A crítica demolidora de Michael Pettis à teoria e à política económica neoliberal – 10. Uma redução no peso dos Estados Unidos no comércio global não vai levar a nenhuma mudança de poder (1ª parte). Por Michael Pettis

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

10. Uma redução no peso dos Estados Unidos no comércio global não vai levar a nenhuma mudança de poder (1ª parte)

michael pettis Por Michael Pettis

Publicado por Carnegie Michael Pettis em 16 de dezembro de 2016

 

Rejeitar a parceria trans-pacífica não deve significar a rejeição por parte de Washington da própria ideia de um sistema de comércio estável e baseado em regras. O mundo estará melhor com um tal regime.

 

A primeira na lista de ações a realizar pela sua Administração a partir do “dia um”, de acordo com o Presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, no seu videoclipe de 21 de novembro de 2016, envolvia uma redução do papel dos Estados Unidos no comércio global: “Eu vou emitir uma notificação de intenção de nos retirarmos da parceria Trans-Pacífico, que é um potencial desastre para o nosso país. Em vez disso, negociaremos acordos de comércio justos e bilaterais que tragam empregos e indústria para as costas americanas.”

Três dias após o vídeo ter sido editado, o Wall Street Journal publicou um artigo que eu escrevi em que expliquei porque é que penso que muitos analistas estavam errados sobre as implicações de um recuo dos Estados Unidos na parceria Trans-Pacífico (TPP). Nas duas semanas seguintes, recebi uma montanha de perguntas sobre o meu artigo e sobre o raciocínio subjacente e isso levou-me a pensar que poderia ser útil se eu desenvolvesse o exposto no artigo citado.

Antes de passar para o centro do problema, penso que os principais pontos podem ser resumidos nas seguintes sete afirmações:

  1. Se os Estados Unidos se retirarem do seu papel central no comércio global e nos fluxos de capital, a maioria dos analistas parece esperar uma grande mudança global de um regime de comércio dominado pelos EUA para um regime de comércio dominado pela China. Contudo, isto é virtualmente impossível que aconteça porque o regime dos EUA é construído em torno de grandes défices comerciais, tornando-o incompatível com um regime centrado na China, para o qual os grandes excedentes comerciais são para os chineses uma necessidade estrutural.
  2. Num mundo de escassez de capital e alta procura de investimentos, a pertença a um regime de comércio construído em torno de grandes excedentes quer da balança comercial quer da balança corrente é recompensada pelo acesso a exportações de capital igualmente grandes. Num mundo de capital em abundância e procura fraca, no entanto, o comércio internacional beneficia os países se cria procura adicional na forma de um aumento nas exportações líquidas.
  3. As cinco décadas depois da Primeira Guerra Mundial, desde aproximadamente o final da década de 1910 até o final da década de 1960, foram dominadas pela devastação causada pelas duas guerras mundiais. Elas deixaram a economia global com uma escassez de poupança e uma grande necessidade de investimento. Os Estados Unidos durante esse período apresentaram grandes excedentes comerciais e défices na balança de capital, pois exportaram as suas poupanças em excesso para financiar as suas exportações líquidas, enquanto o crescimento de seus parceiros comerciais estava limitado pelas suas necessidades de investimento urgentes. Porque eles beneficiaram do acesso às poupanças dos EUA, não é surpreendente que os grandes excedentes comerciais e as exportações de capital dos EUA o tenham tornado o centro indispensável do comércio global.
  4. Depois dos países beligerantes terem sido substancialmente reconstruídos, as cinco décadas seguintes, desde aproximadamente o final da década de 1960 até ao presente, têm sido um período de capital abundante e mesmo até em excesso, impulsionado por altas poupanças e fraca procura. Além disso, a menos que haja uma grande guerra ou um avanço tecnológico que requeira investimento à escala das manias ferroviárias do século XIX, o capital abundante provavelmente caracterizará a maior parte do resto deste século. Durante este período, os Estados Unidos acomodaram-se ao excesso de poupança do resto do mundo através da execução de grandes excedentes da balança de capital (que é importação de capital), o que significa que os Estados Unidos tiveram um défice comercial correspondente. Como o crescimento económico entre os seus parceiros comerciais beneficiou de excedentes comerciais para crescer, não é surpreendente que os grandes défices comerciais americanos deste período tenham permitido que o país continuasse como sendo o centro indispensável do comércio global.
  5. A economia chinesa é estruturalmente incompatível com o que é necessário para substituir o regime comercial centrado nos EUA das últimas cinco décadas. Os membros do regime comercial que tem como centro os EUA foram recompensados com o maior crescimento associado aos excedentes comerciais, enquanto os membros de um regime centrado na China serão penalizados com um menor crescimento. O impacto da mudança de um regime para o outro é o equivalente a uma contração da procura em média para cada país de 2,0-2,5% do PIB.
  6. A consequência de uma retirada dos EUA da governança global é, por outras palavras, improvável que seja um sistema de comércio global ordenado e baseado em regras em que a liderança tenha mudado de Washington para Pequim. Muito mais provável é um retorno aos dias de pré-Bretton Woods de conflitos comerciais e políticas de transferir os problemas para os parceiros, com políticas comercialmente agressivas.
  7. A única maneira de evitar que o mundo se transforme num regime de comércio global instável é fazer com que as principais nações se juntem para projetar e fazer cumprir um novo sistema para o comércio global – efetivamente um novo Bretton Woods -, mas desta vez mais parecido com o sistema sustentável proposto por John Maynard Keynes ao invés de um sistema insustentável em torno da centralidade do dólar proposto por Harry Dexter White.

