Ainda as longas filas de espera no Hospital Pediátrico de Coimbra: a política de austeridade, a incapacidade das Administrações Hospitalares, o desrespeito dos cidadãos, a fragmentação social, a descrença na democracia? Por Júlio Marques Mota

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A propósito de uma exposição enviada ao Primeiro-ministro, ao ministro da Saúde, ao Hospital Pediátrico de Coimbra, e de um texto de reflexão sobre o 25 de Abril de outrora e o 25 de Abril de agora, a propósito da resposta das autoridades portuguesas, a darem talvez a impressão de que as instituições da democracia portuguesa funcionam, deixem-me tecer mais alguns considerandos.

Por Júlio Marques Mota julio-marques-mota

Coimbra, 9 de maio de 2018

 

Na exposição às autoridades referidas escrevi:

Tenho uma neta de 4 anos, de nome Adriana, com um problema muito simples que, de repente, se tornou num problema aparentemente muito complexo!

Tem uma ou duas cáries dentárias. Admitamos que seja uma. Esta foi sujeita a um primeiro tratamento no consultório do Dr. João Paulo Tondela. Tudo correu bem e agendou-se uma segunda sessão para terminar aquele tratamento. Assim se fez. Chegados pela segunda vez ao consultório, senta-se na cadeira mas não se consegue que ela deixe tratar a cárie. Adiou-se e marcou-se uma outra sessão. O resultado foi o mesmo. Voltou-se a marcar uma outra sessão. A quarta sessão. O resultado foi o mesmo.

Decidiu-se fazer os procedimentos necessários para que fosse tratada na Escola de Medicina Dentária. A anestesista entendeu que o melhor sítio seria no Hospital Pediátrico, uma vez que em caso de acidente maior, não esperado mas sempre possível, não teriam ali os meios de resposta em termos de reanimação.

Desencadearam-se procedimentos para que fosse tratada no Pediátrico, no bloco operatório. Um mês depois recebo um telefonema em que marcavam uma consulta para um mês depois. A pessoa que me telefonou, creio ser pessoal qualificado pelo diálogo havido, manifestou-me o seu espanto pelo facto de a anestesista da Escola de Medicina Dentária entender que o local adequado para o tratamento seria uma ida ao bloco operatório no Pediátrico. Este técnico de saúde achava que poderia ser feito na Medicina Dentária, ao contrário da especialista de Medicina Dentária que se queria salvaguardar, e com razão, de um qualquer imprevisto.

Isto, diz-nos bem que o técnico que me telefonou estava bem a par do problema. Um mês depois, 10 de Abril, às 8 horas da manhã, a mãe da criança e, depois eu, lá estávamos no Hospital. Pela conversa telefónica havida fiquei com a sensação de que o processo seria rápido, ou seja, que faria imediatamente as análises para o anestesista e se marcaria com urgência a ida ao bloco, se é que não estaria mesmo já marcada. Engano total.

A consulta deu-se para confirmar o diagnóstico, o que se confirmou, claro. Dali a semanas iria receber uma carta para que a miúda se apresentasse no Hospital para fazer análises para o anestesista e depois, se após seis meses não houvesse nenhuma convocatória para a intervenção cirúrgica no Pediátrico, receberia em casa um vale-saúde para ir a um hospital privado. Perguntou-se ao médico como é que se poderia fazer se a criança tem dores, se dorme mal, se dá ela própria, coitada, mau dormir às pessoas em casa e a resposta é lapidar, o tratamento clássico, – Bruffen ou Ben-u-ron. Estamos a falar de uma criança de 4 anos! Acrescenta o médico que o Hospital tem outras prioridades, a menos que voltasse a ter um abcesso. Mas com os diabos, o abcesso está lá! Se tal acontecesse, então entrava na lista e na fila dos prioritários e já agora não sei qual seria aí a demora, porque se trata também de uma lista de espera.

A minha obrigação, e não abdico de a assumir, é colocar o interesse do doente, a minha neta, em primeiro lugar e não estaria disposto a esperar até seis meses para receber depois um vale-saúde e recomeçar o processo para tratar uma cárie dentária numa criança de 4 anos. Portanto estou mesmo interessado em recorrer imediatamente a um hospital privado. Não deixa de ser amargo ter que aceitar que na cidade dita Capital da Saúde os serviços públicos de saúde não tenham condições para tratar uma cárie dentária a uma criança de 4 anos que para o efeito precisa de ser sedada.”

Este era o texto com que iniciava a minha exposição às autoridades portuguesas.

