Da crise atual à próxima crise, sinais de alarme – Excedentes da conta corrente da balança de pagamentos, empregos e estatísticas. Por Heiner Flassbeck

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Seleção e tradução de Francisco Tavares

Excedentes da conta corrente da balança de pagamentos, empregos e estatísticas

Por Heiner Flassbeck Heiner-Flassbeck

Publicado por flassbeck_logo em 27 de junho de 2018

Para entender o atual conflito comercial entre a Europa e os EUA, é importante reavaliar a situação política do comércio exterior alemão. O que está a acontecer agora não é novidade. Lembro-me vivamente de Larry Summers, então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, que me dizia numa reunião do G7 há cerca de vinte anos que, desde o início dos anos 1980, a administração americana havia perdido a esperança de ter discussões sérias com um governo alemão sobre questões internacionais tais como equilibrar excedentes comerciais ou estimular a economia global. A situação não mudou desde então, como o demonstraram as inúmeras tentativas da administração Obama no quadro do G20 após a grande crise financeira.

A Alemanha, juntamente com os seus “principais meios de comunicação” e a maioria dos obedientes “especialistas”, tem uma longa tradição de defender a sua posição com todo o tipo de argumentos possíveis e impossíveis, independentemente do presidente dos EUA, Donald Trump. Por isso, tentar retratar o Sr. Trump como um completo idiota e ridicularizar a posição mantida por todos os presidentes americanos durante muitos anos é tolo e pode ter sérias consequências

Eu não sei o que essas pessoas realmente querem defender. Se eles querem justificar a posição de política económica defendida pelo governo alemão à escala global – e é disso que se trata – todos os países (ou todos os países europeus, o que equivale à mesma coisa) teriam que melhorar sua competitividade. a fim de se libertarem de uma fase de fraqueza económica. Isso é um disparate intelectual, indefensável – a menos que você seja um ideólogo pago e tenha que fazê-lo.

Intimamente relacionado com isto está o facto indiscutível de que simplesmente não há ideia de como criar emprego adicional na Alemanha. Não apenas durante vinte anos, mas durante quase quarenta anos, não houve nenhuma ideia para superar as crises na Alemanha. Com a “mudança intelectual e moral” do chanceler Helmut Kohl em 1982, a política económica alemã estava comprometida com a microeconomia, enquanto todo o pensamento macroeconómico se detinha porque era considerado de esquerda. No ambiente atual, é simplesmente impossível colocar a economia de volta a uma trajetória de crescimento. Ficamos então dependentes – como estavámos sob Kohl – de eventos fortuitos e fatores históricos, fazendo-se coisas contrárias aos próprios preconceitos de cada um, como de outra forma jamais teria sido feito.

Mercantilismo real sob o euro

O mercantilismo real só poderia emergir de tudo isto quando, com a transição para a união monetária europeia, deixasse de existir a possibilidade de uma apreciação da moeda que antes protegia os outros países das piores consequências da mania de exportação da Alemanha. Isso foi agravado em 1998 pela completa ignorância do novo governo social-democrata-verde que, no seu desespero para melhorar a economia alemã, contou com a contenção maciça dos salários e enfraqueceu decisivamente os sindicatos. Esta política também foi bem sucedida apenas por causa das exportações. Um componente económico doméstico positivo nunca se materializou. Pelo contrário, a economia doméstica caiu numa longa hibernação que durou quase dez anos.

As verdadeiras vítimas do mercantilismo alemão não são os EUA, mas as nações presas à Alemanha na zona do euro. Eles sofreram muito com a política alemã de enfraquecimento económico dos países vizinhos na Europa, mas também de todos os terceiros mercados do mundo, como pode ser facilmente comprovado. Se o senhor Trump fosse apenas um pouco mais esperto e um pouco menos vaidoso, ele usaria o dólar americano como arma nesta luta entre nações, porque uma desvalorização significativa do dólar resolveria multilateralmente o problema que ele está a enfrentar com as suas tarifas bilateralmente e em mini passos. Quem poderia “provar” que um dólar significativamente mais fraco é injustificado?

Trata-se da Alemanha, não da Europa

A Alemanha está duplamente desvalorizada, e isso parece difícil para a administração americana enfrentar. Primeiro, a Alemanha está subvalorizada em termos reais na zona do euro por causa do seu dumping salarial e, segundo, está subvalorizada internacionalmente porque o euro permaneceu muito fraco ao longo dos anos. Afinal, o euro reflete ambos, uma Europa global fraca, enfraquecida pela Alemanha, e pela força da Alemanha. Quando Trump fala sobre a Europa e o comércio injusto, ele refere-se à Alemanha. Mas ele só pode reagir à Europa porque o comércio alemão faz parte da zona de comércio da UE e a Alemanha nem sequer tem o seu próprio representante comercial. Mesmo que Trump desvalorizasse o dólar, isso afetaria negativamente todos os europeus, o que é obviamente injusto.

