CARTA DO RIO – 175 por Rachel Gutiérrez

Fugindo da política vergonhosa do meu país, e do estado de abandono e desgoverno da nossa tão linda e maltratada cidade do Rio de Janeiro, escolhi me refugiar hoje no século XII, escutando uma das compositoras mais fascinantes da História da humanidade. Algumas vezes já me referi a ela, aqui e, se não me engano, a nossa “Viagem” reproduziu a “orelha”, (que os amigos portugueses chamam de badana), que escrevi para um livro da medievalista francesa Régine Pernoud sobre a imensa Hildegard de Bingen.  Trata-se de um ensaio biográfico que tem, como subtítulo, na edição brasileira traduzida por Eloá Jacobina, A consciência inspirada do século XII e foi publicado pela editora Rocco, na Coleção Gênero Plural, projetada por Vivian Wyler e coordenada por mim.

Meu primeiro contato com a obra musical de Hildegard de Bingen foi em 1992, quando passei alguns meses na Alemanha, pesquisando a história de outra mulher extraordinária, essa muito mais próxima de nós – Lou Andreas-Salomé (1862-1937) -, a famosa amiga de Rilke e colaboradora de Freud que acabou por me inspirar, ao invés da tese que eu programara, uma  peça de teatro.

Retornemos, porém, à figura genial de Hildegard Von Bingen, por quem me interesso por causa de uma conversa, que tive há alguns dias com um amigo, sobre a discriminação machista da qual nem as santas católicas escaparam ao longo dos séculos. Basta lembrarmos que entre os Doutores da Igreja, que são 38, figuram apenas 4 mulheres (!), uma das quais,  e a mais recente é justamente a compositora, cientista e teóloga alemã. São elas: Catarina de Siena (1547-1380); Teresa d’Ávila (1515-1582); Therèse de Lisieux (1873-1897); e Hildegard de Bingen (1098-1179).

A famosa Joana D’Arc, heroína da França cuja imagem o Front National utiliza para legitimar sua execrável xenofobia, não é doutora, pois era analfabeta  e sequer soube assinar o nome no Ato de sua condenação à fogueira, aos 19 anos, em 1431. Essa foi beatificada em 1909 e canonizada em 1920, quinhentos anos após ter sido queimada como bruxa.

Mas quero tratar de Santa Hildegarda, cuja beatificação foi autorizada pelo papa João XXII (não confundir com João XXIII, o do famoso Concílio Vaticano II, do século XX) em 1324; canonizada mais de 2 séculos depois, em 1584; e finalmente proclamada  Doutora da Igreja, pelo papa Bento XVI, em 2012.

Quando escrevi a orelha do livro de Régine Pernoud, Hildegard já se tornara uma santa conhecida, mas ainda não fora alçada à categoria de Doutora da Igreja.

O Google nos diz que

A partir da segunda metade do século XX o interesse pela sua figura histórica e seus escritos renasceu, especialmente através dos estudos monumentais de Marianna Schrader…

E sobre o conteúdo do Tratado de Medicina que ela escreveu, lê-se também que…

 Ela estava familiarizada com a medicina de Galeno, de Hipócrates, as práticasárabes e curandeirismo tradicional alemão, e deve ter ampliado seus conhecimentos com a prática de atendimento a doentes no seu mosteiro. Também deve ter conhecido as obras de naturalistas antigos como Plínio, o Velhos e Isidoro de Sevilha, bem como os bestiários e livros de maravilhas de sua época, e as teorias dos temperamentos, dos fluidos corporais e dos humores, estabelecidas desde a Antiguidade, mas fez muitas observações originais e inventou diversas terapias novas. O texto traça um panorama abrangente das práticas medicinais disponíveis em sua época, derivadas das tradições pagãs greco-romanas, muçulmanas, cristãs e folclóricas, e fica clara sua concepção de que a natureza e o homem são espelhos mútuos e integrados.

E é importante que se saiba também que …

…o Liber Subtilitatum foi o primeiro livro de ciência natural escrito no Sacro Império Romano-Germânico , permanecendo uma influência para o estudo da Botânico na Europa do norte até o século XVI, mas ainda espera dos pesquisadores estudos mais detidos que o posicionem mais corretamente no contexto do desenvolvimento da ciência e medicina medievais. Suas ideias têm sido apontadas como uma referência para os adeptos modernos da medicina holística.

      Hildegard de Bingen, a “sibila do Reno”, figura como Heloísa, Eleonor de Aquitânia e Herrade de Landsberg, entre as personagens mais importantes do século XII, quando as mulheres de origem nobre desfrutavam de considerável liberdade. Hildegard pregou em igrejas e conventos, manteve assídua correspondência com papas e cardeais, príncipes e reis, dos quais foi guia espiritual. Isso teria sido impossível a partir do final do século XIII, quando o papa Bonifácio VIII , pela constituição Periculoso, instituiu a clausura e o silêncio para as mulheres.

      Superdotada e habitada por visões desde a infância, só aos 43 anos Hildegard teve a coragem de registrar e divulgar sua concepção de um universo em expansão, cujas infinitas minúcias também descreveu. A abadessa, que se definia modestamente como “uma folha na respiração de Deus”, escreveu mais de 70 sinfonias, inúmeros textos poéticos, dezenas de obras de teologia cósmica, uma enciclopédia dos conhecimentos da Alemanha de seu tempo, os dois únicos tratados de Ciência Natural e Médica do século XII e ainda inventou um alfabeto e uma nova língua. Conhecia Botânica, o poder medicinal das plantas, o curso dos rios e a qualidade das águas. Seus métodos de cura estavam sendo aplicados com sucesso no final do século XX, em clínicas que começaram a se espalhar pelo mundo europeu.

Tomei o a liberdade de divulgar, mais uma vez, esse trecho da minha “orelha” e agora sugiro aos meus leitores que ouçam algo da música de Hildegard de Bingen que, de acordo com os estudiosos, “se insere, em linhas gerais, no contexto do Canto Gregoriano” mas ao qual acrescentou uma originalidade livre,  ampla, altamente inspirada.

Deixemo-nos comover, portanto, pelos sons de um tempo em que foi possível a uma monja, às margens do Reno, definir-se – e expressar-se! – como “uma folha na respiração de Deus.”

     

 

 

 

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