Estão os Estados Unidos em retirada?

A parceria TPP é um acordo comercial assinado em 2015 entre uma dúzia de países que, em conjunto, representam cerca de 40% da economia global. Embora a TPP seja frequentemente vista como mais um de uma linha de tratados visando ainda maior liberalização do comércio, um objetivo mais importante poderá ter sido “elevar o nível de exigência” no comércio e criar um conjunto de regras, inclusive sobre questões ambientais e de trabalho, com o qual se exerceria pressão para que países como a China o cumpram. O acordo ainda não foi ratificado pelo Congresso dos EUA, e muitas vezes foi descrito, especialmente pela imprensa chinesa, como uma componente económica na estratégia do presidente dos EUA Barack Obama de articulação com a Ásia e hostil à adesão chinesa. Isso certamente pode ser parte da estratégia TPP, mas não é mais do que criar condições mais equitativas na concorrência global para países como os Estados Unidos, cujos fabricantes são muitas vezes obrigados a cumprir regulamentos domésticos mais rigorosos enquanto competem com fabricantes no exterior que não são obrigados a tal.

Donald Trump, no entanto, deixou muito claro que considera a TPP como parte de um complexo de acordos que, em conjunto, dificultam o crescimento dos EUA, e ele parece determinado que Washington se retire desta configuração e da aplicação das regras do regime comercial global. Para a maioria dos analistas e formuladores de políticas, a mensagem da Trump indicou o fim do TPP, ou pelo menos uma reformulação significativa do acordo. O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, advertiu antes do vídeo de Trump ser exibido que sem o envolvimento de Washington, o TPP “não tem qualquer significado”, derramando água fria, nas palavras do Financial Times, “nas propostas para os outros onze membros do TPP prosseguirem sem o EUA “. Mais tarde naquela semana, o Japão continuou a ratificar a TPP, principalmente, como o Wall Street Journal caracterizou as palavras de Abe, por razões simbólicas, na esperança de que “a ratificação do TPP pelo parlamento envie uma mensagem sobre a importância do livre comércio regional. “

O verdadeiro significado do anúncio de Trump não está certamente limitado ao TPP. Representa uma rejeição do papel central desempenhado pelos Estados Unidos na governança do sistema de comércio global. Foi sempre uma peça fundamental, embora altamente controversa, da campanha de Trump, e uma peça que ressoou junto de uma parte substancial dos seus apoiantes, que este sistema foi invadido pelos participantes e cria custos significativos para os Estados Unidos sob a forma de menor crescimento, maior desemprego, mais dívida e indústrias devastadas por todo o país.

Infelizmente, o debate sobre o comércio está altamente politizado e quase nunca se preocupa em especificar as condições em que as políticas intervencionistas podem ser úteis ou nocivas para a economia. Muito da controvérsia é travada ao longo de linhas ideológicas, razão pela qual a reação ao anúncio do Trump era razoavelmente previsível. Os habituais defensores da livre-troca condenaram imediatamente a sua afirmação, e os intervencionistas tradicionais elogiaram-na.

