Sobre Espanha – O ditador de Espanha está morto, mas a sua popularidade ainda sobrevive. Por Omar G. Encarnación 

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Seleção e tradução de Francisco Tavares 

Obrigado a Omar Encarnación e a Foreign Policy

O ditador de Espanha está morto, mas a sua popularidade ainda sobrevive

 

  Omar Encarnacion Por Omar G. Encarnación

Publicado por Foreign Policy em 27 de julho de 2018

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Pessoas fazem a saudação fascista na basílica do Valle de los Caídos em San Lorenzo del Escorial perto de Madrid em 15 de julho de 2018, em protesto contra a exumação dos restos de Franco do Valle de los Caídos. (JAVIER SORIANO / AFP)

 

 

Francisco Franco governou Espanha com punho de ferro durante décadas — e criou mitos sobre a sua governação que só agora se começam a desfazer.

No mês passado, dias depois de assumir o cargo, o primeiro ministro espanhol Pedro Sánchez anunciou a intenção do governo de exumar os restos mortais de Francisco Franco, o homem forte que governou a Espanha desde o final da Guerra Civil Espanhola em 1939 até à sua morte por causas naturais em 1975. Previsto para ocorrer antes do final do verão, o plano de exumação exige a transferência dos restos mortais de Franco para um local ainda a ser determinado. Igualmente controversa é a proposta de Sánchez de transformar o atual local de descanso dos restos mortais, o Vale dos Caídos, num memorial das vítimas da Guerra Civil e da ditadura de Franco.

O Vale, um dos maiores e mais imponentes monumentos públicos da Europa (todo o complexo, muitas vezes ridicularizado pela sua teatralidade fascista, inclui uma basílica, uma abadia beneditina e uma cruz que se eleva a cerca de 150 metros de altura, sendo visível a uma distância de quase 50 quilómetros). foi inaugurado pelo próprio Franco em 1959 para assinalar o 20 º aniversário da sua vitória na Guerra Civil. Praticamente intocado desde que o corpo de Franco foi enterrado ali, o monumento é um verdadeiro santuário para o franquismo e uma peregrinação obrigatória para os defensores de Franco. Nas últimas semanas, os mais devotos desses defensores tomaram as ruas de Madrid cantando “El Valle no se toca” (No Vale não se toca).

Para os observadores externos, as notícias da exumação de Franco e a controvérsia em torno dela levantam questões óbvias: por que motivo Franco foi poupado à infâmia popular em casa, concedida aos colegas líderes fascistas Adolf Hitler e Benito Mussolini? E por que razão o status quo sobre como Franco foi lembrado desde que a sua morte está agora a ser abalado? Responder a essas questões exige investigar as peculiaridades de como a Espanha se tornou uma democracia no final dos anos 1970 e as escolhas incomuns sobre a história sombria e dolorosa do país feitas pelos políticos e pelo público como parte da transição democrática.

Muito sobre o destino de Franco, tanto material como figurativamente, no período após sua morte é devido ao facto de que a transição para a democracia em Espanha deixou muito pouco espaço para a justiça e a responsabilidade em relação ao antigo regime. Ao contrário de sua ditadura fraternal em Portugal – o regime de António de Oliveira Salazar – que foi erradicada por uma insurreição popular, o regime de Franco foi reinventado de dentro para fora como uma democracia por um processo de reforma política encabeçado por um jovem rei Juan Carlos. Embora o rei tivesse prometido a Franco continuar com o “franquismo sem Franco”, após a morte do ditador – e respondendo ao clamor popular pela democracia – ele voltou com a palavra atrás e colocou a Espanha no caminho da democracia, apelando a eleições livres em 1977.

A reinvenção democrática do regime de Franco significou que o lado perdedor da Guerra Civil – os republicanos, uma coligação de esquerda de liberais, comunistas, socialistas e anarquistas que resistiram ao assalto de Franco à Segunda República, eleita popularmente – nunca teve a possibilidade fazer Franco pagar pelos seus pecados políticos. Naquilo que os historiadores referiram como o “Holocausto espanhol”, cerca de 200.000 dissidentes políticos foram executados pelas milícias de Franco; e mais 400.000 foram presos em prisões e campos de concentração estabelecidos por Franco após o fim da Guerra Civil, onde muitos morreram de desnutrição e fome. Um número desconhecido de prisioneiros foi forçado à escravidão virtual para ajudar no esforço de reconstrução do pós-guerra, incluindo a construção do El Valle. Cerca de 500.000 pessoas fugiram de Espanha como refugiados políticos.

