Ainda a Geringonça: os êxitos do atual governo, vistos do exterior e vistos desde Portugal – Como parece a Geringonça quando vista desde Portugal – uma resposta a Mario Nuti sobre o caso exemplar das políticas socialistas de sucesso em Portugal (2ª parte-conclusão). Por Júlio Marques Mota

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Cartoon da autoria de Vasco Gargalo realizado para uma reportagem da RTP que regista o segundo aniversário dos inéditos acordos de Governo entre PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes

Como parece a Geringonça quando vista desde Portugal – uma resposta a Mario Nuti sobre o caso exemplar das políticas socialistas de sucesso em Portugal (2ª parte-conclusão)

Por Júlio Marques Mota julio-marques-mota

Em 3 de junho de 2018

 

Agora há que olhar para os efeitos de tudo isto no mercado de trabalho.

A dinamização da despesa através do turismo, através dos fracos estímulos criados com a redistribuição dos rendimentos, ainda que muito fraca, através da dinamização da construção, sobretudo de habitação, e também o endividamento das famílias, conduz-nos também à dinamização do mercado de trabalho, mas com empregos de muito baixa gama e precários. Tem-se o sentimento de que assim que as estatísticas nos dizem que o desemprego é de 7,9% no primeiro trimestre de 2018, e de menos 2,2% em relação ao trimestre homólogo de 2017, se pensa imediatamente no aumento de emprego no setor de serviços, ligados ao turismo ou então à reabilitação de imóveis para o turismo tipo airbnb. Sublinho que, com as taxas de juro próximas de zero, se tem com a reabilitação de imóveis outra fonte de emprego, mas de nível baixo, isto é, de baixos salários. Em vez de guardarem o dinheiro a uma taxa vizinha de zero, os seus detentores preferem levantar o dinheiro e aplica-lo no imobiliário, cuja taxa de rendimento será claramente superior. A razão de ser de uma certa renovação do parque de casas para alugar passa pelo acabo de escrever. Compra-se um imóvel, reabilita-se, reformula-se o espaço, moderniza-se, transformam-se casas antigas T5 em vários espaços modernos de tipologia T0, T1 ou T2, prontos para alugar a pessoas que estão de passagem, a estudantes, a turistas (via airbnb e outras plataformas semelhantes).

Alguns dados dão-nos uma perceção deste mercado.

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Vimos que a taxa de empréstimos às famílias subiu em flecha. Observemos a evolução de um mercado dependente dos empréstimos às famílias, o mercado automóvel:

As vendas de automóveis em Portugal aumentaram em 2016, mais do dobro que a média da União Europeia. O número de viaturas matriculadas no nosso país aumentou 16,1%, até 207.330 viaturas, entre janeiro e dezembro, enquanto que a União Europeia apresentou um crescimento global de 6,8%.

Em dezembro de 2017, foram matriculados 22.206 veículos a motor, o que corresponde a uma diminuição de 0,1% em termos homólogos, a primeira registada no decurso dos últimos nove meses.

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Em 2018, o mercado automóvel progrediu 11,3% em abril, por cima do valor acumulado nos quatro primeiros meses.

Em abril de 2018, foram matriculados 24.835 veículos a motor pelos representantes legais de marca em Portugal, ou seja, 11,3% mais que no mesmo mês do ano precedente.

No decurso dos quatro primeiros meses de 2018, foram postos em circulação 97.973 novos veículos, o que representa um crescimento de 6,4% em termos homólogos.

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Para terminar, algumas conclusões gerais:

Do meu ponto de vista, o que foi feito pelo governo: melhorou a redistribuição dos rendimentos; reduziu os impostos sobre o rendimento; aumentou o salário mínimo, que era de 505 euros/mês em 2015, de 530 em 2016, de 557 em 2017, de 580 em 2018 (portanto uma melhoria da distribuição primária); melhorou a situação económica e social das pessoas que trabalham na função pública (os precários que nela trabalham serão admitidos nos quadros); aumentou as subvenções sociais aos que se encontram na escala de baixo dos rendimentos; modificou a estrutura fiscal para reduzir a carga fiscal sobre as famílias de baixos ou médios rendimentos; aumentou as pensões de reforma dos mais desfavorecidos, entre 6 a 10 euros por mês para as pensões muito baixas. Isso no orçamento de 2017. No orçamento de 2018 mantém-se a mesma fórmula, com a diferença de que todas as pensões abaixo de 632 euros serão aumentadas a partir do mês de agosto em 10 euros por mês.

