Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte II – Compreender a alta finança
2. Compreender a finança nº 2 – Excluir os serviços financeiros do TTIP? (2ª parte)
Por Finance Watch, 2014
(2ª parte)
Qual é o objetivo da parceria TTIP?
A miscelânea do TTIP
A Comissão Europeia fala por vezes de um acordo comercial entre a UE e os EUA. No entanto, como o nome sugere, as negociações de TTIP vão para além de negociações comerciais tradicionais: elas têm por objetivo criar uma parceria de livre comércio e de investimento, que inclui muito mais do que as regras de acesso ao mercado (ver abaixo). Para complicar ainda mais a questão, o conceito mais geral de uma área de livre comércio na região transatlântica, que existe desde os anos 70, é conhecida como o “TAFTA” (em inglês, Transatlantic Free Trade Area). Esta área é maior do que a do TTIP uma vez que inclui acordos bilaterais com países europeus, Estados Unidos, Canadá e México.
Em julho de 2013, os Estados-Membros da UE mandataram a Comissão Europeia para negociar em seu nome, a famosa parceria TTIP. De acordo com a Comissão Europeia “as negociações visam remover os obstáculos ao comércio (tarifas aduaneiras, regulamentações desnecessárias, restrições aos investimentos, etc.) numa ampla gama de setores da economia, a fim de facilitar a compra e venda de bens e serviços entre a UE e os Estados Unidos, desejando também que as respetivas empresas possam investir mais facilmente em ambos os lados do Atlântico“.
Uma das características destas negociações é a sua focalização sobre os “obstáculos regulamentares ao comércio.” De facto, uma vez que pouco mais resta senão algumas barreiras comerciais tradicionais (tais como tarifas e quotas entre os EUA e a UE), um dos objetivos fundamentais do TTIP é “disciplinar” as regulamentações de modo a garantir que elas não constituem nenhuma barreira ao comércio. Estas chamadas barreiras regulatórias que o TTIP visa reduzir fortemente são na verdade regulamentações e normas para proteger os cidadãos.
Para Dean Baker, co-diretor do Center for Economic and Policy Research em Washington, DC,
“A prossecução de políticas de comércio livre é apenas uma fachada que esconde os verdadeiros objetivos do TTIP. A negociação tem por objetivo impor uma estrutura regulamentar e um mecanismo de controlo internacional que não seria certamente aprovado pela via dos processos políticos habituais. As regras que serão postas em prática com este acordo serão certamente muito mais favoráveis às empresas e menos favoráveis aos consumidores e ao ambiente que as regras atuais. E terão certamente por efeito travar o crescimento económico.”
A parceria TTIP cai na categoria de novos tipos de acordos comerciais que deixam de colocar a ênfase na “redução das barreiras comerciais”, mas que ‘abarcam sobretudo os dispositivos institucionais mais estruturados’ (relatório WTO de 2011, p. 114).
Efeitos positivos exagerados?
De acordo com um estudo do Centro de Investigação em Política Económica (Londres) intitulado “Reduzir as barreiras ao comércio transatlântico” (estudo encomendado pela Comissão Europeia), a economia da UE poderia beneficiar de 119 mil milhões de euros em ganhos com a parceria (estimativa máxima) ou seja 545 euros de rendimento suplementar para cada família de quatro pessoas – e a criação de novas “oportunidades de empregos”. Mas a forma como os resultados desta avaliação foram comunicados pela Comissão não é nada clara. Assim, a escala de tempo considerada não é especificada: o montante dos rendimentos adicionais esperados deve entender-se como um montante total, e não um montante anual. É por esta razão que duas ONG, os Amis de la Terre e BEUC, pediram esclarecimentos numa carta comum datada de 4 de maio de 2014. A Comissão rejeitou a crítica segundo a qual teria apresentado os benefícios do TTIP de uma maneira que se prestaria à confusão.
