CARTA DE BRAGA – FALTA FALAR COM OS DEUSES! – por ANTÓNIO OLIVEIRA

 

 

 

Há uma tendência arreigada na sociedade para ver o passado como uma pesada mochila de que nos deveríamos desembaraçar, por não ter utilidade clara

Manuel Cruz, filósofo, “El País”, 16.02.17

 

A carta de hoje vai falar das memórias da gente, do que nos contamos, de quem fomos, do que acreditamos e do que, possivelmente, somos ou devíamos ser e tem como “herói” o Ti Zé Miguel, um homem rijo, corpo esquivo mas direito, habituado às esquinas das pedras de esconder dos ventos da serra.

Ainda me lembro de o ver usar a croça para o guardar das humidades que escorriam das encostas e tempo como este rapaz, só é bom para o musgo!

Não sabia nenhuma letra nem que fora do tamanho da roda de um camião! mas conversava tranquilo sobre a arte da vida pois, para conseguir viver nestes tempos de musgo nas pedras e nas almas, só um verdadeiro artista! porque, dizia, só mesmo um artista dos bons consegue ter resposta para as malinidades que o correr dos dias sempre traz, sem a gente se dar conta!

Depois abriu a navalha, puxou da saca uma peça de fruta e foi alternando a mastigação de cada pedaço descascado a preceito, com outras sábias sentenças sobre a arte da vivência!

Era por isto que ia ter com ele sempre que podia, por me fazer falta a forma admirável e simples como falava do mundo, tanto do dele como do meu!

E um dia, já lá vão alguns anos, dei conta de me estar a comentar aquelas maquinetas que até podes trazer para aqui e mostram o mundo na tampa de cima! Fui lá baixo à venda mercar umas coisas e estava lá um franciú a botar faladura com a tal maquineta!

Esperei que acabasse de contar o episódio por não querer mostrar a minha enorme curiosidade e, depois de mastigar mais um pedaço da pêra bem descascada, olha para mim bem de frente e despeja, gostava de saber mexer numa coisa daquelas!

– Nem eu sei bem!

– Pois! Também já não tenho idade, nem tempo, nem letras para aquilo, mas se calhar, era a maquineta perfeita para me dizer das malinidades.

– Acha?

– Tu sabes rapaz, sempre fomos assim, sempre usámos a sabedoria e as visões de feiticeiros, bruxos e adivinhos para tentar saber do que haverá de vir. Práticas antigas que ainda são usadas para saber da vontade dos deuses em relação a fulanos como eu e até como tu, uns merdosos em frente daquelas malinidades do universo!

– Mas aquilo é só uma máquina e sem estar ligada à ficha da luz quase não serve para nada!

– O franciú também disse isso, mas acho que aquela tampa de cima…

– O quê?

– Eu aprendi tudo o que sei em volta da trempe na cozinha da casa velha dos meus avós! As pessoas falavam do tempo, da sementeira, das colheitas, dos animais, dos bichos da serra e das pedras e contavam histórias onde até haviam sapos e fadas! Ali aprendíamos do mundo e da vida, quem podia até ia à escola, mas eram poucos e agora quê?

– Os tempos são outros!

– Só que já não há trempes nem conversas à volta do fogo e os homens continuam os mesmos! Mas faltam as visões de quem tinha sabedoria de poder falar com os deuses!

António M. Oliveira

 

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

2 Comments

  1. Comentar? citadina sempre me dei com homens e mulheres do campo, sem letras, mas com uma sabedoria que me fascinava e me abria horizontes. Está tudo aqui. «– Só que já não há trempes nem conversas à volta do fogo e os homens continuam os mesmos! Mas faltam as visões de quem tinha sabedoria de poder falar com os deuses!» Partilhei

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