A GALIZA COMO TAREFA – Ordem 73 – Ernesto V. Souza

Parte já da cultura popular, e nomeadamente para os fãs, a Ordem 66 define um momento climático e de ruptura, de mudança violenta explícita, no universo Star Wars. A Ordem 66, ou Protocolo Clone 66, executada no filme III da prequela (Revenge of the Sith) era uma diretriz oculta, programada no cérebro das tropas clone do Grande Exército da República, que identificava todos os Jedi como traidores e, portanto, sujeitos a execução sumária.

Como é sabido, a ativação da ordem, marca a destruição da Irmandade Jedi, cena central que conforma o giro argumentar, que transformará a decadente República, num Império mais escuro. Ainda que a Ordem 66 dizimou de vez os Jedi, foi apenas o começo da Grande Purga, que se alargou por anos, contra os sobreviventes, agachados nas margens da Galáxia.

galaxia selo

Por circunstâncias, políticas, históricas e sociais, na Galiza, aí mais perto, na nossa Via Láctea, do ano 1950 ao ano 1980 (após o genocídio posterior ao golpe de estado de 1936, reafirmado pelo exílio e pela marginalização das instituições e da cultura galega) o Grupo Galáxia passou a ocupar um espaço central na cultura galega; funcionando, após a desativação política no interior, por uma banda, como centro ideológico, por outra, como espaço central regulador da produção cultural em língua galega.

E, portanto, e nesse papel, através da sua produção editorial, Galáxia, desempenharia um trabalho fundamental na modelização e estandardização da prosa durante todo esse longo e fundamental período.

Questionado pelos grupos no exílio, e a partir dos anos 60, pelas novas gerações que se começavam a formar no marxismo e no anticolonialismo, é, porém, indubitável que Galáxia, chefiada pela figura, sedutora, captadora, orientadora, centralizadora distribuidora e mandarinesca de Ramon Piñeiro, conseguiu ocupar (e especialmente conseguiu vender à imediata posteridade) tanto uma centralidade cultural, quanto uma tradição política, cultural, e linguística.

Tradição, esquemas, palavras de ordem, troppos e tópicos, em boa parte justificativos da sua atuação, ideologia e escolhas estratégicas, mas que foram a base na que se desenvolveram os discursos, e estratégias, em que se interpretaram os cânones literários, históricos e linguísticos que sucederam, apoiados institucionalmente, na construção da cultura galega durante a Transição e já depois como parte integrante e motora na re-estruturação do Estado autonómico.

Aos poucos, Galáxia, grupo, projeto editorial, começa a ser estudada académica e mais criticamente, mas cumpre ainda estudar, em detalhe, as influências contextuais e ambientais do franquismo, e da sua censura, não apenas nos conteúdos e temáticas, quanto também no modelo de língua unificado produzido nas décadas de 50-70. Lembremos que o franquismo não bania diretamente o galego, quanto que procurava uma “normalização”, uma desconflitivização política deste como espaço folclórico dialetal, dentro do contexto colorido e riqueza dos povos de Espanha. Isto tudo implicava continuar apostando, como durante a Restauração, numa modelização dialetal e popularizante, que refletisse no possível o “falar do povo” e que rejeitava abertamente os usos mais cultos e neles um modelo de língua completo (o que equivalia a rejeitar a produção de filosofia, traduções, ensaio técnico, social, económico).

Mas e como se produzia o efeito popularizante? Obviamente por imitação da expressividade familiar, popular, dos modismos da língua viva; por acumulação preferencial de léxico “enxebrista” (também vulgar, dialetal, arcaico, rural); por fugida dos tópicos, circunlóquios, lugares comuns da escrita técnica e científica e por rejeitamento do léxico culto, técnico e especializado. O ritmo e a morfologia tendiam também a imitar os modismos populares da fala.

E como se representava? Continuando a tradição popularizante do século XIX através da ortografia comum castelhana, seguindo a linha pragmática ou possibilista iniciada por Saco e Arce, que – ao não ser roturista quanto colorista e integradora com a ortografia da RAE – rapidamente sucedera, tanto pelas facilidades de ser a conhecida entre os alfabetizados (em castelhano), quanto pelo apoio que lhe deu desde início – logicamente – o espaço institucional espanhol.

grial 42Mas nem sempre foi assim. É para estudar, como o que começou como um fenômeno circunstancial, “uma necessidade”, obrigada pelos contextos políticos concretos da Restauração, da Ditadura e da Transição, terminou sendo transferido no imaginário coletivo como “uma virtude” e representação das “essências populares” e “do sentir do povo”.

E também é para destaque com o que implicava, em planificação ortográfica e estratégia. Porque houve momentos em que as decisões estratégicas tomadas podiam ter sido bem outras.

Neste outono cumprem-se 45 anos da carta famosa de Ramón Piñeiro a Manuel Rodríguez Lapa, e do início de uma série de cartas e respostas, públicas e privadas, encomendadas por Piñeiro a vultos da cultura galega, contrárias as propostas de Rodrigues Lapa e que iniciam e dão argumentos à estratégia anti-lusista.

A carta, não por acaso, abre esse Grial, 42 (outubro-novembro-dezembro, 1973) um ano fundamental em que se começava a tratar da implantação das “línguas regionais” no ensino oficial, proposta no 70 e iniciada no ano a seguir; e fecha o único livro publicado por Ramon Piñeiro: uma seleção de artigos e ensaios que adquirem a condição de doutrinários, de legado. O volumezinho, com uma capa psicodélica, de filme de sci-fi de baixo orçamento, série B, leva por título e condição “Olladas no futuro”.