Por seu lado, o jornalista britânico Glyn Moody mostra que mesmo as melhores estimativas da UE em termos de benefícios económicos gerados pelo TTIP não são muito elevadas. No video abaixo, a intervenção de Glyn Moody começa a partir do minuto 15,30:
Em termos absolutos, os estudos deveriam identificar e determinar a importância relativa não somente dos benefícios mas também dos custos ligados ao TTIP.
- A liberalização do comércio gera lucros em certos sectores, mas também gera perdas noutros sectores da sociedade.
- Quando se compara as perdas sofridas pelos contribuintes após a crise – que podem em parte ser atribuídos à liberalização dos mercados financeiros – com os benefícios que poderiam ser obtidos com TTIP, a prudência é altamente recomendável.
- É muito mais simples quantificar os custos da regulamentação do que o valor das suas vantagens e as empresas são mais organizadas e têm recursos mais importantes para fazer valer os seus argumentos do que a sociedade civil.
O TTIP é também concebido como “um acordo evolutivo”, o que significa que o texto poderia ser alterado mais tarde (novos acordos ou alterações acrescentadas a posteriori) ao sabor de novas negociações. Com um tal acordo, os Estados Unidos e a UE pôr-se-iam de acordo para que as modalidades específicas fossem fixadas no futuro e de modo que seja então possível, em função de mudanças legislativas, políticas ou económicas, reexaminar os quadros previamente adotados.
Se isso se tornar realidade, os aspetos para os quais não tivesse havido acordo durante as negociações seriam postos em suspenso, um acordo geral seria assinado, e os pontos de desacordo seriam resolvidos numa fase posterior, o que deixaria potencialmente menos espaço para o controlo democrático.
A parceria TTIP e os serviços financeiros
Como diz Andrew Lang no contexto das regras da OMC, os acordos de comércio livre têm tendência a pôr a tónica sobre “um objetivo de eficácia económica em detrimento de todo e qualquer outro objetivo ou mesmo dos objetivos ‘sociais’ que estão fora do mandato do acordo”. Isso significa que mesmo se preocupações tais como a estabilidade financeira são reconhecidas, não são o objetivo primeiro do acordo.
Há, por conseguinte, uma tensão entre, por um lado a procura de segurança para o país ou região e, por outro lado o objetivo de competitividade sobre os mercados internacionais. Assegurar a estabilidade financeira combatendo ao mesmo tempo a fragmentação dos mercados financeiros ou incentivando a concorrência sobre os mercados financeiros para supostamente baixar o custo para os consumidores são dois tipos de objetivos que devem ser equilibrados prudentemente porque, longe de dependerem de considerações meramente técnicas, são aqui questões eminentemente políticas.
Mais especificamente, Finance Watch identificou três aspetos da TTIP relacionados com os serviços financeiros:
- O acesso ao mercado
- Um quadro de cooperação em matéria de regulamentação
- A proteção dos investidores, incluindo o mecanismo de regulamentação dos diferendos entre Estados e investidores (os famosos ISDS)
Todos estes elementos são cruciais devido às consequências que poderiam ter sobre a capacidade da UE pôr em prática as regulamentações adequadas e que são bem mais que necessárias para o sector financeiro.
Mas o que é o comercio em matéria de serviços financeiros?
Isto refere-se aos serviços propostos ou comprados no estrangeiro (por exemplo um cidadão de um país A que abre uma conta poupança em linha com um banco de um país B), mas inclui também o movimento transfronteiriço dos fornecedores de serviços financeiros via investimentos ou através de uma presença comercial (por exemplo a abertura de uma agência bancária num país estrangeiro). Por outras palavras, trata-se na verdade de abrir o sector financeiro aos investimentos diretos estrangeiros.