 

Na sequência desta exposição chega-me por correio azul uma carta do Gabinete do Cidadão, datada de 23 de Abril e recebida a 26 de Abril, com a seguinte resposta que nos dá, de imediato, a sensação de que as Instituições em Portugal funcionam:

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Face a este texto respondi, dizendo o seguinte:

Até aqui tudo bem. Porém quanto ao caso clínico que motivou essa exposição, na ida ao Pediátrico no dia 10 de Abril, somos informados que dentro do intervalo de quinze dias receberíamos uma carta a marcar uma outra ida ao Pediátrico para fazer as análises necessárias a uma intervenção no Bloco Operatório. Depois se aguardaria pelo resto. Já lá vão 22 dias e essa carta ainda não veio. Tenho a certeza que esta virá, mas quando?

Curiosamente, a minha neta esta noite, de 1 para 2 de Maio, não dormiu nada com dor de dentes e com isso a família também não. Será que terei de ir a uma clinica privada até para isto? O que é que se passa de podre no reino da Dinamarca, neste caso no sistema nacional de saúde e no Hospital Pediátrico de Coimbra para que casos simples como estes tenham estado sujeitos a tão longos processos de resposta para serem tratados? O que vos posso acrescentar é alguns ex-ministros e/ ou ex-deputados do nosso país, da área da atual solução governativa em vigor, face à própria exposição me propuseram saltar imediatamente para os jornais e televisões, não sobre o caso particular da minha neta, o que é óbvio, mas para o quadro geral que a situação espelha. Para já, recusei liminarmente o apoio que estes meus conhecidos me disponibilizaram como abaixo explico.

Até aqui, tenho-me recusado a entrar em contacto com a imprensa escrita (jornais) e falada (TVs) porque somos um Estado de Direito e ainda acredito nas autoridades democraticamente eleitas do meu pais. Neste contexto, o meu passo seguinte, neste protesto, será enviar a mesma exposição a Sua Exª o senhor Presidente da República, o que, convenhamos, seria pura e simplesmente anedótico, mas no quadro institucional é este o meu último recurso. Se mesmo este falhar, o que não acredito, resta-me solicitar o apoio dos jornais e televisão para a questão das filas de espera no Pediátrico que, com as desistências que se vão dando, têm tido uma duração média de 6 meses. Será mesmo assim? A mim, custa-me a acreditar, mas é o que me dizem, é o que nos foi dito também no próprio Hospital.

Depois de escrever e enviar este texto, no mesmo dia, recebo do gabinete de Sua Excelência o senhor Primeiro-ministro a seguinte informação:

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Garantidamente, pelo gabinete do Primeiro-ministro as Instituições funcionam. Na minha leitura, o Gabinete de António Costa está a enviar o mesmo texto para o ministro da Saúde, quando este já o tinha. Uma indicação simples de que o texto deveria ser lido e deveria ter seguimento e adequada resposta e, esta, seria só uma: fazer todos os possíveis para que as longas listas de espera de crianças doentes se tornassem rapidamente uma coisa do passado.

A partir daqui não sei mais nada. O silêncio parece ser de ouro quanto ao Hospital Pediátrico. Ao meu texto acima reproduzido, o gabinete do Cidadão informa-me que o mesmo foi enviado ao Hospital Pediátrico. Nem mais nem menos, assim mesmo, apenas assim.

Entretanto vou aguardando que do Pediátrico receba uma carta, quando não sei, a indicar-me a data para a minha neta Adriana fazer análises para a hipótese de a intervenção cirúrgica ser feita no Pediátrico, carta que nos foi prometida dentro de 15 dias, para nos indicar uma data para fazer análises. Que data também não sei.

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Entretanto nesse mesmo dia fui a uma clínica privada, a Sanfil. Nada a dizer. A minha neta foi cuidadosamente vista mas, mais uma vez, a especialista não conseguiu fazer nada. A miúda recusava. O orçamento foi apresentado. Exponhamo-lo.

Uma diferença de fundo: na consulta feita no Pediátrico da parte da manhã, havia conhecimento do processo, como acima indiquei. A consulta era apenas para confirmação do diagnóstico. Uma manhã perdida. As análises ficariam para um outro dia. Uma outra manhã perdida. Na Sanfil, reserva-se o bloco operatório e fazem-se na mesma manhã as análises necessárias. Não se vai uma segunda vez, ou uma terceira como no Pediátrico, onde o tempo de toda a gente parece não contar.

