CARTA DE BRAGA – ONDE ESTÁ A IRA? – por ANTÓNIO OLIVEIRA

 

Los oprimidos preferimos jugarnos la vida por entidades fantásticas como Dios o la patria antes que por un pedazo de pan tan real como nuestra hambre

A Carta de hoje, estava destinada ao flagelo da desigualdade salarial que, disse alguém, seria a representação estatística ideal para mostrar o caminho para levar à ira das gentes mas, sem rejeitar tal objectivo, sirvo-me da frase que encabeça este texto, da autoria do jornalista e escritor Juan José Millás num artigo do El País, a 24 de Novembro passado.

A partir dela, atrevo-me a uma reflexão que junta escritos do escritor e historiador Tony Judt, desaparecido há meia dúzia de anos, com outros do escritor e filósofo Fiódor Dostoievski, nascido há quase dois séculos.

Um dos livros de Tony Judt a merecer uma visita cuidada é o “Reflexões sobre um século esquecido”, considerações várias sobre o esquecimento, um dos problemas que mais caracteriza e acentua o processo cultural e social do nosso tempo.

Judt considera que a mais perigosa das ilusões contemporâneas, é a ideia de estarmos a viver numa época única de impossível repetição, uma espécie de ponto zero na caminhada do homem.

Ilusão que gera uma outra, a de não haver no passado coisa alguma com interesse e, por isso também, nada termos para aprender nele.

Judt inclui estas ilusões no processo de esquecimento em curso, realçado pelo menosprezo da cultura e do conhecimento, frente ao ininterrupto espectáculo fornecido pelos donos do entretenimento.

Creio que, não há muitos anos, parecia haver uma enorme preocupação com a cidadania e ética, mas a incultura e a normalização pelos mínimos parecem hoje ditar leis, pela importância dada a uma qualquer banalidade proposta por um dos aparelhos electrónicos sugeridos pela indústria mediática!

Talvez esteja aqui a questão do esquecimento, aparentemente a melhor maneira de afastar qualquer dos problemas que possa afectar quem lhe está ou esteve ligado, mormente poderes estatuídos, quase sempre submetidos a finanças e econometrias, o que determina hoje os caminhos da política.

Os últimos anos demonstram que a melhor maneira de anular a identidade e a solidariedade entre povos e países, é fazer com que olvidem (para usar outra palavra!) o passado, porque a globalização igualiza, transformando tudo num território normalizado e único onde não é difícil reinar.

Abundam imagens e textos reduzidos, tão emotivos como factuais, afinal o fim perseguido pelo discurso imaginário e impositivo da imagem mediática, característica de uma civilização onde se multiplicam contemplativos e voyeurs.

Também não é difícil ligar esta ideia à que se pode tirar da leitura de “O Grande Inquisidor”, o belíssimo capítulo de “Os irmãos Karamazov” de Dostoievski, publicado em 1879.

Ali se conta de um hipotético encontro entre Torquemada, o cardeal inquisidor e um Jesus logo aprisionado quando entra em Sevilha no século XV, para ver o regime de fogueiras e autos de fé estatuído pelo velho cardeal.

Prenderam-nO porque, afirmou-Lhe o cardeal, Ele não era ali preciso, por terem ensinado o povo a venerar o pão terrestre em vez do pão do Céu e já devidamente amansado para acreditar também que, em nome daquele pão e único bem terrestre, também não haveria crime nem pecado no futuro, por lá só existirem famintos!

Mas, disse-Lhe ainda o cardeal, haveria de chegar o dia em que os famintos iriam à procura deles nas catacumbas onde se esconderiam, do mesmo modo que os vemos agora atrás dos governos dos seus mandatários!

Mas, nessa altura, explicava ainda o velho cardeal, chegariam junto dos escondidos donos da finança só para clamar – fazei de nós escravos mas dai-nos pão! – porque, ao fazê-lo, já eram sabedores de não poder haver comunhão entre liberdade e pão da terra à discrição, por até já ignorarem como haveriam de o repartir!

Mas, salientou, teriam aprendido a própria impotência de serem livres e poderiam usar uma liberdade já esquecida!

Hoje, a ver por tudo que se passa no mundo em volta, creio ser marcante a importância dos textos de Judt e Dostoievski, aumentada pela distância que os separa no tempo.

E onde está a Ira?

António M. Oliveira

 

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

1 Comment

  1. Grata por esta partilha que pus no facebook pois tem muito conteúdo sobre o qual é imperioso reflectir e AGIR em conformidade.

Leave a Reply