“Os serviços financeiros“e os investidores do sector financeiro que são referidos pelas regras comerciais de TTIP incluem: todos os serviços bancários de poupança e outros, os serviços de seguros, a negociação de títulos financeiros e de produtos derivados (entre os quais os derivados negociados fora da bolsa, derivados feitos por medida, derivados não estandardizados, uma prática arriscada porque se trata de atividades e de produtos não controlados pelas autoridades), a gestão dos fundos de pensão, os serviços fiduciários e de aconselhamento fiscal (designadamente, conselho em matéria de otimização fiscal que permite a indivíduos ou empresas evitarem os impostos), os serviços de transferência e tratamento de dados financeiros, os bancos comerciais, os bancos de investimento, os fundos especulativos ou os fundos de capital-investimento, as bolsas (de valores e de mercadorias), e todas as espécies de prestadores de aconselhamento financeiro entre os quais as agências de notação, de rating.
Com mais detalhe diz-nos Myriam Vander Stichele, investigadora em SOMO no artigo« TTIP undermines financial regulation and leaves citizens unprotected [O TTIP mina a regulação financeira e deixa os cidadãos desprotegidos]»:
Do que estamos a falar? Algumas clarificações
“O comércio de serviços financeiros” não se refere apenas aos serviços oferecidos ou consumidos através das fronteiras (por exemplo, um cidadão de um país pode abrir uma conta de poupança on-line num banco num outro país). Isto também inclui os movimentos transfronteiriços de um prestador estrangeiro de serviços financeiros através de investimentos ou da sua presença (por exemplo, através da abertura de uma agência bancária física num outro país). Por outras palavras, tudo isto tem mais a ver com a abertura do sector financeiro aos investimentos diretos estrangeiros. Os “serviços financeiros” e os investidores do setor financeiro abrangidos pelas regras de comércio da parceria TTIP incluem: todas as poupanças e outros serviços bancários e serviços de seguros, negociação de ações e derivados (incluindo os derivados feitos por medida e negociados fora da bolsa, ditos derivados ‘over the counter’ ou derivados OTC), gestão de fundos de pensões, serviços fiduciários e serviços de consultadoria em matéria de tributação ou de otimização fiscal, ( ou seja, ajudando os clientes a evitarem ou fugirem aos impostos), serviços de transferência e processamento de dados financeiros, bancos de retalho, bancos de investimento, fundos especulativos, os hedge funds, fundos de investimentos privados, (títulos e mercadorias) e todos os tipos de consultadoria financeira, incluindo as muito criticadas agências de notação de crédito. Atacando o direito de regulamentação dos Parlamentos Os negociadores da Comissão Europeia (CE) afirmaram claramente que a parceria TTIP tem a ver com o “disciplinar da regulação” para garantir que ela não se transforma ou seja uma barreira ao comércio. Isto não tem nada a ver com a ideia de assegurar que os cidadãos estão adequadamente protegidos contra os riscos consideráveis assumidos pelo sector financeiro à custa dos contribuintes e dos trabalhadores. As disciplinas TTIP vão com efeito restringir, e mesmo proibir, aquilo que os Parlamentos e os reguladores financeiros podem fazer:
A minar as reformas financeiras e a prevenção das crises
Servindo os interesses do setor financeiro
Impondo as normas financeiras ao resto do mundo A verdadeira intenção da proposta da Comissão Europeia sobre a cooperação na regulação do setor financeiro é assegurar que as regulamentações financeiras decididas pela UE e pelos EUA sejam aplicadas ao resto do mundo. Se a Comissão Europeia trabalha estreitamente com os EUA em organismos internacionais na elaboração das normas internacionais que sejam depois aplicadas nestes dois grandes blocos económicos, os outros países não terão outra escolha que não seja a de seguir o exemplo destes dois blocos. Esta situação impedirá os outros países nos quais as empresas financeiras da UE e dos EUA operam de desenvolverem outras normas de referência para o setor financeiro. |
(continua)
Texto original de Finance Watch, “Comprendre la finance #2 – Exclure les services financiers du TTIP?” em http://www.finance-watch.org/informer/comprendre-la-finance/927-comprendre-la-finance-2#ttip-purpose