Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado – Uma exposição e uma análise crítica. Parte III – A finança ao serviço da sociedade e não a sociedade ao serviço da finança – 1. O trilema bancário da Europa (10ª parte). Por Finance Watch

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640
Jan Brueghel the Younger, Satire on Tulip Mania, c. 1640

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Parte III – A finança ao serviço da sociedade e não a sociedade ao serviço da finança.

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Cascatas do Roški Slap, Krka National Park, Croácia

1. O trilema bancário da Europa (10ª parte)

Porque é que a reforma do sistema bancário é essencial para uma União Bancária bem sucedida

Um texto editado por Finance Watch com o apoio da Fundação Hans-Böckler, setembro de 2013. Autores: Duncan Lindo e Katarzyna Hanula-Bobbitt. Editores: Thierry Philipponnat e Greg Ford

 

 

(10ª parte)

 

 Capítulo 4. O Mecanismo Único de Resolução

 

Neste capítulo discutimos o Mecanismo Único de Resolução (MUR) e o Mecanismo Único de Supervisão (MUS) no contexto da análise de recuperação e resolução apresentada acima.

As propostas de União Bancária

A Comissão Europeia publicou a sua proposta para o MUR em 10 de julho de 2013. O MUR é um passo importante na conclusão de uma União Bancária na medida em que visa, ao permitir a resolução ordenada dos bancos nos Estados membros participantes, enfraquecer as interdependências entre as instituições financeiras e os seus Estados soberanos.

O MUR proposto cobriria todos os bancos da Zona Euro e incluiria um Conselho de Resolução e um Fundo Único de Resolução de bancos (FUR). Os poderes do Conselho de Resolução sediado em Bruxelas seriam limitados a fazer recomendações à Comissão em caso de falência bancária e a coordenar os planos de resolução subsequentes. O fundo de resolução ex ante seria financiado pelos próprios bancos e ajudaria na reestruturação ou na resolução de um banco problemático. O fundo equivaleria a 1% dos depósitos cobertos nos estados membros participantes.

O Mecanismo Único de Supervisão adotado anteriormente (MUS) transferiu a supervisão dos maiores bancos europeus para um supervisor central alojado no BCE com o fundamento de que faz sentido para a resolução dos bancos que não só sejam supervisionados por uma autoridade (BCE), mas que a sua resolução também seja gerida centralmente.

 

As dificuldades de resolução derivam de mudança do padrão de atividades, mais do que de expansão transfronteiriça de atividades

Uma parte da lógica da união bancária parece ser geográfica: os bancos cresceram e são demasiado grandes para os seus respetivos Estados por causa das operações internacionais; portanto, a solução é mover a resolução para o nível europeu. Esta lógica poderia aplicar-se se a principal causa de alterações havidas nas estruturas e nas práticas dos bancos nos últimos 25 anos fosse a expansão no espaço da União Europeia. Mas, como a análise acima mostra, a mudança na escala/complexidade/interligação dos bancos assenta principalmente na mudança havida nas atividades exercidas. São estas mudanças no tipo de atividades, em particular dos maiores bancos, que estão por detrás dos problemas de resolução [22].

Em primeiro lugar, a análise do capítulo anterior mantém-se válida: sem reformas das atividades dos maiores bancos, os mecanismos de recuperação terão dificuldade para funcionarem e para serem credíveis. O resultado será recorrer ao resgate externo (pelo contribuinte, bail-out) e, então, a primeira pergunta a ser feita sobre o MUR é a seguinte: terá este acesso a recursos suficientes para garantir a resolução?

Conforme explicamos a seguir, existem várias fontes possíveis desses fundos, mas uma análise mais rigorosa sugere que estes fundos não podem existir em quantidade suficiente a nível europeu sem uma maior capacidade de absorção de perda por parte dos bancos e/ou sem uma maior união fiscal. O perigo desta situação é que a Europa crie um tigre de papel – um MUR que tem por efeito retardar a reforma dos bancos porque parece capaz de lidar com a falência bancária, mas que em situação de crise efetivamente não pode.

 

O Mecanismo Único de Resolução contemplado tem ele o dinheiro suficiente para enfrentar uma grande falência, uma falência bancária grande/complexa/interligada ?

Em que medida é que o Mecanismo Único de Resolução Europeu poderia lidar com as exigências de uma resolução bancária? O diagrama a seguir ilustra o que é que a “cascata” de perdas parece ao lidar-se com um banco falido/insolvente, depois dos fundos próprios se terem esgotado. Este esquema serve como guia de análise para questionar se um MUR pode evitar que se chamem os contribuintes para pagarem as perdas bancárias.

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Isenções e poderes discricionários enfraquecem o mecanismo de resgate interno (bail-in)

A primeira opção é, naturalmente, aplicar as perdas aos credores. Mas, lendo a posição sobre a resolução bancária do Conselho Europeu divulgada em 27 de junho de 2013, surgem duas questões importantes que podem pôr em dúvida que uma quantia suficiente de perdas seria imposta aos credores quando necessário para tornar efetivo o mecanismo de resolução.

A primeira questão reside na lista de passivos bancários permanentemente isentos de resgate interno e, em particular, com passivos interbancários com prazo de vencimento original inferior a sete dias. Isentar estas responsabilidades de muito curto prazo pode esperar-se que terá como consequência o desenvolvimento massivo de emissões desses passivos pelos bancos, que encurtarão mecanicamente o prazo médio de financiamento dos bancos, o que significa enviar um sinal oposto ao sinal enviado pelos rácios de liquidez de CRD IV (em particular o rácio de cobertura de liquidez – LCR) e, no final, reduzirão dramaticamente a quantidade de dívida capaz de resgate interno à qual as autoridades de resolução podem impor perdas.