Então, porque Trump está a acertar no alforje e não no burro – para usar uma expressão alemã – ele tem que confiar que os outros europeus irão atrás da Alemanha se sofrerem tarifas mais altas (ou um dólar fraco) sem culpa própria. Até agora, no entanto, isso não aconteceu porque os outros europeus não querem desafiar abertamente a Alemanha, preferindo queixarem-se de Trump.

Qual é o benefício de um excedente no comércio externo?

Conforme escrevi muitas vezes, os excedentes no comércio exterior trazem um ganho líquido em empregos e rendimento para o país excedentário. Isso é indiscutível. Qualquer pessoa que venda mais bens do que ele mesmo compra, como qualquer outra empresa nessa situação, obteve um lucro que melhora imediatamente sua situação económica. Qualquer um que venda menos do que ele mesmo compra tem de fazer um empréstimo para cobrir esse défice.

Este estado de coisas não é, em geral, ameaçador para o parceiro deficitário. Existem, é claro, situações económicas em que a pessoa que toma um empréstimo e investe fica melhor no final. Mas as coisas são diferentes se, por detrás dos empréstimos que ele toma, há uma deterioração permanente na sua competitividade contra os seus principais concorrentes. Para um país, também, não é um défice em conta corrente como tal que é um problema, mas défices em conta corrente que surgiram de uma apreciação real, ou seja, de uma deterioração da competitividade.

O surgimento do excedente na conta corrente de um país (ou o seu aumento) é registado nas contas nacionais como um aumento no PIB, ou seja, a receita económica total: mais bens e serviços foram fornecidos por este país do que o recebido de outros países. O país absteve-se de consumir a sua própria produção (o que também teria aumentado o PIB), mas criou empregos domésticos adicionais por meio do seu “sucesso de exportação”. O oposto está a acontecer no país deficitário, onde os empregos são perdidos em termos gerais. Não se pode negar isso se basear o seu argumento na lógica. Excedentes e défices são um jogo global de soma zero. A propósito, isso não significa que o comércio internacional como tal seja um jogo de soma zero, como é repetidamente reivindicado.

O que acontece no caso de um excedente em conta corrente também pode ser interpretado em termos dos nossos saldos macro de empréstimos concedidos/ empréstimos obtidos: o país excedentário retira procura do país deficitário, o que funciona como uma poupança adicional nesse setor (nesse caso, as poupanças do setor externo). A fim de evitar um retrocesso económico geral e o aumento do desemprego no país deficitário, isto deve ser compensado por outros setores (se necessário pelo governo do país deficitário) por uma procura pública maior financiada pelo crédito.

No geral, é claro que um excedente no comércio exterior resultante da melhoria da competitividade oferece uma vantagem que os países deficitários têm de pagar. Como esse é o caso, sempre houve, com razão, a ideia na história da teoria do livre comércio de que os países não devem adquirir permanentemente tais vantagens absolutas, causadas por uma desvalorização ou uma desvalorização real. O instrumento mais importante para compensar tais benefícios é a taxa de câmbio da própria moeda, que perde valor no país excedentário, em que, para os países importadores, os produtos do país excedentário se tornam mais caros, diminuindo a procura. Com a sua política de comércio exterior insensata, a Alemanha está a pôr em causa este consenso, válido desde há séculos.

O que significam fluxos de capital e rendimentos primários elevados?

Na Alemanha inventam-se os mais abstrusos argumentos para repelir a crítica vinda do estrangeiro, e demonstrar que os outros estão errados. Isto é mais do que incrível, visto que as pessoas na Alemanha estão extremamente orgulhosas da sua eficiência, e veem isso confirmado pelos excedentes. Será que esta eficiência não existe, se o Instituto IFO [instituto de investigação económica na universidade de Munique] insiste que estes excedentes devem ser vistos em perspetiva? Será que os alemães talvez não gozem de vantagens no comércio internacional? Porque razão a Alemanha apertou o cinto durante anos e não aumentou adequadamente os salários? Foi toda esta política, na realidade, completamente insensate porque a Alemanha não teve vantagens nenhumas? Porque razão aqueles países da zona euro em particular, que aumentaram os salários, ficaram em sarilhos?

Não existem respostas adequadas a todas estas questões quando a Alemanha está na verdade fraca. É o caso do Institute for the World Economy em Kiel, que afirma seriamente que a Alemanha promove o crescimento do estrangeiro com as suas exportações de capital, que são a contrapartida do excedente de conta corrente que mostram as estatísticas. Esta é a tese aplicada aos outros países, segundo a qual poupanças mais elevadas impulsionam o crescimento porque implicam automaticamente investimentos mais elevados. Todavia, como temos afirmado muitas vezes, isto é simplesmente errado, porque se deriva de uma identidade (S = I) uma causalidade que não existe. Ainda não foi inventado um processo que transforme automaticamente poupanças mais elevadas em investimentos mais elevados.