Como parte das negociações políticas que permitiram uma transição rápida e ordeira para a democracia, políticos de todo o espectro ideológico concordaram com um “pacto de esquecimento” que foi institucionalizado com uma ampla lei de amnistia, promulgada pouco antes das eleições de 1977. Isto foi “amnistia para todos”, como disse um político, uma vez que abrangia qualquer pessoa que tivesse cometido uma ofensa política anteriormente a 1977. Apesar de arcar com o ónus da repressão de Franco, a esquerda estava desejosa de apoiar este pacto. Isso ajudou a esconder os pecados políticos da esquerda, especialmente o chamado Terror Vermelho, a onda de assassinatos que deixou de 20.000 a 70.000 partidários franquistas mortos, incluindo cerca de 2.000 clérigos, muitos deles depois beatificados pelo papa como mártires da Guerra Civil [1].

Uma importante razão pela qual os políticos foram capazes de deixar o passado ser passado foi a cumplicidade do público. No cerne dessa cumplicidade está a ambivalência que muitos espanhóis sentem em relação ao regime de Franco. Dados de inquérito reunidos em 2008 pelo Centro de Pesquisas Sociológicas de Madrid mostraram que a maioria do público reconheceu que Franco “fez coisas boas e más”. Esses dados também mostraram a oposição ao julgamento de ex-funcionários de Franco. e o pouco entusiasmo em relação a uma eventual comissão da verdade para atribuir responsabilidades pela Guerra Civil. E nenhuma organização nacional exigindo responsabilização contra o antigo regime emergiu até que o movimento para a recuperação da memória histórica começou a ganhar força no início dos anos 2000.

A cumplicidade da sociedade espanhola em silenciar o passado não se desenvolveu no vácuo. No seguimento da morte de Franco, os temores de outro conflito civil e outra ditadura eram generalizados. Menos evidente é o intenso processo de socialização política que o público sofreu durante a ditadura. O regime de Franco encorajou o silêncio sobre a Guerra Civil, que explica porque os espanhóis que viveram a guerra têm pouquíssimas lembranças desse evento ser discutido em casa, nas escolas ou no local de trabalho [2]. Após o fim da Guerra Civil, Franco e os seus aliados também começaram a promover numerosos mitos sobre a guerra e o regime – auxiliados por uma vasta máquina de propaganda, incluindo reportagens da imprensa, filmes e documentários, e manuais escolares – que no período pós-guerra fez maravilhas para desencorajar qualquer revisitação do passado.

Entre os mitos populares da Guerra Civil está o da responsabilidade compartilhada, que coloca os dois lados do conflito igualmente em falta. Isso ignora, convenientemente, o facto de que em 1936, Franco derrubou um governo eleito pelo povo. Outro mito popular é a “loucura coletiva”, que teoriza absurdamente que os espanhóis perderam a cabeça e começaram a matar-se uns aos outros sem nenhuma razão lógica. Ainda outra narrativa popular é culpar as influências ideológicas estrangeiras, especialmente o anarquismo. Nessa visão, a Espanha é vista como vítima de forças externas. Nada, no entanto, supera a teoria da salvação, a visão de que a revolta de Franco em 1936 salvou a Espanha do caos e da violência da Segunda República. Esta leitura escandalosamente cínica da história ignora tanto o caos como a violência que Franco infligiu a Espanha, e que qualquer que fosse o grau de paz que Franco pudesse trazer ao país ele foi comprado com a vida de quase 1 milhão de pessoas.

