A GALIZA COMO TAREFA – conversas – Ernesto V. Souza

É sempre interessante a conversa com livreiros (livreiras de mais em mais), daqueles que conhecem, como artesãos com anos de prática constante, o seu ofício. Não sou eu mui dado à conversa, não vaiam pensar. Sou mais um desses clientes que entra discreto, saúda e mergulha a remexer moreias, montes e prateleiras, num sebo desses pequenos e labirínticos, sem ordem aparente, nem referencias; ou que se dirige, após cumprimentar, a seções específicas numa dessas livrarias de desenho, cristal e madeira e até pode que bons cadeirões e café. Acho livros, pago os preços marcados, despido-me.

As minhas preferências – disto já temos falado alguma vez – procuram ser livros das quatro ou cinco primeiras décadas do século XX ou de antes. Ou livros bem impressos, cosidos e sólidos. Romance e política, lendas, contos, história, correspondências, biografia, ensaio, alguma poesia e pouco teatro. Livros galegos e de galegos, e se aparecerem – escassos na Espanha – portugueses. Livros dos anos experimentais das Repúblicas espanholas, do fascismo e primeiro franquismo. Livros americanos do exílio espanhol, preferivelmente galegos. Livros catalães, ingleses e franceses. Clássicos. Livros perdidos, esquecidos, démodé, livros, enfim, naufragados.

Eu sei, eles sabem, que o jogo é o mercado, eles vendem, eu compro. Não deixa de ser um comércio básico, definido pelas leis da oferta e a demanda, e o conhecimento do produto, do provedor e do cliente. Onde há muito, ou onde não há demanda, vão baratos. Onde há pouco, ou a demanda é muita, sobem. A informação é que determina o valor e o custe. Certo que com internet a cousa vai complicando-se e a memória especializada vai-se perdendo a favor da consulta rápida e da comparação promedio. Mas, don’t panic, afinal o do livro é desde antigo e na origem da imprensa, por catálogo e correio, cópia, pecia, impressos novos, em rama, de segunda ou mais mãos, um dos mercados e contrabando, mais globais que nunca existiram.

Porém, e justo com isto, internet também nos vai conhecendo, por muito que a despiste a variedade onívora, porém e no entanto as redes sociais e os nossos hábitos de consumo não nos termine fazendo um perfil algorítmico, a questão é que, por vezes (a frequência faz o hábito e o hábito costumes, que terminam por ser leis), termino conversando com este tipo de livreiros.

Sempre é fascinante saber como se montam esses negócios e ir tirando dedutivamente e das anedotas – que da palavra direita é impossível – como vão. E mais interessante são as perspectivas dos livreiros, o passado e o futuro do negócio. A mudança dos anos 70, 80, 90 a hoje é espetacular, qualidade, quantidade, preços. Algo sempre se aprende. Porém, a cada conversa, repercute na minha cabeça aquela com um elegante livreiro argentino estabelecido em Montevidéu.

A loja, no centro histórico, meio antiquária, escura, mas ampla, quase preta pela mobília antiga, os vidros atintados e o piso de mármore negro e branco. Uma loja de roupa, prêt-à-porter, reconvertida. Como o dono, um mundano, cético, fardado a inglesa, bom vivant, sem idade, mas passados os 70, elite portenha, descastado, com périplo estudantil europeu, maio francês, algum ano de diplomata ou arredor, refugio em Barcelona e Londres durante as ditaduras no Prata, um algo de São Paulo e Brasília, e recalar final na capital da República Oriental. Os livros e os objetos vieram e vinham de toda a parte. Com ele, por barco, e dos contatos e das incursões às fazendas rurais e vilarejos em decadência do Pampa.

Lembro aquela lição – hoje tão atual na Europa – sobre a queda da classe meia dos países do Prata. E as anedotas daquelas bibliotecas pessoais, familiares, que se foram aos poucos mais de mais em mais, com propriedades, terras, arte, objetos, vendendo. E aqueloutra sobre a cultura de um país e do passado recente, através da observação das livrarias de segunda mão: quantidade, qualidade, variedade, idiomas, partituras, encadernação. Lembro os contos e as evocações ao Grand tour como iniciação, com que vencia as minhas reticências à compra de objetos, de bons livros, de arte: – Pensa que se muito disto está aqui, é porque os americanos fomos antes, à Europa nas pós-guerras, de viagem, e a comprar. Aqui eram anos bons. Lá eram maus. É cíclico.

Acho que foi a primeira pessoa a me predizer que um dia iríamos nos Estados Unidos, comprar do imenso património que iriam vender, quando, como Roma, ou Espanha outrora, deixem de ser o Império. Lembro ainda o sorriso irônico, com aquela segurança, de eu não o verei, ti – eu daquela tinha 28 anos e não muita prata talvez; e não vais deixar os Chineses acapararem tudo.

Durante anos ri, pensando que a conversa, arte como a de furtar, é fundamental ao vendedor, mas, ultimamente, meio começo a tomar a sério.

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Tomada de : “Detroit, uma cidade que está desaparecendo”

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