Um amigo meu ao ver este orçamento reagiu da seguinte maneira: este caso mostra a falta de ética e de respeito para com os pacientes do setor público, representa uma forma de os enviar para o Privado e da forma menos transparente possível. Na opinião dele, a rigidez a que se está a submeter o sistema público de saúde, em que mesmo a emissão de cheques para ir ao privado pode estar a ficar complicada porque essas despesas são agora inseridas nos orçamentos das respetivas unidades hospitalares, poderão levar a que as suas Administrações tenham a seguinte postura: quando se chega perto do período máximo de seis meses, o paciente é chamado para reavaliação do processo e passa à contagem de tempo zero a seguir. Uma outra via, retardando os tratamentos levarão a que os doentes se desloquem diretamente para o setor privado e se tornem depois invisíveis no sistema público de saúde. Uma terceira é ficarem esquecidos e quem não reclama então não existe. E, por fim, alguns serão reenviados com cheque para o privado. De todas as formas, sublinha este meu amigo, tudo é dirigido a favorecer o setor de saúde privado, à custa do cidadão diretamente quando este desiste e vai pelos seus meios ao setor privado, ou do cidadão contribuinte quando há emissão de cheque-hospitalar para ir ao privado. E acrescenta: possivelmente a demora da carta a marcar a data em que a tua neta se deve apresentar no Hospital para serem feitas análises, uma data para não sei quando, talvez se insira no mesmo sistema. São mais uns tempos de atraso, são mais umas noites mal dormidas com a miúda a choramingar com dores, são mais uns frascos de antibiótico, até que te chateies e vás ao privado. És tu que desistes, não é o Hospital que não vos presta os cuidados de saúde.

Curiosamente, nem ele nem eu acusamos o pessoal médico e auxiliar dos serviços públicos de saúde pelo   que se está a passar, todos estes estão abaixo das hierarquias, pois que, pela experiência de cada um de nós, nada temos de contra a assinalar em relação a eles. Quanto às respetivas chefias nada se pode afirmar, salvo que muito do que se está a passar é logicamente incompreensível e parece ter só um sentido: favorecer o setor privado. Suspeito, portanto.

Uma das explicações possíveis para toda esta situação seria a austeridade cega a que Centeno tem estado a obrigar o país. Esta explicação seria tanto mais lógica quanto é o próprio ministro da Saúde que com regozijo nos diz que somos todos Centeno. No quadro desta hipótese somos levados a afirmar, e esse texto mandei-o igualmente ao Primeiro-ministro que “tudo isto exige que não sejamos todo Centeno, antes pelo contrário, exige-se que todos nós sejamos contra Centeno, exige que se tenha como meta a alcançar o aprofundamento da Democracia em vez da austeridade, e as duas metas são entre si contraditórias. Há pois que escolher, senão é a fúria da realidade que escolherá por nós e aí será, então, tarde de mais para a Democracia, para as esperanças renovadas de Abril que a geringonça voltou a alimentar.” Não muito distante desta nossa posição está uma deputada do PCP que nos diz, segundo o jornal Público: “A deputada comunista Carla Cruz prometeu que iria “focar todas as questões de investimento que é necessário fazer ao nível de infra-estruturas e equipamento no SNS” durante a referida audição ao responsável pela tutela, requerida com “carácter de urgência”.

“Esta situação é a prova de que a opção central não pode ser a redução do défice, mas a recuperação do investimento público e resolver os problemas das pessoas e mostra a sua premência e urgência, depois de quatro anos de governação PSD/CDS em que houve um decréscimo acentuado no investimento público que degradou a resposta pública, quer no SNS, quer na educação”, disse.

Num outro registo, diz-nos Jorge Seabra:

O negócio dos maiores grupos privados tem vindo a crescer a um ritmo percentual que frequentemente ultrapassou os dois dígitos por ano, mostrando que, com PPPs e outros contratos e “outsourcings”, há dinheiro que chegue para a Saúde, mas muito passou a ser canalisado para fora do serviço público, e que a invocada insustentabilidade económica do SNS representa apenas mais um falacioso argumento de quem o quer ver reservado para os mais pobres e desprotegidos, como mero sistema supletivo, à moda da “América”.

Só assim se explica que, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, em dez anos (de 2005 a 2015) o SNS tenha perdido cerca de 4.500 camas e o sector privado tenha aumentado 2.300, também elas substancialmente financiadas, direta ou indiretamente, com dinheiros públicos (o Estado português cobriu 51% dos gastos dos hospitais privados, segundo o “Jornal Económico” de 14-2-18, citando dados recentes do INE).

Também dessa forma se compreende que, nos Cuidados Primários de proximidade, o número de extensões dos Centros de Saúde tenha diminuído numa só década (de 2000 a 2011), de cerca de 2000 para 1200, afastando as populações do primeiro acesso ao SNS. Houve até um ministro (Correia de Campos) que teve a impensável irresponsabilidade de afirmar que nunca procuraria um Serviço de Atendimento Permanente (SAP) então em funcionamento nos Centros de Saúde, caso o próprio pai tivesse necessidade, descredibilizando cuidados sob a sua direta tutela e enxotando os assustados cidadãos para as assoberbadas urgências hospitalares.