Recentemente, surgiu a afirmação de que a Europa não tem excedente comercial com os EUA, razão porque Trump não tem motivos para atacar a Europa com tarifas alfandegárias. Como disse acima: Trump não visa a Europa, mas sim a Alemanha; e aqui o excedente de conta corrente é incontestável. No entanto, o Instituto IFO (com base nas estatísticas americanas!) defende que o excedente de conta corrente da Europa é muito menor (ou é mesmo um défice) devido aos elevados rendimentos primários (recebidos pelas empresas multinacionais dos EUA, ver abaixo), o que relativiza o elevado défice americano no comércio de bens. Nos serviços, também, os EUA têm um excedente em relação à Europa, embora este seja quantitativamente menos significativo do que os rendimentos primários. Nas estatísticas europeias (vd. Eurostat) este efeito não é de magnitude comparável.

Os rendimentos primários são os rendimentos de empresas americanas que transferem lucros de volta para os EUA; além disso, existem rendimentos secundários, constituídos principalmente por transferências de dinheiro por trabalhadores estrangeiros para o seu país de origem. Estes dois tipos de transferência de crédito reduzem o excedente de conta corrente da Europa, porque as estatísticas assumem corretamente que tais pagamentos não são compensados por financiamento contrário sob a forma de empréstimos, que é a regra para o excedente de bens.

Poder concluir-se, por conseguinte, que não existem efeitos negativos no comércio entre estas regiões é mais do que questionável. A queixa americana sobre uma troca não equitativa provavelmente justifica-se, se, por exemplo, os efeitos dos rendimentos primários e secundários existem há muito tempo (para os quais provavelmente não existem estatísticas americanas), mas o défice dos EUA no comércio de bens cresceu somente nos últimos 15 anos. Isto porque a Alemanha goza de vantagem absoluta sob o guarda-chuva do euro nos EUA e em mercados terceiros. E isso independentemente de se o saldo geral de um ano (o IFO afirma que se baseia apenas em 2017) mostra um défice ou um excedente americano em relação ao conjunto da Europa.

A taxa de câmbio real é crucial

A ação americana seria também justificada mesmo se não se baseasse nos saldos da conta corrente mas tão só nas taxas de câmbio reais, segundo as quais o euro está em constante depreciação. Se os americanos tivessem excedentes na conta corrente e, simultaneamente, tivessem de aceitar uma apreciação real permanete do dólar, que reduziria a sua posição exportadora na indústria no longo prazo, eles teriam de poder agir contra isso num regime racional de comércio internacional.

Friederike Spiecker e eu próprio assinalámos há algum tempo que, do lado alemão, as estatísticas estão carregadas de elevada incerteza. A imprensa alemã, naturalmente, não aprofunda esta questão. Entretanto, o excedente real da conta corrente para 2017, divulgado pelo Bundesbank alemão cresceu significativamente mais uma vez, superando o crescimento de 2016 em quase 100 mil milhões de euros e não apenas os 80 mil milhões que tínhamos previsto. Dado que as estatísticas sobre os valores médios de importações ainda não foram corrigidas, é justo dizer-se, em referência a estas estatísticas, que a afirmação de que a Alemanha estimulou a sua economia através da procura interna em 2017 não tem fundamento. Todos os impulsos positivos para o PIB real terão de ter vindo do comércio externo. A administração americana deve ter conhecimento destas estatísticas.

O que se segue?

Todas as tentativas para minimizar as severas implicações do mercantilismo alemão, seja com a ajuda das estatísticas ou com teorias abstrusas, não altera o facto de que a Alemanha tem abusado do comércio externo e prejudicado os seus parceiros comerciais durante muitos anos. Há muito que se previa que algum presidente americano agiria contra isso e a surpresa mostrada pelos políticos alemães é mera encenação. As acusações americanas têm vindo a ser feitas desde há décadas, mas foram sistematicamente ignoradas. Resulta que os políticos alemães agem muito “altivamente” em relação a Washington no que respeita aos supostos interesses nacionais da economia alemã.

O verdadeiro problema do mercantilismo alemão são as suas consequências para a Europa e especialmente para a união monetária. Com a pressão sobre os salários, os políticos alemães minaram as condições de funcionamento da união monetária europeia desde o início e precipitaram a crise que dura já desde há dez anos. Ter negado isto desde o início e, pior ainda, ter punido os seus parceiros da zona euro com conceitos totalmente inadequados e desde uma posição de arrogância, foi a inegável falha dos políticos alemães desde o começo da experiência única chamada União Económica e Monetária Europeia. Os resultantes movimentos nacionais e nacionalistas na Alemanha e em muitas nações da UE podem ser diretamente atribuídos a esta incapacidade alemã para reconhecer e corrigir a sua política errada.

Este artigo foi publicado em alemão em Makroskop (makroskop.eu) e em inglês em Brave New Europe (braveneweurope.com).

Texto original em http://www.flassbeck-economics.com/current-account-surpluses-jobs-and-statistics/

 

 

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