A NOSSA PENÍNSULA- 2 – GENTÍLICO – por Carlos Loures

(continuação)

Vou, pois tentar expor o problema. De uma coisa estou certo: a questão continuará a suscitar dúvidas, mas espero que seja possível atingir um primeiro patamar de entendimento. Pelo menos, parece-me possível compreender e separar o que é erro histórico e o que tem sido equívoco ancestral e perceber até que ponto esses erros e equívocos têm sido aproveitados para justificar opressões, aculturações e outros tipos de violência xenófoba de uns povos sobre os outros. a usurpação de Gibraltar  por parte do Reino Unido.

Não, porque a manobra política dos reis católicos, Isabel de Castela e Fernando II de Aragão, ao casarem em 1469, designarem por Reino de Espanha a união de facto das duas coroas, viciou o termo, dando-lhe uma conotação redutora. João II de Portugal, primo de ambos, terá escrito ao casal censurando-lhes a habilidade desonesta de atribuírem a uma parte da Península o topónimo que cabe à sua totalidade. De salientar que o Reino de Espanha só teve existência de jure em 1812 – mais de três séculos para legalizar uma mentira. Note-se que, embora, após a conquista de Granada em 1492, só Portugal tenha ficado fora do controlo castelhano-aragonês, os foros, e privilégios dos reinos aglutinados foram formalmente respeitados – e se, em 1580. Portugal viu subir ao trono um rei estrangeiro, considerando o povo (e bem) que perdemos a independência, a verdade é que a identidade do reino foi mantida e as suas instituições mantidas. Era uma ficção e o conde-duque de Olivares, o poderoso ministro de Filipe IV ao pretender pôr termo a essas falsas autonomias, provocou, em 1640, as guerras da Catalunha e de Portugal.

Claro que o erro de Isabel e Fernando não foi o de se intitularem soberanos de territórios alheios – era um expediente comum. Veja-se como o nosso Afonso V, no decurso do episódio da Beltraneja, em 1475, assinava os documentos da sua chancelaria: D. Afonso, per graça de Deus Rei de Castela e de León e de Portugal e de Toledo e de Galiza e de Sevilha e de Córdova e de Murcia e de Jaen e dos Algarves daquém e dalém-mar em África e da Aljazira e de Gibraltar e Senhor de Biscaia e de Molina. Era vulgar as insígnias reais conterem este tipo de bazófias. Por isso, o facto de os reis católicos designarem por Espanha o conjunto de Castela e Leão e de Aragão, correspondia ao costume da época. Mais do que um erro, um crime, foi o de Castela, talvez o mais pobre dos territórios peninsulares, se servir dessa teórica soberania para oprimir, aculturar, apagar – numa palavra – castelhanizar culturas ancestrais, costumes, tradições e idiomas – particularmente o leonês que apenas subsiste em pequenas bolsas, como é o caso do mirandês e o do galego-português que a Norte do Minho se viu reduzido à condição de dialecto do castelhano e remetido para uso de labregos – o Rixordimento, liderado por Rosalía de Castro, desencadeou um processo de dignificação que tem vindo a reabilitar uma língua que alcançou importância significativa e cujas projecções demográficas colocam, num futuro próximo, entre as mais faladas do planeta. Porque o projecto de reunir na mesma cabeça a coroa de todos os reinos peninsulares, não era pecado exclusivo de Isabel e de Fernando. João II, quando casou o infante Afonso com Isabel de Aragão, a filha mais velha dos reis católicos, ambos ainda crianças, acalentava o mesmo sonho – o de pôr toda a Península com um rei português. O irmão de Isabel de Aragão, Juan era uma criança enfermiça que se chegasse à idade adulta não teria capacidade para reinar. Mas o infante português caiu de um cavalo e morreu. Os reis católicos tentaram junto do Papa a dissolução do casamento, mas não conseguiram. A queda do cavalo deu lugar a especulações. Aquilo a que hoje chamaríamos «teoria da conspiração». Teorias que nem sempre são hipotéticas…

Mas voltemos à questão central – somos ou não espanhóis?

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Os testemunhos a favor dessa gentilidade, são muitos. Camões terá dito  “Falai de castelhanos e de portugueses, porque espanhóis somos todos”. E há uma citação de Almeida Garrett – «Nem uma só vez se achará em nossos escritores a palavra «espanhol» designando exclusivamente ao habitante da Península não português.» (…) «Aragoneses, Castelhanos, Portugueses, todos éramos, por estranhos e próprios, comummente chamados «espanhóis» assim como ainda hoje chamamos «alemão» ao Prussiano, Saxão, Hannoveriano, Austríaco: assim como o Napolitano, o Milanês, o Veneziano e o Piemontês recebem indistintamente o nome de Italianos.»(…)« Mas espanhóis somos, de espanhóis nos devemos apreciar todos os que habitamos à Península Ibérica: Castelhanos nunca». E temos palavras de Menéndez Pelayo: “El nombre de España, que hoy abusivamente aplicamos al reino unido de Castilla, Aragón y Navarra, es un nombre de región, un nombre geografico, y Portugal es y será tierra española, aunque permanezca independiente por edades infinitas».A estes respeitáveis exemplos acrescento o de «americano» que, em linguagem corrente, significa natural dos Estados Unidos da América…

Espanhóis, sim – castelhanos nunca. Respeitando a opinião de Garrett, apoiada por Luís Vaz e por Menéndez Pelayo, sou da opinião de que mais de cinco séculos de uso vicioso do gentílico «espanhol» transformaram a palavra, dando-lhe uma conotação política errada, mas comummente aceite – a de súbditos dos Bourbon – bastou-nos Carlota Joaquina para demonstrar a «excelência» moral da família.

(continua)

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