Espanha, a Geringonça e os limites da criatividade. Por Francisco Tavares

limites da criatividade

Espanha, a Geringonça e os limites da criatividade

Por Francisco Tavares FTavares

Em 17 de junho de 2018

Chamo aqui dois apontamentos do embaixador Seixas da Costa, publicados no seu blog Duas ou três coisas, com o título “Os limites da criatividade” e “Cinco notas sobre a Espanha”, de 2 e 1 de junho passado (e que reproduzo abaixo). Apontamentos sem dúvida certeiros, e estimulantes, como nos habituou o embaixador com a sua escrita.

No primeiro artigo, a propósito da esperança, manifestada por um amigo socialista, de que o líder do PSOE, novo presidente do governo espanhol venha a conseguir negociar uma “ fórmula” institucional que permita acomodar, ou protelar duradouramente, as tensões autonómicas mais radicais e o movimento independentista catalão“, diz que já passou “… a idade de poder vir a acreditar em milagres” e recorda, em apoio, ” … uma historieta que mete a Espanha e um tema também «impossível»: Gibraltar” constituída por um ” … interessante processo de mediação que Portugal procurou desenvolver, durante a sua presidência da instituições europeias em 1992, no sentido de se poder encontrar uma solução para a integração de Gibraltar no espaço de livre circulação no espaço europeu, com a possibilidade de utilização do respetivo aeroporto – construído numa zona de soberania contestada pela Espanha” e que ” … não obstante toda a criatividade, em matéria de soluções técnicas, demonstrada por Portugal, cuja mediação tinha a confiança política de ambas as partes, não foi possível obter-se um acordo“. Conclui assim com uma afirmação do diplomata inglês Greenstock, interlocutor da parte do governo britânico: “… estas conversas nunca poderão levar a nada. Isto não é uma questão técnica, é um problema político de fundo. Quando há soluções políticas, as fórmulas técnicas são fáceis de encontrar. O contrário nunca é verdade “. E deixa a interrogação: “Pedro Sánchez e o PSOE sabem isto muito bem. Pretendem ganhar tempo?

Este apontamento do embaixador Seixas da Costa trouxe-me à memória um recente comentário que fiz a propósito de um artigo de Augusto Santos Silva sobre os filhos de Kant e os filhos de Hegel, e de um comentário do prof Mario Nuti sobre os êxitos das políticas da Geringonça (“Ainda a geringonça – A Terceira Via e a atual situação de impasse, na Europa e em Portugal também. Reação a um artigo de Augusto Santos Silva e também às interrogações de Nuti sobre Portugal” in https://aviagemdosargonautas.net/2018/05/23/ainda-a-geringonca-a-terceira-via-e-a-atual-situacao-de-impasse-na-europa-e-em-portugal-tambem-reacao-a-um-artigo-de-augusto-santos-silva-e-tambem-as-interrogacoes-de-nuti-sobre-portugal-por-fran/) onde assinalo algo de parecido com os limites da criatividade em política relativamente às políticas da Geringonça. Chamei então a atenção para o esgotar de soluções balizadas dentro das políticas marcadas pelo signo da austeridade, ou seja, para os limites à continuação dos sucessos do governo português em virtude de as suas políticas estarem constrangidas pelos sacrossantos princípios da austeridade. Efetivamente, em questões fundamentais, não havendo soluções políticas, não há soluções técnicas que valham. E aí está mais um caso, o de Itália, que apenas o confirma.

