A crítica demolidora de Michael Pettis à teoria e à política económica neoliberal. Carta aberta aos senhores Ministros da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, e da Economia, Caldeira Cabral – 1. Reflexão sobre as Universidades em geral e sobre o ensino de economia em particular (1ª parte). Por Júlio Marques Mota

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Carta aberta aos senhores Ministros da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, e da Economia, Caldeira Cabral

Um texto dedicado aos meus antigos alunos que tanto massacrei com fórmulas e gráficos ao longo de décadas, a todos os outros os que se interessem pelo ensino de Economia em Portugal.

 

1. Reflexão sobre as Universidades em geral e sobre o ensino de economia em particular (1ª parte).

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Por Júlio Marques Mota julio-marques-mota

em 18 de janeiro de 2018

Dedico esta série à família de Álvaro Ramos Pereira e recordo as magistrais lições de economia dadas no seu escritório a um pequeno grupo de estudantes de que eu fazia parte.

Uma apresentação de uma série que podia ser encarada também como um bilhete-postal ao Ministro de tutela do Ensino Superior e ao nosso Primeiro-Ministro, a propósito de que o ensino universitário está lentamente a morrer. Se isto é grave, gravíssimo, pois com isso se compromete o futuro do país, mais grave ainda é o silêncio à volta do caixão do dito defunto que se está a preparar. Operações sucessivas de cosmética, índices de avaliação para tudo, índices para as escolas, índices para os professores, assiste-se portanto a uma maquilhagem para mostrar que o morto está vivo.

Neste contexto, a gestão das Universidades tal como está a ser praticada, mais parece uma sucursal de uma agência de rating ou então do Ministério das Finanças ou ainda das duas instituições, como se queira. Se dúvidas há veja-se o despacho do Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra no tocante às remunerações dos docentes convidados, que aplicou um corte de 40 por cento, de tal forma que um professor convidado, com o grau de doutor, pouco mais ganhará, à hora, que uma mulher-a-dias, e com o risco de no final do ano entrar em situação de burn-out! Para que isso não aconteça, resta-lhe considerar os alunos pelas costas e maquilhar, maquilhar, obter bons resultados escolares, para assim poder ver o seu contrato renovado para o ano seguinte. Mas para que isso possa acontecer não pode haver muita exigência, tem de haver sucesso escolar e esse mede-se não pelo que o aluno fica a saber, que raio de ideia, mede-se pela percentagem de passagens, uma metodologia muito em voga naquele que foi o reino da Dama de Ferro, agora a enferrujar em paz. De resto, tem que ser tudo muito simples, porque de tanta aula a dar garantidamente não há tempo para as aulas preparar. E se alguns escapam a este modelo, preparando-as a sério, deparam-se a seguir com um mundo de incompreensão e de animosidade pelo lado dos colegas por não serem imagem daqueles, mas não só, porque pelo lado dos alunos espreita a incapacidade de compreender o esforço do docente pela falta de bases dos alunos e que se alarga de ano para ano civil e de ano para ano escolar. No fim, ao professor docente espera-o a complacência na avaliação final dos alunos (exames ou provas equivalentes) ou alternativamente espera-o, no mínimo, uma má avaliação feita pelos alunos nos seus inquéritos de avaliação aos professores, inquéritos estes que entram na avaliação do rating do professor. Não há volta a dar. Adicionalmente ainda, perde muito do tempo necessário para maquilhar o seu curriculum. O cuidar do seu curriculum, a sua maquilhagem, é hoje uma necessidade vital, de sobrevivência, mesmo para um professor.

A demonstração de tudo isto é fácil de fazer. Por licenciatura e por faculdade, escolha-se de forma aleatória de entre os alunos licenciados com média entre os 11 valores e os 13, a maioria, um número x de alunos e coloquemo-los perante uma prova escrita à mão onde se avaliem os conhecimentos adquiridos na respetiva licenciatura. Obviamente tomando como referência matérias ou temas ligados a uma ou mais disciplinas obrigatórias. Uma outra forma, para cursos que não sejam de Engenharia ou afins da Faculdade de Ciências ou de Medicina, seria apresentar-lhes um texto escrito para o grande público tipo dos que são publicados no jornal Público, pelos colaboradores independentes e residentes do jornal. Tirem-se depois as devidas conclusões.

Aliás quanto às Faculdades ditas de Ciências, veja-se o relato que nos dá o Expresso sobre Medicina de Lisboa e do Porto e veja-se o que está escrito nas entrelinhas:

Faculdade de Medicina de Lisboa:

Identificar o que estava numa TAC ou ecografia e fazer ‘diagnósticos’ sobre problemas práticos — por exemplo, descrever as estruturas atingidas numa vítima de esfaqueamento na axila ou na virilha — foram as principais dificuldades dos alunos no exame, teórico e prático, feito no início do ano. As notas negativas ficaram acima dos 50% e a surpresa foi geral. “Na prova teórica chumbou mais de metade e estávamos à espera que o resultado melhorasse na avaliação prática mas foi outra desgraça”, diz o responsável pela anatomia na FML.