A conspurcação do serviço público por condicionamentos só justificados por razões ideológicas – como a contratação de empresas de trabalho temporário para suprir os buracos causados pelos sucessivos “cortes” e as avaliações de desempenho baseadas numa contabilidade “comercial” em busca de um “lucro” virtual, um conceito estranho num serviço público -, fizeram com que o SNS, ao contrário do que passou a ser propagandeado, deixasse de estar “centrado no doente”.

Num outro registo, Paulo Trigo Pereira, Ricardo Cabral, Luís Teles Morais e Joana Andrade Vicente, em Uma estratégia Orçamental sustentável para Portugal, dizem-nos:

“Assim, o objetivo do governo de reduzir a despesa pública com pessoal até 2001 (1,1 pontos percentuais do PIB) não parece ser exequível.” (…)

“A principal medida com vista à prossecução do objetivo estipulado pelo Governo para 2021 (de reduzir para 10% do PIB) a despesa com pessoal não parece estar a surtir o efeito desejado”

“consideramos irrealistas os objetivos inscritos no Programa de Estabilidade de 2017-2021 e dar maior conteúdo à natureza desta despesa, nomeadamente perceber que a saúde ocupa um lugar importante.” (…)

“Dada a perceção generalizada de que seria possível reduzir a despesa anual com os consumos intermédios [onde a Saúde assume um enormíssimo peso] é necessário analisar as medidas ou reformas que o permitiriam” (…)

“Seria desejável que o Programa de Estabilidade descrevesse essas medidas de racionalização e de simplificação dos serviços públicos de forma mais detalhada e que estas fossem explicitadas no Programa de Revisão da Despesa que o governo está a elaborar. Dada a falta de informação não se sabe se estas poupanças expectáveis dependem ou não da concretização de um montante de cativações que, para 2019-2021, se desconhece, mas que para 2018 ascendem a 1.776 milhões de euros” (…)

“É, assim, necessário ponderar se tal não põe em causa o bom funcionamento dos organismos públicos e a consequente qualidade de prestação do serviço dada a redução da dotação utilizada pelos serviços e organismos do Estado.”

“É necessária uma análise detalhada em relação à orçamentação e execução da despesa em consumos intermédios e, em especial, associada ao setor da saúde, através da elaboração de orçamentos mais realistas que não coloquem uma pressão financeira permanente e dívidas crescentes” (…)

“Defendemos, assim, o aumento das dotações do Orçamento de Estado para consumo intermédio nos setores onde esta despesa é necessária e tem sido recorrentemente suborçamentada (caso da saúde) ”.

Os textos citados dizem-nos implícita ou explicitamente que o problema não estará sobretudo nas direções hospitalares, mas também aí está. O problema está sobretudo no Ministério das Finanças; depois no Ministério da Saúde, onde a incapacidade para reverter seja o que for da politica de devastação produzida pela Troika é mais que evidente como, por exemplo, a reconfiguração necessária e urgente das carreiras profissionais de todos os que trabalham no setor da Saúde que está por fazer, inclusive ao nível das chefias; depois estará também, mas com menos peso, nas direções hospitalares a ficarem demasiado rígidas perante os obstáculos gerados pelos responsáveis hierárquicos; e, por fim, e não menos importante, a responsabilidade está também numa lógica do sistema em que se pretende desvalorizar o setor público da saúde a favor do setor privado. Um projeto que já vem de longe em que se pretende financeirizar grande parte das funções do Estado a favor dos grandes grupos económicos, e sobretudo do setor financeiro. Basta ver o número de unidades clínicas que proliferaram no país, desde o aparecimento da crise em 2010, muitas delas a viverem, não tanto pela sua qualidade, mas sim pela degradação do setor público. Aqui a responsabilidade vai direitinha para o Primeiro-ministro, responsável pelas linhas programáticas do governo, embora a sua presença na conferência havida em Coimbra sobre a necessidade de refazer o Serviço Nacional de Saúde, seja um bom indício de que, desde há muitos anos para cá, temos um Primeiro-ministro interessado em atacar de frente a necessidade de reformular o Serviço Nacional de Saúde numa perspetiva de o colocar ao serviço dos cidadãos e não dos grandes interesses financeiros nacionais ou internacionais fortemente interessados neste setor. Veremos se o consegue, porque a direita do PS não irá abdicar de querer um Serviço Nacional de Saúde à americana, isto é, não vai desistir de querer colocar o sistema de saúde ao serviço das seguradoras e das grandes unidades de medicina privada. A saúde irá ficar mais cara, se a direita do PS e não só do PS, mas também a do PSD e a do CDS, ganhar a batalha. A diminuição da despesa, se a houver, será à custa da redução dos cuidados de saúde para muitos e da melhoria para alguns. Mas fiquemo-nos por aqui no que diz respeito à reforma do Serviço Nacional de Saúde.