A teoria da salvação foi impulsionada pela estabilidade política que a Espanha desfrutou após 1959 – depois de todos os que se opunham a Franco terem sido mortos ou forçados ao exílio – e por um “milagre” económico que começou a desenvolver-se no início dos anos 1960 e tirou milhões de espanhóis da pobreza abjeta para as fileiras da classe média. Paradoxalmente, esse mesmo sucesso enfraqueceu a teoria da salvação ao obscurecer a memória da Guerra Civil e a miséria dos anos do pós-guerra. Assim, na década de 1960, nasceu a noção da ditadura de Franco como um regime modernizador, com o progresso socioeconómico como a nova lógica do regime para a sua existência. Na era pós-transição, esta última reinvenção do regime permitiu que os defensores de Franco alegassem que a ditadura preparou o caminho para a democracia bem sucedida que a Espanha é hoje.

Foi apenas em 2007, com a promulgação da Lei da Memória Histórica pelo governo socialista de José Luis Rodríguez Zapatero, que os mitos da Guerra Civil promovidos pelo regime de Franco começaram a ser seriamente questionados. A lei declarou o governo de Franco ilegítimo; apelou para a remoção da vista pública dos monumentos públicos em homenagem ao regime de Franco, exceto para aqueles com significado histórico; forneceu compensação financeira àqueles vitimados pelo regime de Franco; restaurou a cidadania espanhola para a comunidade republicana do exílio; e criou um centro para o estudo da Guerra Civil na cidade de Salamanca. Impulsionar a lei foi o criar de uma nova geração de espanhóis curiosos sobre a Guerra Civil e não mais traumatizados pelas memórias do passado, incluindo Zapatero, neto de um capitão militar executado por uma brigada franquista por se recusar a juntar-se à rebelião contra o governo republicano.

 

Texto original em https://foreignpolicy.com/2018/07/27/spains-dictator-is-dead-but-his-popularity-lives-on/

 

[1] N.T. Pelo papa João Paulo II, em outubro de 2007, decisão polémica que esconde a realidade da guerra civil em Espanha de 1936-39.

[2] N.T. A propósito desta questão do silêncio sobre a guerra civil, o excelente trabalho de investigação de Gutmaro Gómez Bravo, “Geografía humana de la represión franquista – Del Golpe a la Guerra de ocupación” (ed. Cátedra), publicado em 2017, é bem elucidativo sobre o sistema de repressão da máquina franquista, sistema esse montado desde o início do golpe que deu origem à guerra em 1936 e que foi sendo instalado à medida que os golpistas foram ocupando o terreno. Uma das vertentes desse sistema assentou entre outros fatores na delação, frequentemente associada à inveja ou ao desejo de posse de bens alheios, e que contou com o apoio, forçado ou não, de parte da população, sistema de repressão esse que foi depois institucionalizado após a guerra. Diz o autor: “… a vontade de voltar a começar chocou com um quadro jurídico de exceção, um modelo de ordem pública e uma polícia militar de ocupação ….. As redes de informação de agentes e colaboradores civis mantiveram-se particularmente ativas e operativas a nível local e provincial no pós-guerra … O resultado foi um tráfico de documentos que pediam, que suplicavam, que compravam avales, autorizações, visados, cartas de recomendação, qualquer papel que permitisse sair ou contornar a depuração laboral, a liberdade condicional, o desterro, as multas, as sanções e o verdadeiro espólio a que foram submetidas milhares de pessoas que não tiveram qualquer responsabilidade política ou militar. A criminalização foi o processo mais intenso e continuado a que tiveram de fazer frente durante toda a sua vida. O triunfo de uma personalidade, de uma mentalidade autoritária favorável a um castigo que restaurasse a ordem e a estrutura social foi decisivo…Nunca será possível calibrar o impacto da repressão sem entender como pessoas absolutamente reconhecidas e integradas social e culturalmente nos parâmetros da sua época se sentiram legitimadas para exigir multas a familiares de pessoas que tinham sido assassinadas anos atrás, exibir publicamente vizinhos quando regressavam às suas casas e aldeias, educar os seus filhos e, por último, desfrutar de vidas alheias. Tratar todos eles como delinquentes, como criminosos, permitiu sistematizar e legalizar estas ações e inclusive revesti-las como «obra social» até aos dias de hoje. Um processo de normalização consumado nas duas décadas seguintes…” (pág 299/300).

2 Comments

  1. Será bom não esquecer que Franco sabia usar a pistola para, pelas suas mãos, matar gente. Foi escolhido após Sanjurjo pelo medo que o seu comportamento de assassino foi sentido pelos outros generais.CLV

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