Conforme a disciplina, a taxa de reprovação varia entre 5% e 15%, logo valores acima de 50% eram até agora inéditos. “Nunca tinha acontecido, pelo que foi objeto de reflexão”, afirma Ivo Furtado, regente da disciplina de anatomia clínica, que correlaciona o conhecimento do corpo humano com a prática médica. O caso foi de tal forma polémico, “por ser tão anómalo, que foi constituída uma comissão de análise, dirigida pelo presidente do Conselho Pedagógico da FML”, explica António Gonçalves Ferreira.

Como é que alunos brilhantes que querem ser médicos não conseguem correlacionar o corpo humano com a doença, precisamente o que vão ter que fazer para tratar doentes? A resposta demorou algumas semanas até ser encontrada, já este mês. Resumidamente: prova difícil e menos estudo. “A matéria foi dada com pormenor talvez excessivo, os alunos não acompanharam a disciplina nas aulas teóricas, a dificuldade das perguntas foi definida para cima, muitas perguntas e questões complexas para responder em quatro a cinco minutos na avaliação prática e imagens de imagiologia dadas com pormenor apenas nas aulas teóricas”, elenca António Gonçalves Ferreira.”

Faculdade de Medicina no Porto:

Desde há dois anos foram notícia por terem entrado no Ensino Superior com as classificações mais altas do país. O aluno mais ‘fraco’ entre os 245 caloiros da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) ingressou com 18,67 valores de média. Este ano, a notícia é outra. Muitos acabaram por ser surpreendidos com as primeiras negativas do percurso escolar e com notas a que não estavam habituados. Em várias cadeiras, a média ficou nos 10 valores ou menos. A Morfofisiologia Integrativa e a Morfofisiologia dos Sistemas Respiratório e Urinário vários exames foram corridos a 6, 7 e 8 valores. E nestas duas unidades curriculares (são seis disciplinas ao todo no 2º semestre), as taxas de não conclusão foram de 53% e 48%, respetivamente. Nos dois anos letivos anteriores tinham ficado em torno dos 20% ou menos.”

As notícias não nos deixam nada satisfeitos e mostram-nos inegavelmente que o silêncio é sepulcral, desde as autoridades de tutela até aos responsáveis das respetivas faculdades de Medicina. Em Lisboa o problema foi “resolvido” com revisão de provas e os resultados ajustaram-se à média histórica. Em suma, nada se degradou!

Uma outra análise, paralela à anterior mas agora pelo lado do corpo docente, o grande martirizado com toda esta política, deveria ser feita pelos representante sindicais no terreno, onde se estabeleça um mapa dos docentes admitidos depois do rebentar da crise, das suas cargas horárias, do tipo de contratos que estes se viram obrigados a aceitar, das disciplinas lecionadas, das horas letivas impostas, da bibliografia de facto utilizada em aulas, que pode mesmo pouco ter a ver com o material de facto lecionado.

Um outro exemplo seria fazer-se uma análise séria sobre as teses de mestrado, mesmo que aqui seja difícil perceber bem o que é do aluno ou do orientador, uma vez que os conhecimentos dos alunos são muito baixos à partida e que os resultados das teses também contam para o ranking do professor. Daí necessariamente um apoio muito maior do que é convencionalmente esperado do orientador ao orientando e ainda bem que assim é. Deixar quase sozinhos alunos de 20-22 anos com fracos conhecimentos a fazerem uma tese na base apenas de orientações genéricas, quanto esta tese é o culminar da sua vida académica é encher os consultórios dos psiquiatras de gente a pedir-lhes apoio. Falem com os médicos e estes que se abram sobre as suas experiências. Deixar estes jovens sozinhos a defenderem-se da atrocidade de um sistema que se autoproclama estar a defendê-los (o discurso de proteção das gerações futuras) seria um crime mas, por outro lado, não forçar a que os jovens adquiram as ferramentas intelectuais que os defendam face ao mercado de trabalho desregulado a seu desfavor, é inaceitável.  Este é um grave dilema que, penso, atravessa grande parte da classe docente. Dizemos grande parte da classe de professores, porque necessariamente muitos deles já soçobraram face a este dilema. Como? Colocando-se debaixo de um guarda-chuva protetor, uma espécie de síndroma de Estocolmo, colando-se ao sistema. Vencidos, portanto. Outros, como é o meu caso, desistiram de lutar internamente por dentro do sistema e simplesmente saíram, logo que foi possível.

Crítico, muito crítico relativamente ao corpo docente universitário? Vejamos o que nos diz Vitorino Magalhães Godinho sobre a reforma de Bolonha em vigor e que constituiu a maior machadada sobre o ensino superior até hoje dada e, no fundo, também sobre o corpo docente que a subscreveu ativa ou silenciosamente, mas que a subscreveu:

Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acordo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob as forcas caudinas.

Vd. Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal, os problemas da Europa, 2.ª ed., Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 62.

Tudo bem claro, portanto. E poder-se-ia continuar…

Estarei, de novo, a ser catastrofista, talvez, mas não o creio. Sinceramente, antes tivessem razão os que me acusam de ser catastrofista.

(continua)

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