 

Esta é a situação da criança. E quanto à situação da mãe da criança? Aqui deixem-me reproduzir um excerto de um texto escrito por Boaventura Sousa Santos e intitulado “Os silêncios ruidosos” em que tem por base a situação económica em que se encontra a minha filha:

Depois das eleições virão as más notícias. Mas mesmo estas serão estatísticas, isto é, abstratas, incapazes de romper o silêncio estrutural do sofrimento individual ou familiar, mesmo que este afete muitos milhares de indivíduos ou de famílias. Vejamos este caso recente de uma jovem da classe média caída de modo abrupto na pobreza: mãe de duas filhas menores, ambas a seu cargo, está desempregada sem receber qualquer tipo de subsídio de desemprego ou qualquer outro rendimento colateral. Solicita à Segurança Social (SS) o rendimento social de inserção (RSI). Pedido indeferido. Razões: por um lado, em relação a uma das filhas, como os avós constituíram uma conta na Caixa Geral de Depósitos, onde vão depositando dinheiro que estará disponível quando ela tiver 18 anos, isso é considerado rendimento disponível apesar de só estar disponível daqui a uns anos. Por outro lado, em relação à outra filha, considera-se que a pensão de alimentos que ela recebe é considerada rendimento da mãe… mesmo que por lei a pensão esteja consignada às despesas específicas da filha.

Esta mãe, como qualquer outro cidadão comum na situação dela, não percebe o comportamento da SS e acha que, além de injusto, é ilógico. No entanto, por maior que seja o desamparo em que se encontra, a sua voz será abafada contra o muro burocrático, hostil e persecutório em que a SS se está a transformar. O seu caso será sempre um caso individual e, portanto, irrelevante, mesmo que milhares de casos semelhantes afetem outros tantos milhares de cidadãos. O Estado burocrático, impessoal, não se deixa impressionar por dramas pessoais, individuais. Em tempos de imposição de austeridade aos cidadãos mais vulneráveis, qualquer pretexto é bom para reduzir os encargos do Estado, por mais ilógico e injusto que seja. O silenciamento estrutural do cidadão ferido nos seus direitos decorre de o Estado poder continuar a proclamar-se Estado social enquanto sub-repticiamente se converte em Estado antissocial.”

É esta mãe que o sistema agora quer “forçar” a pagar dois mil euros para tratar das cáries da sua filha de quatro anos. Tudo dito para percebermos que os “pobres” de meios materiais estão a ser acantonados para uma violenta precariedade, da qual o sistema tenta garantir que não saiam. São pois os silêncios ruidosos a que se refere Boaventura Sousa Santos, ou ainda como escrevemos há dias, por ocasião do 25 de Abril;  “Não insistir na necessidade da reversão das políticas até aqui seguidas e que nos vêm da Troika , não impor a sua própria realização, se bem que faseada de forma diferenciada em atuações sobre o muito curto prazo e ações sobre o médio e longo prazo, significa, parafraseando Doug Duncan, de Fannie Mae, que se esse motor de desenvolvimento e de aprofundamento da Democracia não for estabelecido, não for disponibilizado para toda a gente, poderíamos então estar a manter e a alargar uma subclasse permanente que comporta um conjunto totalmente diferente de conotações para uma sociedade democrática o que, para mim, é altamente preocupante e perigoso. Os populismos estão à espreita.”

Mas voltemos a um pormenor no texto do Boaventura Sousa Santos. Como avós, e de uma certa idade, criámos na altura, antes da crise, uma conta que ficaria disponível para a minha neta mais velha, quando chegasse à Universidade, aos 18 anos. Como gente de uma certa idade optámos por colocar a conta em nome dela e da mãe. Pois bem, eram estes valores que a lógica da Troika considerava rendimentos da mãe e, portanto, só elegível para o RSI depois deste dinheiro ser gasto. Logicamente, no caso de Passos Coelho e da Troika ao serviço de quem ele governava, filha de gente materialmente “pobre” não teria que chegar à Universidade. Para ser mão-de-obra barata não precisaria de gastar dinheiro na Universidade, e tanto mais assim quanto neste país o elevador social, característico de uma Democracia real, deixou de funcionar, avariou, pura e simplesmente.