Houve, no entanto, pouco desacordo entre os analistas para os quais os assuntos geopolíticos têm precedência sobre o resto. A decisão de Trump de se retirar do TPP foi amplamente visto como prejudicial para os Estados Unidos, tanto porque levaria globalmente a uma redução da influência de Washington e porque a inversão dramática de uma política prosseguida energicamente pelas administrações passadas, Republicanas e Democratas, provavelmente reduziria a credibilidade americana entre os seus aliados.

 

Negociação das desvantagens económicas pelas vantagens políticas

Embora a avaliação de curto prazo do impacto geopolítico possa ser correta, o impacto a longo prazo pode ser menor do que muitos assumem. Pode até mesmo ser positivo, dependendo se é principalmente a força relativa da economia dos EUA que determina a capacidade de Washington de influenciar os eventos globais ou se é o complexo de alianças, pactos de defesa, relações políticas, precedentes e valores culturais e políticos compartilhados que são a chave para a predominância dos EUA. Se for o primeiro, retirar-se do TPP e de acordos similares podem fortalecer a mão de Washington no longo prazo. Se é o último, uma defesa geopolítica muito forte pode ser apresentada contra a decisão de Trump.

Ao contrário do que poderíamos primeiramente esperar, no entanto, aqueles que se opõem à decisão de Trump por motivos económicos (que as restrições ao comércio americano são prejudiciais para a economia dos EUA) e aqueles que se opõem por motivos geopolíticos (que esses tratados expandem o poder e influência dos EUA no exterior) podem não ser realmente aliados, exceto a nível muito superficial.

Se os estrangeiros aceitam a liderança de Washington em assuntos internacionais em troca de participarem em acordos comerciais americanos, é porque eles, geralmente, acreditam que existem vantagens económicas significativas em acordos que lhes dão acesso irrestrito aos mercados dos EUA. Embora seja perfeitamente possível que ambas as partes ganhem economicamente com esses acordos comerciais, a argumentação é muitas vezes apenas afirmada (e apoiada principalmente pelo chilrear alegre e repetido da frase ganhador-ganhador, ou seja que todos ganham).

Em alguns casos, é verdade que os acordos são ganhador-ganhador e ganham então ambas as partes. Seria desonesto, no entanto, negar que existem muitos casos – envolvendo não apenas economias em desenvolvimento, mas também avançadas – nas quais os parceiros homólogos estrangeiros se recusaram firmemente a dar às empresas americanas o mesmo acesso aos seus mercados que os seus produtos receberam dos mercados americanos. Nesses casos (e há muitos deles), os parceiros comerciais atuam como se fosse contrário aos seus interesses económicos conceder às empresas americanas e a outras empresas estrangeiras as concessões que Washington está disposto a conceder.

Só pode haver três explicações para essa política de assimetria: primeiro, que os governantes estrangeiros são extraordinariamente estúpidos ou mal informados; em segundo lugar, que uma diferença estrutural fundamental (e ainda inexplicada) entre os Estados Unidos e outras economias faz com que essas concessões comerciais beneficiem a economia dos EUA e prejudiquem a sua; e, em terceiro lugar, embora essas concessões sejam realmente onerosas, Washington está, no entanto, disposto a conceder concessões unilateralmente por razões de Estado.

Se a terceira dessas explicações é ou não a correta, há uma longa tradição americana – recuando de forma inequívoca pelo menos até tão longe quanto o tempo do antigo presidente dos EUA, Richard Nixon, e provavelmente muito antes – em que Washington aceitou acordos comerciais que os altos funcionários dos departamentos do Comércio e do Tesouro argumentaram em privado que eram desvantajosos para as empresas e para os trabalhadores americanos. Mas esses acordos foram, no entanto, explicitamente justificados pelas prioridades da política externa, embora, publicamente, a administração geralmente justifique essas concessões alegando que os Estados Unidos ainda ganham economicamente ao abrir o seu próprio mercado, mesmo que outros não retribuam.

Por outras palavras, aqueles que se opõem à decisão de Trump em termos geopolíticos podem concordar com os argumentos económicos daqueles que apoiam a decisão de Trump por motivos económicos, e não concordar apenas com a sua avaliação relativa das vantagens políticas. Mas, embora possa haver controvérsia sobre os benefícios para os Estados Unidos do atual regime de comércio global, muito menos controverso é que os benefícios e os custos no país são assimetricamente distribuídos. Embora muitos setores, especialmente as instituições financeiras e as empresas que têm a capacidade de arbitrar cadeias globais de valor, beneficiem sem dúvida da continuada abertura assimétrica dos mercados norte-americanos em bens e serviços aos estrangeiros, e as famílias beneficiem como consumidores com preços mais baixos para os bens importados, a distribuição desigual de custos e benefícios penaliza internamente os americanos mais vulneráveis ao desemprego no setor de bens comercializáveis e ao endividamento dos consumidores.