É que os princípios da austeridade – desregulação do mercado de trabalho, desvalorização dos salários, trabalho precário, cortes na despesa pública, privatização de importantes áreas do estado de bem estar (saúde, educação, pensões e outras) – apresentados como absolutamente necessários (condição necessária e suficiente) para cumprir os sagrados défice dos 3% e limite da dívida em 60% dos Tratados europeus, são assim como que uma espécie de rochedo de Gibraltar. Os princípios da austeridade (o Rochedo) têm por soberanos a Comissão, o Conselho (de 1ºs ministros da UE) e o Eurogrupo (grupo informal dos ministros das finanças da eurozona). Os que questionam os princípios de austeridade têm por soberanos ou países (o caso da Grécia, o caso da Itália) ou grandes camadas das populações da UE atingidas pelas políticas de austeridade (o próprio Brexit tem, na minha perspetiva, muito que ver com as políticas de austeridade seguidas pelos governos do Reino Unido). E estes que questionam aqueles princípios, que não controlam o poder na UE, têm que ter muita criatividade para manobrarem dentro dos limites impostos pelo “Rochedo”. Como se tem visto no caso da Geringonça. Ainda que estes limites sejam, tarde ou cedo (creio hoje que mais cedo), uma barreira que, a manter-se inalterada, não vejo que seja ultrapassável. O que significa que a correspondente atual solução política geringonciana não me pareça sustentável a médio/longo prazo.

Quanto a Pedro Sanchéz. Será que a questão da criatividade se põe apenas agora a propósito do novo governo de Pedro Sanchéz? O governo de Rajoy, que esteve 6 anos no poder, que medidas criativas apresentou?

O tema territorial em Espanha certamente exigirá soluções políticas. Já se viu à exaustão que as soluções “técnicas” de Rajoy e do PP não abriram vias de solução. O caminho poderá ser aberto por um governo minoritário? Porque não? Pois se o assunto requer um consenso alargado, será um governo maioritário o mais indicado para o conseguir?

Além da experiência que o embaixador Seixas da Costa relata a propósito de Gibraltar, certamente que a sua experiência enquanto diplomata e também enquanto integrante de um governo minoritário (como Secretário de Estado dos Assuntos Europeus de 1996 a 2001) foram um acervo de ensinamentos quanto aos “limites da criatividade” em política. Mas se governar apenas fosse possível, ou aceitável, com base numa maioria absoluta de um partido, ou de duas forças políticas com programas relativamente semelhantes, talvez Sanchéz (e PSOE) pretendessem tão só ganhar tempo. Mas, isso descartaria várias das soluções governativas que estão em vigor por essa Europa.

O tempo em política não é linear, variando em função de múltiplos fatores e dos interesses em disputa. Ganhar tempo pode servir tanto para protelar a tomada de decisões para um momento mais favorável como para preservar uma situação. Também na política os caminhos não estão escritos. Face aos resultados das soluções “técnicas” da direita espanhola, irá Pedro Sanchéz procurar ganhar tempo para criar condições mais favoráveis a uma inevitável, e mais consensual, solução política?

No segundo artigo o embaixador Seixas da Costa assinala que ” … é talvez o governo potencialmente mais frágil da história democrática espanhola ” e que o ” … apoio heteróclito à moção de censura que derrubou Rajoy (…) nada tem a ver com uma alternativa sob base programática coerente …”.

É sem dúvida um governo frágil, desde logo na medida em que é minoritário. Mas também o governo do PP era um governo minoritário, dependente de Ciudadanos e mais uns “queijos”. Para uma maioria necessária de 176 deputados, PP (134) e Cs (32), ficavam mesmo assim a 10 votos da maioria absoluta. Ainda agora, para aprovar o orçamento, o PP tinha andado a negociar mais uns dinheiros para obter o apoio do PNV (do País Basco).

Depois, não assenta numa negociação com as forças que o apoiaram, pelo menos com a profundidade a que se assistiu em Portugal com a Geringonça. Mas a Geringonça tão pouco se pode dizer que seja uma alternativa sob base programática coerente. O que foi a Geringonça à nascença senão uma expressão de rejeição de um desastre chamado “governo Passos Coelho/Portas”, também conhecido como governo da Troika? No caso espanhol há semelhanças: afastar um governo sem soluções, numa situação de empobrecimento geral da população, fragmentação social, deterioração institucional e descrédito da (na) democracia liberal. E um partido (PP) assolado por casos de corrupção. Certamente, as negociações que decorreram entre PS e PCP e Bloco de Esquerda (e que se mantêm continuadamente até ao dia de hoje), por um lado, e, em Espanha, a questão territorial, em particular o caso da Catalunha, por outro, desde logo marcam diferenças entre o caso português e o caso espanhol.