O que temos aqui é, portanto, uma mãe encurralada até ao limite do absurdo, pelo Sistema Nacional de Saúde, por um lado e, por outro lado, pela ausência de mecanismos adequados de apoio aos cidadãos em dificuldade, a menos que estes atinjam o grau zero da civilização. Com isso, é a sua família que é também arrastada, porque é ela que tem de suprir as falências do sistema social e de saúde quando os seus meios também não abundam. Trata-se assim de membros de uma classe média a serem completamente encurralados e espalmados pelo disfuncionamento do sistema, a serem pois os esquecidos da Democracia a quem sistematicamente pedem para votarem nela, porque esta está ameaçada!

A confirmação do que acabo de dizer está na sua não elegibilidade para obter o Rendimento Social de Inserção, quando está desempregada e com duas filhas e apenas com pensão de alimentos, e mesmo esta é mínima, se se considerar apenas uma delas. Esta não elegibilidade que vem desde a Troika foi recentemente confirmada, ou seja, a reversão no sistema de apoio ao cidadão também está ainda para acontecer. Como em quase tudo, aliás. Pode o meu amigo António Gomes Marques gritar pelas reformas que não vê, porque reclama no deserto, enquanto todos ou quase todos ficarmos calados e convencidos de que a democracia em Portugal caminha no seu melhor. E esta é a ideia que está a ser vendida. Mas deve continuar a gritar, porque não sendo uma condição suficiente para se responder ao grave momento que se atravessa, é porém uma condição necessária, uma vez que sem a consciência coletiva do que se passa e porque é que se passa, assim não haverá nenhuma resposta social à crise que nos continua a ser imposta.

E não se pense que batermo-nos por uma consciência coletiva contra a visão de direita da própria direita e da ala direita do PS é tarefa fácil. A direita caciqueira (Assunção Cristas), a direita pró populista (Rui Rio), a ala direita neoliberal oficial do PS (Francisco Assis, Augusto Santos Silva entre outros), a ala direita neoliberal não oficial próxima ao PS, (de que assumimos como elemento de referência Vital Moreira) não desistem de retomar os valores e as bandeiras do neoliberalismo que nos levaram à crise, a começar pela visão blairista de Santos Silva, ideólogo do PS no tempo do governo de Sócrates, até ao mundo neoliberal de argumentação sofisticada de Vital Moreira, ideólogo da esquerda dos anos 70-80 e tradutor cuidado do Capital de Karl Marx, que eu hoje situaria entre o PSD e a ala direita do PS. É uma luta sem tréguas e o meu amigo António Gomes Marques sabe bem disso e desde há muito tempo. Ainda agora, a acabar este texto, vejo um artigo do jornal Público, em que fica claro para mim que nos devemos reunir em torno e defender criticamente [1] a geringonça, tal é o desagrado com que os nossos neoliberais de direita a encaram e dispostos, se puderem, a deitarem-na abaixo. Santos Silva quererá calçar as botas de Blair que as herdou da dama de Ferro, agora a enferrujar em paz, e espero já agora que não queira calçar também as luvas da ganância de Blair. Vital Moreira quererá substituir-se talvez a Hayek na defesa das virtudes do neoliberalismo. Vejamos o que nos diz o jornal Público (de 6 de Maio último) que passo a reproduzir:

 “Mas é na análise aos resultados do governo que Vital Moreira é mais demolidor ao atribuir a recuperação económica às políticas que vinham do anterior executivo: “A retoma económica já vinha de trás, desde o final de 2013, e foi essencialmente puxada pela retoma económica europeia, pelo boom turístico e pela política monetária expansionista do BCE, pelo que teria existido, mais décima menos décima, qualquer que fosse o governo”.

Embora não rejeite o contributo da aliança à esquerda para a recuperação de rendimentos e direitos e reconheça que “a reversão mais rápida das medidas de austeridade proporcionou um aumento do poder de compra que ajudou a dinamizar a economia, induzindo um círculo virtuoso”, Vital Moreira insiste que não foi esse o ponto de viragem do ciclo económico. “Não foi o fim da austeridade que gerou o crescimento, mas sim o contrário: foi a retoma iniciada anteriormente na economia e no emprego que proporcionou as condições orçamentais para desactivar os cortes nos rendimentos e nas prestações sociais”, sublinha.

Ora o que está por detrás deste texto é que a austeridade compensa, e esta é a tese neoliberal vendida e imposta pelo senhor Schauble, pelo senhor Jens Weidmann, do Bundesbank, pelo senhor Olivier Blanchard do FMI, antes de pedir desculpa ao mundo pelo seu engano dos multiplicadores, pelo senhor Olli Rehn do Eurogrupo, também ele de má memória, e também defendida por Durão Barroso pelo menos até ao momento em que Jan in’t Veld (economista e alto funcionário na União Europeia) escreveu um importante documento intitulado “A consolidação orçamental e os efeitos de repercussão nos países centrais e nos países periféricos da zona euro”, onde faz uma crítica em forma à austeridade imposta pela União Europeia.

