A NOSSA PENÍNSULA – 21 – A cultura em Portugal durante o domínio filipino (Teatro público na Lisboa barroca) – por Carlos Loures

 

A castelhanização que actualmente o Estado espanhol impõe às culturas das nações submetidas à sua autoridade, leva a pensar que ao longo dos 60 anos de domínio filipino em Portugal terá havido uma dura repressão cultural. Porém, segundo Hernâni Cidade, o «sentimento autonomista» manteve-se aceso no quadro histórico-cultural dos Filipes. O orgulho nacional exprimiu-se num labor «inconsciente» que, pelos anos de 1620-1630, se transformou em formas de «resistência» literária, na constante evocação dos heróis antigos e dos fastos seculares da Pátria. Tanto quanto me é dado saber, também nos Países Catalães, a política dos Áustria foi a de respeitar o idioma, hábitos, costumes e tradições. A tentativa de centralização e de anulação de privilégios «regionais», foram medidas da iniciativa do conde-duque de Olivares, o ministro de Filipe IV (III de Portugal).

(1842 – 1895)

A Mantilha de Beatriz, romance de Manuel Pinheiro Chagas, começa no ano de 1669 em Madrid. Assinada a paz entre Portugal e Castela, um diplomata português chegado de Lisboa, assiste num corral de comedias à estreia de uma peça de Pedro Calderón de la Barca – No son todos ruyseñores. No final da sessão, apresentado por outro português, o escritor João de Matos Fragoso, vai cear com o famoso dramaturgo. Conta-lhe a história de uma mantilha que a aragem vinda do Tejo fez voar da cabeça de uma jovem dama que atravessava o Terreiro do Paço, desencadeando  uma trama de enredos que, na ficção de Pinheiro Chagas inspira a Calderón a comédia Antes que todo es mi dama.

Terá o escritor caído em equívocos e imprecisões, desculpáveis numa altura em que a investigação sobre a obra calderoniana não estava tão avançada como actualmente. A autoria de No son todos ruyseñores, cuja atribuição a Calderón de la Barca  parece  incerta e a data de criação de  Antes que todo es mi dama é .talvez anterior a 1669.

Pormenores irrelevantes numa ficção. O importante é  a ideia que nos fica  – a de que em Portugal o gosto pelo teatro era grande. O sentimento

(1600 – 1681)

autonomista não impediu os portugueses de amar o teatro dos grandes poetas castelhanos. Não confundiam o génio de Tirso de Molina, de Lope de Vega ou de Calderón, com a codícia do conde-duque de Olivares…O tão falado ódio ao castelhano, nunca implicou ódio à língua e à cultura de vizinhos tão incómodos. E o aforismo que nega que do lado de lá da raia no chegue bom vento ou bom casamento não se pode aplicar ao teatro.

O conceito de espaço destinado à representação teatral existia na Grécia e em Roma. Aliás o percurso etimológico parte do grego θέατρον

(théatron) que significava «lugar onde se assiste a um espectáculo», formando-se a acepção de arte dramática por metonímia.  Aquilo a que chamamos um teatro não existia em Portugal, nem nos demais estados peninsulares, antes de finais do século XVI. Representava-se em salões de palácios, adros de igrejas,  claustros conventuais, pátios hospitalares ou em praças públicas.

As primeiras instalações específicas para a arte teatral foram os pátios de comédias que surgiram em Portugal durante o domínio filipino. Comédias era uma designação genérica que abrangia além da comédia, a tragédia e o drama – (usava-se também o termo enredos.). Pátio (pateo), palavra de origem obscura, surge pela primeira vez registada na nossa língua em 1516, (Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente Duarte Barbosa). Pátios eram os espaços interiores, formados pelas traseiras das casas de habitação, aquilo que na tipologia da cidade pombalina se designou por saguões.  Patio de comedias ou corral de comedias, foi o conceito de teatro público que nos séculos XVI e XVII acompanhou a evolução da arte dramática no chamado Século de Ouro.

