CARTA DE BRAGA – “AS ESTRELAS NO CÉU DA SERRA” – por ANTÓNIO OLIVEIRA

 

 

No último dia do ano passado, o escritor e comentarista Manuel Vicent escreveu no “El País” que nunca se fazem anos, antes se comemoram a saúde ou a doença, a ilusão ou o desengano!

Acrescentou, a justificar tal afirmação, que o século XX teria terminado em 9 de Novembro de 1989 com a queda do muro de Berlim e o começo do século XXI teria sido a 11 de Setembro de 2001, com o atentado às Torres Gémeas.

Desenvolve depois um texto sensível, a tentar explicar como acontece também o mesmo com a vida, por se marcarem os anos pelo início das escolas ou das sementeiras e o final pela época dos exames ou das colheitas.

Relaciona ainda estas marcações com o crescimento da humanidade a partir da evolução da criança, do fim ou da mudança dos sonhos, o assumir da rebeldia perante a autoridade de pais e professores, para depois lhe perceber a importância com ensinanças como o amor, o sexo ou a ambição, todas a libertar apetências para outros e diversos caminhos.

Cuido ser esta a trama e a estrutura dramática da vida e das paixões que a enformam, bem longe da enumeração desinteressante dos dias e meses em qualquer calendário, tanto os das pin ups ao jeito norte-americano como os das fotos únicas de paisagens ao jeito da National Geographic!

É outra forma de alijar a carga dramática da interpretação que, pensando em extremos, pode ir das paredes barulhentas das garagens e camaratas militares ao silêncio recolhido das bibliotecas.

Também nunca vi um calendário lá em cima, nas dobras da serra abrigadas dos ventos gelados do Norte, onde era o casebre do Ti Zé Miguel, o homem esquivo e direito de quem falei há duas semanas.

Lá o tempo contava-se pelo aparecimento do cervum, o pasto preferido das ovelhas, pelo nascimento dos borregos, pela saída dos lagartos à procura do sol, pela matança do bácoro, mas muito mais pelas luas cheias, as que podem aprochegar o homem aos domínios dos deuses.

Lá a dimensão dos dramas dependia das rotinas e da dimensão dos sonhos, daqueles de sonhar acordado, pois é tudo o que se pode fazer por aqui, até chegar o homem que vem buscar os borregos e o outro que espera o final do Inverno, para saber quando pode vir buscar a lã e carregar os queijos!

Fiquei imóvel a olhar para ele, tentando antecipar o que mais haveria para me dizer…

– Aqui, meu bom amigo, o mal é o da espera, do que nos poderá acontecer, prazeroso, desgraçado ou estranho, mais as malinidades que nos forcem a mudar de vida sem contar, porque mesmo má, é a única que temos e a falta de letras mais esta idade, não abonam nada!

Caída a noite, fomos continuar o palavreado lá fora, sentados num barroco sob um céu coberto de estrelas como só na serra e o Ti Zé Miguel rematou-o de uma maneira espantosa.

– Aqui a vida é mais ajustada pelas doenças, as nossas ou as dos animais, um ajustado que até nos dá lágrimas e sorrisos, mas estes não são muitos!

– E não há nada nem ninguém para aliviar essa espera?

Levantou-se devagar, afastou-se uns passos, apontou para o céu e perguntou mansamente, já reparaste que aqui, na serra, entre mim e os Deuses só tenho as estrelas?

Depois achegou-se e pondo-me a mão no ombro, disse no mesmo tom, mas eu e Eles sabemos disso!

António M. Oliveira

 

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

1 Comment

  1. Belíssima a sua Cara, meu Amigo! E a sabedoria do Povo, do nosso Povo, na pessoa do Ti Zé Miguel, é algo de maravilhoso, que tive o privilégio de conhecer, não através dele mas através da Avó Micas, que também olhava as estrelas e as sabia capazes de presságios. adivinhações e rituais de cura e com quem aprendi a conhecer algo do mundo.
    Um abraço enorme e a minha admiração.

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