de contração de empréstimos, uso de derivados e outros. Imagine que tem um capital de 100 euros e pede emprestados 400 euros e compra 500 euros de determinadas ações. Se as ações subirem 10%, você ganha 50, ou seja, 50% do investimento inicial de 100 euros. É um investimento alavancado 5 vezes, pois pode-se ganhar/perder 5 vezes o aumento/diminuição das ações. Quanto mais elevada a alavancagem maior o risco, tanto de ganhos potenciais como de perdas potenciais, comparado com o investimento inicial.

Capital Nível 1 (tier 1 capital): núcleo principal do capital de um banco que permite avaliar a sua solidez financeira. Compõe-se das ações ordinárias e reservas liberadas ou lucros retidos, podendo incluir ainda ações preferenciais não reembolsáveis e não cumulativas.

Capital Nível 2 (tier 2 capital): também designado de capital suplementar, inclui reservas não liberadas, reservas de reavaliação, reservas para cobertura de perdas com empréstimos, instrumentos híbridos de capital (conversão de dívida) e dívida subordinada.

Capital de Conservação de Segurança (Capital Conservation Buffer): constitui uma parte do Capital Nível 1, equivalente a 2,5% dos ativos ponderados pelo risco, e tem por fim evitar a violação dos requisitos mínimos de capital (vd. http://www.corep.support/what-is-the-capital-conservation-buffer.html).

RWA – Ativos ponderados pelo risco: este tipo de cálculo dos ativos é utilizado na determinação dos requisitos de capital ou rácio de adequação do capital de uma instituição financeira. O cálculo da ponderação do risco depende de se a instituição financeira adotou a abordagem padronizada prevista nos acordos Basileia II (junho de 2004) e Basileia III (2010-2011) ou se utiliza uma abordagem ou modelo de ratings internos da própria instituição financeira, o chamado IRB (esta abordagem está limitada a instituições que respeitam certas condições e requisitos e mereçam a aprovação do supervisor nacional).

 

Glossário de abreviaturas:

BRRD - Diretiva relativa à recuperação e resolução de bancos
(Diretiva 2014/59/UE de 15/05/2014)
CRD IV - Diretiva relativa aos requisitos de capital 
(Diretiva 2013/36/EU de 26/06/2013)
CRR - Regulação relativa aos requisitos de capitais 
(Regulamento (UE) 575/2013, de 26/06/2013)
EBA – European Banking Authority
FW – Finance Watch
IRB - internal ratings-based approach – modelo ou abordagem baseada em ratings internos
RWA- risk weighted assets – ativos ponderados pelo risco
SRF – Fundo Único de Resolução
SRM - Mecanismo Único de Resolução (Regulamento (UE) 806/2014 de 15/07/2014)
SSM - Mecanismo Único de Supervisão 
(Regulamento (UE) 1024/2013 de 15/10/2013 e Regulamento (UE) 468/2014 de 16/04/2014)
TBTF – Too-Big-To-Fail, bancos demasiado grandes para falirem.
UE – União Europeia

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