.Descrevendo um Pátio de Comédias de forma simplificada, pode dizer-se que consistia num estrado colocado ao fundo do pátio destinado a instalar o palco; aos lados, construíam-se uma estrutura de galerias para camarotes, com aposentos reservados para pessoas importantes. Em frente ao palco, entre os camarotes, erguia-se a estrutura de um hemiciclo com dois  planos, no superior, instalava-se habitualmente o clero. Havia um espaço para as mulheres. Os homens assistiam de pé ao espectáculo no pátio, ao fundo do qual se reuniam os temidos mosqueteiros.

No romance de Pinheiro Chagas o diplomata português, combatente de Montes Claros ameaça a mofa dos mosqueteros – Vou ensinar estes insolentes (…) a ridicularizar assim uma nação, que acaba de lhes mostrar que maneja melhor a espada do que a guitarra e que engenha melhor batalhas do que trovas.

Pouco depois da morte da morte do cardeal D. Henrique, sem sucessor directo ter colocado, Filipe II de Habsburgo no trono de Portugal, em 1580, Fernando Díaz de la Torre, um castelhano residente em Lisboa criava o primeiro teatro público. Durante o século seguinte, numerosas companhias espanholas divulgaram em Portugal, o vasto e rico repertório seiscentista castelhano. Os edifícios teatrais de Lisboa seguiam a tipologia dos corrales de comedias existentes nos outros reinos peninsulares. De acordo com um documento datado de 7 de Outubro de 1595, que concede à Misericórdia, responsável pela gestão do Hospital de Todos os Santos, o privilégio de escolher os lugares para representação de comédias em Lisboa. Porém, já eram representadas na cidade num grande pátio situado na Rua das Arcas em 1582.

Anos mais tarde, Díaz de la Torre mandou construir o Pátio das Arcas “entre a rua das Arquas que he a que vai do Rossio pella rua da Prasa da Palha pera Saõ Nicolao, fiqua na entrada della, a parte esquerda, e entre o bequo das Comedias e o de Lopo Infante, o qual fiqua interior ao dito bequo das Comedias […], vem fazer frente tudo na freguesia de Santa Justa”. Além do Pátio das Arcas, houve outros espaços teatrais, tais como o Pátio de Comédias da Mouraria ou do Poço do Borratém e o Pátio das Fangas da Farinha

A influência do teatro espanhol em Portugal não se limitou ao modelo dos espaços de representação, sendo também visível nos repertórios adoptados. Não só o castelhano era compreendido e falado por uma grande parte da população como havia um uso amplo do idioma entre os poetas portugueses e alguns escreveram comédias segundo o modelo do teatro de Castela e alguns mesmo no idioma estrangeiro – casos de Jacinto Cordeiro, João de Matos Fragoso, Henrique Gomes e D. Francisco Manuel de Melo, do qual se conhece a comédia De Burlas hace amor veras.

Mas também houve autores castelhanos, incluindo Lope de Vega, que utilizaram o português nos diálogos das suas peças. Um bom exemplo de convívio entre duas culturas: um bom vento que nos chegou de Espanha.

Esta nota nada de importante acrescenta ao artigo – é uma nota pessoal, uma curiosidade por assim dizer.

Segundo localização determinada pelo historiador e engenheiro Augusto Vieira da Silva e confirmada pelo olisipógrafo Gustavo de Matos Sequeira, vim ao mundo em cima das ruínas do famoso Pátio das Arcas. Num quinto andar da Rua dos Douradores para onde os meus avós foram viver em 1913, nasceu o meu pai em 1915, eu em 1937, minha irmã em 1951 e o meu filho em 1963. Mas não foi por ter nascido sobre um pátio de comédias que o teatro me encanta e atrai – foi o meu fascínio pelo teatro que me levou a saber que sob o quarteirão pombalino que me serviu de berço, esteve o mais importante pátio das comédias da Lisboa anterior ao Terramoto de 1755.

 

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CIDADE, Hernâni, A Literatura Autonomista sob os Filipes, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1940.

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