O que será expectável é que o novo governo tenha de assumir uma posição de permanente negociação, em que as possíveis soluções estão altamente constrangidas pelas regras da eurozona, e a sempre presente questão territorial. O caso Catalunha não será candidato a uma cura milagrosa, é problema que levará muitos anos a resolver. E Pedro Sanchéz avisou: negociar sim, a partir do quadro constitucional existente.

Mas qualquer margem de descompressão que o novo governo obtenha (e, sem dúvida que necessitará de imaginação, mas também certamente vontade política das partes em presença) irá em prejuízo de Ciudadanos que cresceu fundamentalmente na base do confronto sobre a questão territorial da Catalunha. Sempre que o debate se centrou, e agudizou, no tema “nação”, em prejuízo do tema social, Ciudadanos aumentou o seu número de votantes.

Quanto à posição de Lisboa, concordo inteiramente que “o silêncio … é a mais sensata postura a propósito da vida política espanhola “e que “Tentar cavalgar cumplicidades políticas é um erro…“. Efetivamente, em política externa os interesses de cada país estão (e devem estar) à frente das eventuais amizades dos seus governos.

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Os limites da criatividade

Por Francisco Seixas da Costa, em 2 de junho de 2018

Ao final da noite de hoje, um amigo crédulo – e socialista, o que não é sinónimo – dizia-se esperançado em que Pedro Sánchez, o lider do PSOE feito presidente do governo espanhol pelo voto do Partido Nacionalista Basco, venha a conseguir negociar uma “fórmula” institucional que permita acomodar, ou protelar duradouramente, as tensões autonómicas mais radicais e o movimento independentista catalão.

Eu acredito muito nos socialistas, mas já passei a idade de poder vir a acreditar em milagres. E embora nas aulas que dou explique que, muitas vezes, a “ambiguidade construtiva” é uma fórmula de texto que permite leituras não unívocas, que servem para adiar conflitualidades, não me parece que, num domínio onde tudo já foi tentado, o nóvel primeiro-ministro possa vir a surpreender-nos. Embora fosse magnífico se isso pudesse acontecer!

E, a propósito, lembrei-me de uma historieta que mete a Espanha e um tema também “impossível”: Gibraltar.

Entre a Espanha e o Reino Unido renasce, a espaços, a polémica em torno da questão de Gibraltar, com ambos os países a insistirem nos seus direitos de soberania sobre o rochedo.

Este é um tema difícil para Londres, que não consegue fazer esquecer a solução que foi dada a Hong-Kong, face à China, e tem sempre presente a paralela questão das ilhas Falkland/Malvinas, com a Argentina. Mas a diplomacia espanhola tem igualmente que defrontar-se com o exemplo da sua presença em Ceuta e Melilla, contestada por Marrocos. E já nem trago aqui a questão de Olivença…

O que julgo não ser conhecido, mas que me parece suficientemente longínquo no tempo para o poder ser, é o interessante processo de mediação que Portugal procurou desenvolver, durante a sua presidência da instituições europeias em 1992, no sentido de se poder encontrar uma solução para a integração de Gibraltar no espaço de livre circulação no espaço europeu, com a possibilidade de utilização do respetivo aeroporto – construído numa zona de soberania contestada pela Espanha, o que constitui um outro problema, que é independente da própria questão central da soberania de Gibraltar.