Se a todas estas medidas acrescentarmos os efeitos do turismo, tudo isso dinamizou a economia -do lado da procura – e deu lugar a grande parte do crescimento que constatamos e que vos deslumbra.

Mais o modelo esgota-se muito rapidamente e tendo em conta as restrições impostas por força dos tratados a nível da UEM, começa-se a ter consciência que a democracia permanece domesticada, um pouco como com a Troika, ainda que sem a agressividade desse período.

Para se compreender melhor a gravidade da situação: no governo da Troika (Passos Coelho/Portas) receava-se cada reunião do Conselho de Ministros porque tudo o que daí vinha seria de grande sofrimento para a maior parte da população e, ao invés, no governo apoiado sobre a Geringonça esperava-se com serenidade o que viria do governo, pois tudo o que viria seria, em princípio, bom para o povo. O índice de confiança aumentou fortemente e constituía um capital político muito importante. Mas agora, e por falta de sustentabilidade, começa-se a não esperar do governo nada que nos possa transmitir uma ideia de melhoria do futuro do país.

Pior ainda, corre-se o risco de que a Geringonça, um clarão politicamente genial, possa perder o muito grande capital político adquirido desde a sua construção e desde as primeiras iniciativas tomadas pelo governo. O perigo adicional de tudo isto é o sentimento de vazio político e depois a disponibilidade do povo, dececionado, em relação ao populismo, que é aqui, habitualmente, de direita.

Atualmente temos o nosso sistema de saúde completamente degradado, em vias de ruptura por todo o lado. E o mais curioso, e mais dramático também, é que esta situação de se deve, na maior parte dos casos, menos à falta de recursos materiais em capital fixo, mas sobretudo à falta de pessoal. Uma grande parte emigrou para outros países onde a falta de pessoal qualificado era o produto direto da falta de investimento na educação, como em Inglaterra, uma outra parte deslocou-se para o setor privado de saúde que está em plena expansão, e uma terceira parte passou à reforma, e não foi substituída, por razões ligadas às restrições orçamentais ! Um setor avariado, e eis o que nos dizem os tecnocratas de Bruxelas :

«Ensure that the nominal growth rate of net primary government expenditure does not exceed 0.7 % in 2019, corresponding to an annual structural adjustment of 0.6 % of GDP. Use windfall gains to accelerate the reduction of the general government debt ratio. Strengthen expenditure control, cost effectiveness and adequate budgeting, in particular in the health sector with a focus on the reduction of arrears in hospitals. Improve the financial sustainability of state-owned enterprises, in particular by increasing their overall net income and by reducing debt.” !!! Não são necessários comentários!

Se o nosso sistema de saúde está assim, o nosso sistema de educação não está em melhor situação. Está igualmente num estado abominável, sobretudo ao nível do ensino superior.

Se se sintetiza o que se passa no mercado de trabalho, podemos dizer que em Portugal se mantém um mercado de trabalho de características tipicamente neoliberais e deve-se acrescentar que a legislação do trabalho se mantém, quase totalmente, como a legislação do período da Troika, etc., etc. Em relação ao mercado de trabalho fica-se com a ideia que o atual governo faz o mesmo que Passos Coelho no período post-Troika e cuja palavra de ordem, antes da sua queda, era: «não mexer nas reformas obtidas com a política da Troika no mercado de trabalho». Sendo dado que nada de muito significativo foi modificado com o atual governo e que as instituições encarregadas da proteção dos trabalhadores não funcionam, e digo-o por conhecimento e experiência direta, é possível compreender o que acabo de dizer: que em Portugal se mantém um mercado de trabalho com características tipicamente neoliberais, sem as proteções fundamentais de outrora para os trabalhadores, como se os trabalhadores devessem trabalhar sem terem direitos. O direito do Trabalho é aqui, sobretudo desde a Troika, qualquer coisa que não é digna desse nome, uma verdadeira fantasia. Enquanto direito do trabalho é qualquer coisa de terrível. Mas deve ser sublinhado que a maré neoliberal sobre as questões do mercado de trabalho vem de mais longe e atingiu um ponto alto com o ministro Vieira da Silva, em 2009 com o governo socialista de Sócrates. Curiosamente, o ministro de 2009 com Sócrates é o mesmo de António Costa, é o ministro Vieira da Silva. E mesmo agora, como acabamos de saber após o acordo obtido entre o patronato e a confederação «amarela» dos trabalhadores, um acordo recusado pela principal confederação de trabalhadores de Portugal, a CGTP, este mesmo ministro não mostra a mínima disposição para alterar o que quer que seja de fundamental na arquitetura do quadro legislativo do mercado de trabalho estabelecido pela Troïka.