Na linha da citação do Público, terá sido então a austeridade pura e dura imposta pela troika e praticada por Passos Coelho a gerar a crescimento económico a que se assiste agora. Isto é, foi o governo anterior que deu origem às condições de crescimento que se verifica hoje é o que nos diz. Mas também nos diz o seu contrário, quando nos diz:

”  [A retoma] foi essencialmente puxada pela retoma económica europeia, pelo boom turístico e pela política monetária expansionista do BCE, pelo que teria existido, mais décima menos décima, qualquer que fosse o governo”.

Ou seja, a retoma afinal é ou foi devida a fatores externos aos dois governos e, portanto, não foi o crescimento provocado pelo Governo Passos Coelho que gerou a retoma de agora, foram pois os fatores externos ao governo de então e ao de agora. Mas há uma enorme diferença de fundo: o governo apoiado pela geringonça, apesar da malha apertada com que a União Europeia afoga os países periféricos e contra a qual nunca os opositores ao governo atual levantaram a voz, pretende claramente reconstruir o tecido social todo ele esfrangalhado pela política económica e social fortemente agressiva praticada por Passos Coelho. E querer agora reconstituir o tecido social, querer conferir dignidade política ao cidadão e ao sindicalista em geral, querer aproximá-los com sinceridade da governação é tarefa que o neoliberalismo riscou por toda a Europa do mapa das coisas políticas a fazer. E a situação de bloqueio económico e social [2] criada pelo neoliberalismo é de tal forma grave que muitos politólogos como Jacques Sapir [3] em França, Lorenzo Dell Savio e Matteo Mameli em Itália, John McCormick nos Estados Unidos, entre muitos outros, já defendem a saída da crise política atual através de um populismo de esquerda.

Aliás, refira-se que para John McCormick o populismo é “o grito de dor” da moderna democracia representativa. Ouçam-no, portanto. Mas ouvir os esquecidos pela Democracia representativa é uma qualidade que se perdeu pelos que reduzem a democracia a uma luta pelo poder travada entre os diversos representantes dos interesses estabelecidos contra aos interesses dos esquecidos. Um pouco como na Fórmula 1 em que as pequenas equipas, muitas, estão lá para se estabelecer qual é das grandes equipas presentes (poucas) a que melhor se desembaraça das pequenas. Sempre assim desde que o neoliberalismo se tornou a ideologia dominante.

Os teóricos neoliberais do arco da governação nas modernas democracias representativas preferem ignorá-los e quando já não o podem fazer classificam-nos logo como os ignorantes e brutos (a seguir ao referendo do Brexit), como os sem-dentes, (François Hollande face ao descalabro das sondagens), como os deploráveis, (Hillary Clinton na campanha eleitoral), como gente retrógrada, (Matteo Renzi face ao referendo em que se rejeitou as suas políticas neoliberais). Porque não apelidar então todos estes esquecidos pela Democracia, pela globalização, pelo progresso, de “miseráveis” das democracias modernas, a relembrar Vitor Hugo? E depois não se espantem que um dia qualquer, os silêncios ruidosos se tornem demasiado ruidosos e ponham em perigo a própria Democracia. Se assim for, e quando o for, o que lhes chamarão, então?

Ora, o governo de António Costa, apoiado pela geringonça, quer distanciar-se desta prática de utilização da surdez como sistema, quer aproximar-se daqueles que nas urnas direta ou indiretamente o votaram. E se, por contraponto ao governo Passo Coelho/Troika, o governo consegue ou não os objetivos referidos, é toda uma outra história, mas se o não conseguir, o pior cenário, o mínimo que se exige, depois, é que as razões desse hipotético fiasco sejam analisadas com lisura e com profundidade crítica.

Quanto à retoma de 2013 na Europa, deixem-me reproduzir um pequeno excerto de uma conferência produzida pelo Governador do Banco de Inglaterra, Mark Carney na Conferencia do G-20 em Xangai, um homem tão ou mais neoliberal que o próprio Vital Moreira, e que nos dá uma visão global do que se passou neste período:

Discurso pronunciado por Mark Carney, Governador do Banco da Inglaterra e Presidente do Conselho de Estabilidade Financeira, na 8ª Conferência Anual do Instituto de Finanças Internacionais do G20, em Xangai, no dia 26 de Fevereiro de 2016.