As conversações tiveram como um interlocutor português, Paulino Pereira, um técnico que era o representante pessoal do então secretário de Estado dos Assuntos Europeus, e o embaixador britânico Jeremy Greenstock, ao tempo diretor-geral para a Europa. Estive presente nas reuniões que tiveram lugar em Londres, onde eu trabalhava na embaixada, sendo que outras decorreram em Madrid.

Infelizmente, e não obstante toda a criatividade, em matéria de soluções técnicas, demonstrada por Portugal, cuja mediação tinha a confiança política de ambas as partes, não foi possível obter-se um acordo. Lembro-me, em particular, que procurámos gizar um modelo de utilização dual do aeroporto, com acessos diferenciados e jurisdições complementares. Não guardei qualquer documento sobre esse processo negocial, que então foi rodeado de grande secretismo.

Uma noite, depois de um encontro num hotel londrino onde Paulino Pereira se esforçou em promover soluções técnicas, muito imaginativas, que Lisboa tinha gizado para tentar tornear o problema, saí para a rua com Greenstock, de quem me havia de tornar amigo e com quem vim a coincidir, uma década depois, como embaixador junto das Nações Unidas.

Dei-lhe boleia no meu carro até ao metro que ele ia apanhar para casa. Eu estava cada vez mais cético com o andamento das conversas e aproveitei para lhe perguntar se, com sinceridade, via que a nossa fórmula podia ter algumas “pernas para andar”. Esperei aquelas tiradas muito próprias da diplomacia britânica: que era “uma boa base de trabalho”, que tínhamos que aprofundar e precisar melhor alguns aspetos, que era importante perceber se os espanhóis podiam “evoluir” na sua posição e coisas assim.

Greenstock, visivelmente cansado, sem paciência para “understatements”, recostou-se no banco e disse-me: “Tu já deves ter percebido que estas conversas nunca poderão levar a nada. Isto não é uma questão técnica, é um problema político de fundo. Quando há soluções políticas, as fórmulas técnicas são fáceis de encontrar. O contrário nunca é verdade”.

Pedro Sánchez e o PSOE sabem isto muito bem. Pretendem ganhar tempo?

 

Cinco notas sobre a Espanha

Por Francisco Seixas da Costa, em 1 de junho de 2018

1. O voto que afastou o PP do governo de Espanha foi mais do que merecido. Rajoy foi incapaz, no seu longo mandato, de travar a endémica corrupção que atravessava o seu partido, a vários níveis. Ele e o PP deram mostras de uma arrogância que cansou os espanhóis. É isso que faz com que a sua saída, substituído por um partido menos votado, seja aceite sem qualquer sobressalto no país.

2. O apoio heteróclito à moção de censura que derrubou Rajoy, permitindo a Pedro Sanchez subir a presidente do governo, nada tem a ver com uma alternativa sob base programática coerente. Não se trata de uma Geringonça, é apenas uma expressão de descontentamento contra o PP e Rajoy.

3. Num parlamento espanhol com 350 lugares, o PSOE, cujo líder vai agora ser primeiro-ministro, apenas tem 84 deputados. Este é talvez o governo potencialmente mais frágil da história democrática espanhola, desde que, em 1978, entrou em vigor a atual constituição.

4. Depois de Rajoy, em quem a direita espanhola sempre viu um “genérico” de Aznar, vai ser difícil ao PP reinventar-se. Se o Cuidadanos souber explorar em seu favor alguma debilidade do PSOE no poder, pode vir a ter a sua “chance” nacional. Mas será difícil: ainda há “duas Espanhas”.

5. Tal como na questão catalã, o silêncio de Lisboa é a mais sensata postura a propósito da vida política espanhola. Tentar cavalgar cumplicidades políticas é um erro. As mais frutuosas relações democráticas bilaterais foram tituladas por Cavaco-Gonzalez e Guterres-Aznar.

 

 

 

3 Comments

  1. Se Portugal – e muito bem – não podia ter colónias, que razão haverá para que, então, o reino de Castela possa tê-las?CLV

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