De modo similar ao que se passa no setor da saúde ou da educação, nos transportes públicos regista-se um quadro de degradação equivalente. Trata-se aqui de um setor muito, muito subcapitalizado e que à medida que o tempo passa se torna ainda mais degradado. Isso está bem claro na degradação dos caminhos-de-ferro onde existe uma inacreditável falta de material rolante. Não há dinheiro para a compra de material rolante, não há dinheiro para alugar esse material em Espanha. Estamos numa situação em que a redução do défice (o presente) foi também obtida à custa da formação de capital fixo (o futuro), e isto em nome das gerações futuras!

E evitamos falar dos enormes fogos que atingiram o país no ano passado, não falemos da forte redução dos meios de alerta contra os fogos, por motivos orçamentais, e do pessoal necessário para a prevenção, não falemos do verdadeiro terrorismo económico que atingiu o país, com os fogos que reduziram de forma quase cirúrgica, quase a cinzas, a maior parte do importante setor de exportação de produtos de madeira, não falemos da lentidão da justiça e da polícia para detetar e julgar os criminosos que puseram fogo ao Pinhal de Leiria, uma enorme extensão de pinheiros na costa marítima do país, não falemos da falta de proteção dos proprietários de florestas nas zonas ardidas que ficam à mercê dos comerciantes de madeira e das suas manipulações dos preços de compra da madeira ardida, não falemos também das dificuldades orçamentais para adquirir material de proteção para prevenção para os próximos dois verões, e continuamos obrigados a recorrer ao setor privado para alugar helicópteros para combate ao fogo e, quem sabe, talvez aos preços que mais convêm aos agentes privados, uma vez que a este respeito podemos ter dificuldade em acreditar na concorrência livre e não falseada! Eis como a Europa encara um problema tão grave como é o caso dos fogos. Resolve-o pela via da manutenção das políticas de austeridade, quer dizer, ignorando o próprio problema!

Sobre esta questão da formação bruta de capital fixo das Administrações Públicas, vejamos o que nos diz um documento oficial, publicado em maio de 2018:

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“As despesas de formação bruta de capital fixo (FBCF) aumentaram em 2017, após uma diminuição significativa no ano precedente. Estas despesas apresentam uma tendência à baixa desde 2011, apenas interrompida por um aumento de 599 M € em 2015 e de 682 M € em 2017 (após uma redução 1.312 M € no ano precedente). Mais de dois terços do aumento ocorrido em 2017 produziram-se na administração regional e local (parte esquerda do gráfico 15), principalmente em construção e edifícios (exceto habitação). A FBCF registada em 2017 (3.415 M €) equivaleu a 1,8% do PIB, mais 0,3pp em relação ao ano precedente”.

É inacreditável que a UEM se congratule com estes resultados. Enfim, somos um Estado cativo da austeridade imposta com a Troika, imposta depois pela força dos Tratados, somos uma economia fortemente fragilizada pela crise e pela política imposta por Bruxelas, Frankfurt e Berlim. Uma economia que pode entrar em queda livre ao mínimo acidente económico ou financeiro, como a eventual subida das taxas de juro, no seguimento da política do FED. A propósito de tudo isto em Portugal, recordo um dos textos recentes de Münchau sobre a Europa que questiona se o crescimento europeu não será um acidente de percurso e a depressão o seu estado «natural inscrito no longo prazo”.

Sou levado a crer que a nossa situação não é nem suportável nem mesmo pode ser considerada ou admitida como durável, se a Europa não estiver disponível para ceder um pouco na sua política cega, na sua opção de austeridade pura e dura. Tenho pois o sentimento que nuvens bem negras se aproximam do nosso futuro bem como sobre o futuro da Europa.

Em relação às reformas ou sua ausência, a dita reversão da política da Troika, o meu amigo António Marques escreveu também uma resposta à sua questão, tomando como tema as reformas que não se veem.

E deve aqui acrescentar-se que a direita do PS está muito, mas muito atenta, e sobre isso se centra o texto de Francisco Tavares ao criticar o ideólogo dito de centro, Augusto Santos Silva, atual Ministro dos Negócios Estrangeiros e número 2 do PS.

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