A economia mundial corre o risco de ficar prisioneira de um baixo crescimento, baixa inflação e de uma baixa taxa de juro de equilíbrio. Nos últimos sete anos, o crescimento foi de desilusão em desilusão, uma série de desilusões – às vezes de maneira espetacular, como nas profundezas da crise financeira mundial e da crise do euro; mais frequentemente do que outrora, porque o endividamento passado pesa sobre a atividade (Gráfico 1).

Esse insuficiente resultado é principalmente o produto de um crescimento mais fraco da oferta potencial em praticamente todas as economias do G20 [4]. É um claro sinal de que o estímulo à procura, por si só, pode fazer muito pouco para neutralizar as forças de longo prazo das mudanças demográficas e do crescimento da produtividade.

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Com isto não se quer sugerir que um tal estímulo seja sem qualquer valor, sem qualquer impacto. A política monetária acomodatícia pode apoiar a atividade enquanto certas partes da economia se degradam. O estímulo monetário pode evitar a histerese no mercado de trabalho. E o estímulo monetário pode levar a que se ganhe tempo para os ajustamentos estruturais que transferem a atividade do setor público para o setor privado, do setor externo para o setor interno, e para que melhore substancialmente a situação económica dos setores em declínio.”

Enfim, e por fim, a argumentação levantada contra a geringonça por Vital Morreira faz-me lembrar uma afirmação de um colunista do Washington Post, Matt O’Brien, que em torno da crise escreveu: “será preciso que nos façam chorar até rirmos às gargalhadas ou que nos façam rir até chorarmos convulsivamente?

Em forma de conclusão, o que fez o António Gomes Marques, o que eu aqui faço, tal como ele, é mais um grito de revolta, apenas isso mesmo e talvez o último nesta matéria, em face do massacre produzido pela austeridade cega a que a União Europeia nos obrigou e ainda nos obriga [5] e o exemplo aqui apresentado é um claro exemplo do mal-estar que, em consequência, grassa pela classe média em Portugal [6].

Ou não será assim?

 

Notas

[1] É de resto neste sentido que se insere o presente texto, denunciar uma situação inaceitável, procurar perceber as razões da sua existência, procurar que a mesma seja resolvida, sendo certo para mim que tudo isto passa, por um lado, pela austeridade atualmente imposta pelas Instituições Regionais e Internacionais, e também por um fenómeno normalmente complexo, o da histerese ao nível das chefias, reproduzindo os tempos selváticos da Administração de Passos Coelho e nisto estamos do outro lado, relativamente a Vital Moreira, no que diz respeito ao que foi a governação da Troika. Acrescente-se que a histerese é um dos aspetos que torna ainda mais difícil a reversão da política da Troika quando esta reversão também se pode traduzir na necessidade de mudanças urgentes de pessoal de chefia, de modo a que uma outra organização possa corresponder, no plano imediato e apenas neste, a mais serviços para os mesmos custos.

[2]  Se dúvidas há, basta então ver o artefacto legislativo que com a crise e sob a égide de Durão Barroso foi criado ao nível da Comissão Europeia e que retira aos Estados nacionais grande parte da sua autonomia, amarrando-os à logica neoliberal pura e dura imposta pelas Instituições Regionais, como a EU, ou Internacionais como o FMI.

[3]  Veja-se: Jacques Sapir, Souveraineté, Démocratie, Laicité, edit. Michalon, Paris, 2016

[4]  O FMI reviu em baixa a sua previsão de crescimento pelo quinto ano consecutivo; e agora espera que o crescimento global seja de 3 ½% em 2016 e 2017. Em parte, isso reflete uma redução na avaliação do crescimento potencial global do FMI abaixo da taxa média de crescimento de cerca de 4% na década anterior à crise. No Banco da Inglaterra, as nossas projeções são ainda um pouco mais fracas. Esperamos que o crescimento global ponderado pela PPP neste ano seja de apenas 3,0%, um quarto de ponto inferior à nossa estimativa para 2015.

[5] Como se assinala em Uma estratégia orçamental sustentada para Portugal, no âmbito do braço preventivo do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) , as regras neste contexto preveem um ajustamento estrutural linear mas inferior  a 0,75 p.p. do PIB para serem atingidas uma de duas metas: a redução da dívida pública acima de ( 1/20) em cada ano; ou a convergência para o OMP, que no caso de Portugal está atualmente fixado como sendo  um saldo estrutural de 0,25 p.p. do PIB, (…) a quem é exigido o segundo mais elevado Objetivo de Médio Prazo”

[6]  Já para não falar sobre o risco de pobreza ou exclusão social: dados do INE indicam que, em 2017, apesar da sua diminuição em relação ao ano anterior (menos 196 mil pessoas), existiam dois milhões e 399 mil portugueses (quase 25% da população) estavam em risco de pobreza ou exclusão social.

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