9788471542250-es

As razões de Rodrigues Lapa que mereceram a reação fulminante de Piñeiro, estavam expostas em “A recuperação literária do galego”, (Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 13, Maio 1973, p. 5-14, artigo que também seria reproduzido, pelo seu interesse para o público galego, no Grial, 41, julho-agosto-setembro 1973) e destacavam contra a idílica percepção promissora de Piñeiro, a possível desaparição do galego, como língua na Galiza, a problemática do galego no ensino, dentro do esquema “tolera, mas não promove” governativo espanhol, e a situação congelada do galego como língua literária, e aconselhavam, seguindo Guerra da Cal e na tradição já exposta por Manuel Murguia, como solução, a opção portuguesa e a integração ortográfica como solução possível para o galego escrito.

A tese proposta por Lapa, não era nova, mas o prestígio académico, intelectual e institucional do emissor e a sua formulação como urgente e necessária, sim. A análise de Lapa, motivada pelos claros indícios (e no testemunho dos daquela novos Xavier Alcalá, Carlos Durão, Teresa Barro) de uma destruição do galego como língua social e a constatação do estancamento estilístico, dos modelos linguísticos da produção literária galega das décadas de 60-70 (que hoje são evidentes) irritou o piñeirismo, pois questionava, e como, não apenas o discurso otimista e percepção do momento “esperançador” da realidade galega presente nas instituições, quanto a estratégia lenta de re-integração futura (mas sempre adiada) e logicamente o modelo, a propaganda e o discurso “político” de Piñeiro: a “normalização” possível do galego, passinho a passinho, sem conflitos e muito enxebre, no fim do Franquismo e na possível Transição.

O possibilismo sem conflito, procurava reconhecimento do Estado espanhol e o acordo (ou quando menos o não enfrentamento) com o importantíssimo, institucional, jornalístico, académico, económico, galeguismo-folclórico-espanholista, que atuava como contínuo nos relacionamentos Espanha-Galiza.  A solução roturista de Lapa, não “era oportuna” dado que reativaria o conflito, tal e como acontecera a fins do XIX, durante os anos 20 e a cada vez que se reativava a questão ortográfica do galego por fora do esquema RAE e na órbita do português.

Olhadas no futuro, disque, o corpus textual e linguístico de Piñeiro resulta-nos hoje tão atual como a capa do livro, e a realidade demonstra-nos mais uma vez que o dom da profecia é muito escasso. Porém o argumentário de Piñeiro continua a ser repetido, dado que foi sacralizado institucional e politicamente – e levado a extremos nos anos 80 e 90 – nas últimas quatro décadas de construção cultural e linguística.

Porém, as razões argumentativas para a escolha isolacionista, baseadas no sucesso do galego como língua social em expansão, quanto a expansão do uso social do galego como língua da Galiza e como língua culta em todos os âmbitos, foram liquidadas pela realidade. O mantra de que o galego continuaria vivo enquanto o povo fiel o conservasse, também não parece mui verdadeiro.

Talvez em 1973, o povo – que não contava, nem podia opinar – não estava preparado para a proposta de Lapa. Escrever o galego em Português só podia ser uma aventura de uma elite acadêmica, intelectual minoritária. Hoje, estamos em 2018, e ainda não, também não. O do reintegracionismo, para os notáveis galegos é como o independentismo catalão para os notáveis de Madrid. Pode chegar, e talvez chegue, mas o fundamental é que hoje não.

Continuam, pois, as palavras de ordem, por enquanto uma, duas gerações inteiras de intelectuais e ativistas, formados, conformados, adjuvantes e conformadores desta estratégia vão-se aposentando. Mas as análises de Lapa continuam vigentes, e a sua olhada resultou mais certeira. Portanto, e talvez, a conclusão mais simples é que durante 45 anos os “guieros”, os  auto-proclamados vozeiros do povo e conhecedores da sua opinião e sensibilidade mais funda, levaram-nos a nenhures.

O pior foi que, sancionadas por Piñeiro e pelos vultos de Galáxia, as medidas profiláticas decretadas contra o lusismo e o reintegracionismo, terminaram afetando não apenas a imagem a respeito do galego, quanto também os contatos com Portugal e o conhecimento da língua portuguesa na Galiza. A nível institucional, académico, político, cultural, e por fora do debate filológico da construção do galego, estabeleceu-se um pernicioso anti-portuguesismo ambiente por quase 50 anos.

A perversão do caso implicou a construção de um espaço autonómico, independente da influência cultural portuguesa, no que o galego era definido no esquema de língua mioritária, dentro do território e em quatro províncias do estado espanhol, a imitação, e com as mesmas problemáticas de atração no enorme buraco negro da língua castelhana e da cultura espanhola, do Catalão e o Euskera. Porém a Galiza era, e é diferente, pois existe, existia com uma singular força gravitacional o espaço lusófono.

Na mesma revista Grial, e já em 1976, J. Martinho Montero Santalha, fechava o artigo “Unificación ortográfica galego-portuguesa”, uma revisão do estado da questão e da polêmica na altura, com estas palavras:

Talvez a alguén lle pareza un camiño demasiado longo para que chegue a ser andado nunca. Un antigo refrán popular reza: “Unha viaxe de trinta leguas comeza sempre por un primeiro paso”. O primeiro paso da nosa viaxe pisa terreno ortográfico. O longo camino iráse andando pouco a pouco; mas ese primeiro paso debe ser dado canto antes. (Grial : revista galega de cultura. Nº. 51 (xaneiro febreiro marzo 1976), pp. 1-13.)

O presente é difuso e o futuro sempre ignoto, mas é evidente que algum dos clones saíram, e de mais em mais fomos saindo, defeituosos. É uma simples olhada no passado, mas cabe perguntar: – e como seria o galego, como seria a cultura popular e de massa na Galiza, hoje, quantos passos levaríamos já andados, sem a ordem 73 e a posterior Grande Purga?

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