Estes são também os setores que podem ter mais fortemente apoiado Trump durante as eleições, mas a oposição ao TPP não se limita aos adeptos do Trump. O ex-candidato democrata às presidenciais Bernie Sanders, por exemplo, também se opôs ao TPP e ao complexo de acordos comerciais de que este faz parte. Por exemplo, uma semana após o anúncio do Trump em 21 de Novembro foi publicado um artigo no The Guardian pelos partidários de Sanders e pelos ativistas anti-comércio, que exaltaram a morte do TPP que, argumentaram os seus autores, não morreu apenas porque Donald Trump foi eleito, mas em vez disso porque “se desencadeou uma oposição internacional de pessoas de todo o espectro político sem precedentes enfrentando algumas das instituições mais poderosas do mundo, e esta oposição ganhou.” Os autores são Evan Greer, um ativista transexual; o guitarrista Tom Morello do grupo Rage Against the Machine; e a atriz canadiana Evangeline Lilly, nenhuma destas pessoas poderá ser partidária de Trump.

 

Pode Pequim aceitar o desafio?

Mas enquanto a oposição ao sistema do qual a TPP se tornou o símbolo não é nova e é apoiada em todo o espectro político, o anúncio de Trump, no entanto, surgiu internacionalmente como uma bomba. A preocupação mais amplamente articulada era que a rejeição do TPP agravaria as repercussões geopolíticas de uma agressiva Pequim a desalojar uma Washington fechada sobre si mesma do seu lugar de líder e garante do comércio global. Típico desta visão é uma declaração de Deborah Elms, diretora executiva do Asian Trade Center, em reação ao anúncio de Trump de 21 de Novembro de que emitiria imediatamente uma notificação de intenção de retirada da TPP: “Esta é uma notícia muito deprimente. Isso significa o fim da liderança dos EUA no comércio e a passagem do bastão para a Ásia. Num momento de desaceleração do crescimento económico, o mundo não pode dar-se ao luxo de ver as maiores economias a virarem-se para dentro de si-mesmas“.

Esse bastão, afirmou a Fortune no dia seguinte, “seria recebido com alegria pela China”. A China não foi convidada a subscrever o TPP, presumivelmente porque não cumpria os padrões escritos para se ser membro do TPP. Pequim propôs um pacto comercial rival com condições menos rigorosas que aglomeraram amplamente os acordos comerciais existentes, conhecida como Parceria Económica Regional Abrangente (RCEP). Isso excluía os Estados Unidos, mas incluía a Austrália, a Nova Zelândia, o Japão e outros doze países asiáticos.

Parecia a muitos que, se o TPP – um acordo projetado em grande parte por Washington e com a economia dos EUA no seu centro – desaparecesse, os seus signatários retirar-se-iam formalmente ou informalmente a favor de um RCEP mais ativo, liderado por Pequim, um acordo projetado com a economia chinesa no seu centro. A liderança do regime de comércio e capital global, nesse caso, mudaria de Washington para Pequim, e essa preocupação parecia confirmada por declarações que eram proferidas na China. Por exemplo, Tu Xinquan, um economista que aconselha Pequim sobre questões comerciais, disse aos jornalistas que “se os EUA abandonarem a sua liderança aqui, é claro que a China assumirá esse papel”. Enquanto isso, durante o seu discurso no Peru, o presidente chinês Xi Jinping sugestivamente defendeu a globalização e esforçou-se em apresentar a China como um baluarte contra uma maré protecionista crescente em todo o mundo.

Houve reações ainda mais extremas. As exportações chinesas certamente já não são subsidiadas como o foram há uma década – especialmente desde 2012, quando o maior desses subsídios, taxas de juros altamente reprimidas, começou a desaparecer – mas ainda é hiperbólico proclamar que Pequim, nas palavras de um jornalista americano excitado, é “o novo campeão da livre troca”. O enorme excedente comercial da China não é tanto o resultado de políticas explicitamente mercantilistas implementadas por uma cínica Pequim como muitos críticos insistem, mas não é tão pouco o resultado “natural” de eficiência chinesa e de trabalho árduo.

(continua)

Texto disponível em http://carnegieendowment.org/chinafinancialmarkets/66485

 

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