A segunda questão reside na possibilidade dada às autoridades nacionais de resolução de “excluírem, ou excluírem parcialmente, as responsabilidades de forma discricionária se não puderem ser resgatadas dentro de um prazo razoável; para garantir a continuidade das funções críticas; para evitar o contágio ou para evitar a destruição do valor que levaria perdas suportadas por outros credores “.

Dada a redação das possíveis isenções ao resgate interno prevista, é expectável que as autoridades de resolução não imponham perdas suficientes aos credores para assim se proteger os contribuintes se uma grande instituição bancária falhar; daí o trilema descrito neste artigo.

No entanto, o princípio de uma capacidade mínima de absorção de perdas a ser imposta às instituições bancárias propostas pelo Conselho vai na direção certa, mas ainda precisa ser implementada e o seu planeamento (a partir de 2016) deixa em aberto a questão de como é que potenciais falências bancárias serão, entretanto, tratadas.

O Fundo de Resolução pode ser demasiado pequeno para os grandes bancos

Seguidamente, o MUR exigirá financiamento para operar com ferramentas de resolução provisórias, como bancos-ponte, nacionalizações temporárias e assim por diante. A proposta de MUR prevê a criação de um Fundo Único de Resolução dos bancos a um nível igual a 1% dos depósitos segurados na União Bancária, ou cerca de 55 mil milhões de euros. Isto seria acumulado por contribuições bancárias ao longo de 10 anos. Quanto e como cada banco contribui ainda está por definir e poderá ser estabelecido por atos delegados da Comissão.

Um problema com um fundo de resolução é que levará anos para construir e, em qualquer caso, poderá ser muito pequeno para enfrentar a falência dos maiores bancos, especialmente se nada for feito antes para se enfrentar o tamanho, a complexidade e a interligação excessiva dos bancos. Para colocar as coisas em perspetiva: um fundo de 55 mil milhões de euros representará cerca de 0,15% do volume total do sistema bancário da zona do euro e os maiores bancos cobertos têm, cada um, ativos totais cerca de 50 vezes maiores. Esta situação torna o fundo estabelecido uma ferramenta fiável apenas para a resolução de um número limitado de bancos de pequena ou média dimensão.

O fundo de resolução destina-se principalmente à resolução, mas transforma-se num fundo de absorção de perdas, se necessário, de modo a preservar a estabilidade financeira, uma vez que 8% das responsabilidades e fundos próprios do banco em situação de falência foram esgotados sob a DRRB. Isso fornece uma linha adicional de absorção de perdas antes que os contribuintes sejam chamados, mas terá um efeito limitado, dado o problema de tamanho discutido no parágrafo anterior.

Após credores e resolução vem o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). Como alguns analistas observaram, “há concordância geral de que um fundo de resolução deve ser financiado em primeira instância por impostos da indústria, mas precisará de um suporte fiscal no caso de se desenvolver uma crise que abarque todo o sistema. O suporte fiscal para o MUR terá de ser provavelmente o Mecanismo Europeu de Estabilidade“(Beck, et al., 2013, p.36).

O Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) pode prestar assistência financeira para a recapitalização das instituições financeiras (Mecanismo Europeu de Estabilidade, 2013b). Quando uma instituição financeira ameaça a estabilidade da zona euro ou de um estado membro, o MEE pode conceder empréstimos. Estes empréstimos são fornecidos na forma de títulos emitidos pelo MEE e passados para a instituição em situação problemática. Esses títulos podem ser usados como garantia em acordos de recompra (repos) mais prováveis com o BCE ou com o Banco Central do Sistema Nacional do Euro, mas, em teoria, com um banco privado também – embora este último pareça improvável ser possível para um banco com situação de falência.

O último acordo também prevê a possibilidade de recapitalização bancária direta pelo MEE até um limite de 60 mil milhões de euros, desde que haja envolvimento estatal permanente do Estado e sujeito a várias outras condições e limites. Dados os seus limitados meios de intervenção e a sua estrutura, o MEE dificilmente pode ser visto como uma linha de defesa muito forte para proteger os contribuintes em caso de crise bancária significativa.

É difícil vislumbrar como poderá o MUR respaldar o processo sem o envolvimento dos contribuintes dos Estados-membros

A camada seguinte de proteção financeira, após um fundo de resolução e o MEE, teoricamente seria a própria União Europeia, mas, na ausência de união fiscal, essa possibilidade tem de ser excluída. Em suma, é difícil ver como o MUR pode respaldar o processo sem o envolvimento dos contribuintes do Estado membro. Contudo, o risco adicional que o MUR pode representar é criar a impressão de que foi encontrada uma solução credível para a situação de falência bancária: o que provavelmente atrasará reformas vitais das atividades e das formas assumidas pelos bancos, mas, sem essas reformas, a recuperação e a resolução (nacional ou supranacional) falhará sem dúvida, nos seus objetivos.

(continua)

Finance Watch, Europe’s banking trilemma. Why banking reform is essential for a successful Banking Union. Texto disponível em: http://www.finance-watch.org/our-work/publications/687-europe-banking-trilemma

 

Nota

[22] Embora tenha havido um aumento nos empréstimos transfronteiriços intra-UE na perspetiva da crise, também houve um aumento na atividade bancária transfronteira, ou de forma mais geral, o aumento das atividades bancárias transfronteiras da banca global. (The Economist, 2012). Além disso, os grandes bancos são mais propensos a serem credores transfronteiros do que os bancos pequenos.

 

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