A GALIZA COMO TAREFA – nada de dramas – Ernesto V. Souza

Apanhou-me a mudança de Governo da Espanha desenferrujando uma velha pá de jardim e mangando-a de novo com uma madeira de reciclagem topada na rua. Serras, plaina, limas e lixa. Agora está pronta, de cabo bem firme e pintadinha, transformada em ferramenta de campismo.

Com paciência e alguma ferramenta tudo pode fazer-se. E com tempo, que tudo dissolve, qualquer cousa pode vir a acontecer. Vemos mesmo passarem os inimigos velhos, bem cadáveres pela porta, bem tornados em amigos; e caírem governos que pareciam sólidos como as torres mais altas. E outros vêm, e pouco passa.

Realmente não há nada comparável a ter tempo. Tempo para fazer, para pensar, para ler e cuidar os livros, para aprender. Tempo para treinar as mãos e cultivar o pensamento próprio; tempo para a conversa com a gente arredor; tempo para ver passar a vida e ir fazendo da palavra uma ferramenta útil e elegante.

Contemplamos estuporados que nos venham dar a razão décadas depois a velhas ideias, ou reconhecimento por trabalhos abandonados, e que já, tanto tem, andamos a outras. Mais que a excelência, a cultura do esforço e o curriculum, mais que a preparação, as heranças, os contatos, a agenda e os dinheiros (salvo que se usem justo para comprar tempo) nada vale o que poder esperar e ver passar o tempo, que total, termina colocando sempre as cousas no lugar que lhe melhor ajustam.

Talvez por isso, as duas cousas das que mais gostei da saída do Governo de M. Rajoy foram: obviamente e em primeiro lugar, a própria saída, e com ela a de todos esses ministros enlouquecidos, vociferantes e fachosos, que levaram a política espanhola a um cenário de agitação ideológica, austericismo social absurdo e burocrático, dogmatismo nacionalista e violência verbal insuportável; e, em segundo lugar, o comportamento tão galego do ex-presidente na hora da saída. Continuando essa trajetória e estratégias tradicionais que lhe permitiram sobreviver, liderar, reformar no possível o PP que deixara Aznar, ganhar eleições, fazer parlamentarismo clássico, chefiar um Partido caciquil à deriva, tocado pela corrupção e governar à galega dentro de uma lógica nacionalista, conservadora e de direita tradicionalista espanhola.

Que foi o que gostei daquela? que não dramatizou. Chegou como chegou, fez o que pode, achou e lhe deixaram e foi-se porque tinha de ser ir. Foi explicando tudo em cada momento, quando lhe pareceu oportuno, incompreensível porém em todo momento à lógica inperspicaz mas gritante à moda da Espanha.

“Nunca digas desta água não beberei”, “não cuspas para riba”, “a tudo chegaremos” paciência e baralhar”, “já se verá”, “podes ter razão, mas não sei se lá chegaremos”… com diferentes intensidades, tonalidades e significados são cousas que dizia muito o meu avô, e hoje, de mais em mais, vai dizendo meu pai, que também é agora avô. “Depende…”, “se tem de chover que chova”, “que chova… que já escampará”, “deus é bom e o demo nem é tão mau”. Enfim. Ceticismo, reticências, paciência, cautelas e saber bem suportar, que já chegaremos, já saberemos.

Mais anos que levo, e levarei, a viver em Castela e não me afago a essa agitação permanente, ao imediato, e especialmente ao drama, à dramatização da vida com o momento efêmero como único destino, ao impulso e às paixões súbitas de cada detalhe e momento exprimidas na linguagem. Argumento, debates por tudo, exigência de fixar na palavra as palavras e a posição de cada momento e questão, a opinião e o tu onde te situas, como algo exigível… enfim… como se algo disso tivesse qualquer sentido no dia depois, ou fosse realmente importante para ir vivendo ou fazendo.

As guerras de símbolos, de religião ou bandeiras, nações e nacionalismos, não funcionam, e para além são cousa alheia, muito mais do que pensamos e completamente dentro dos esquemas da atual cultura espanhola em invenção. A Galiza tem uma outra cultura, lógica, estética, crenças, sentido do bem e do mal, já foi província e reino antes das nações existirem no costume da França, e portanto se algum dia quer ser República ou qualquer reconhecimento noutro e novo esquema de Estado, deve ter estratégias culturais, políticas, sociais e linguísticas próprias e desdramatizadas. Deve ter outros modos, discursos e jeitos de fazer política e sociedade civil. Que estar, estão aí, são os da gente.

No canto de importar modelos alheios e tratar de competir neles, nos seus códigos e valores, melhor nos iria se deixássemos de imitar e volvêssemos a jogar a favor do tempo. Evitemos os dramas, os golpes no peito, e as afirmações rotundas de grande e inflexível posicionamento. Tudo o que tenha de chegar, chegará, até os tempos dos bardos das idades. Nada de dramas. Melhor desenferrujar e ir fazendo. Já escampará.

 

 

 

 

 

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