A crítica demolidora de Michael Pettis à teoria e à política económica neoliberal – 22. O défice comercial dos EUA não é provocado pelo baixo nível de poupança nos EUA (1ª parte). Por Michael Pettis

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

22. O défice comercial dos EUA não é provocado pelo baixo nível de poupança nos EUA (1ª parte)

michael pettis Por Michael Pettis

Publicado por Carnegie Michael Pettis em 8 de agosto de 2018

 

Um artigo recente de Joseph Stiglitz sugere que os Estados Unidos têm um défice na balança corrente porque os americanos economizam muito pouco para financiar o investimento interno. De facto, pode ser exatamente o contrário: os americanos podem estar a poupar muito pouco precisamente porque os Estados Unidos vivem numa situação de défice da balança corrente.

 

O economista Joseph Stiglitz publicou recentemente um artigo interessante no Project Syndicate intitulado “The US is at Risk of Losing a Trade War with China.” Fiquei surpreendido. Fico sempre surpreendido quando ouço as pessoas defenderem que os países em situação de défice como os Estados Unidos arriscam perder mais com uma guerra comercial do que os países que têm excedentes comerciais (que não é certamente o que a história sugere). Pessoalmente, suspeito que é assim porque muitos comentadores simplesmente não compreendem porque é que a China é tão suscetível a uma guerra comercial e porque é que Pequim está tão preocupada. Por outro lado, concordo com muito do que Stiglitz diz no seu artigo sobre tarifas (como eu também o costumo fazer). Isto inclui o ponto principal do artigo – que as tarifas aduaneiras poderão ter um impacto limitado ou mesmo adverso sobre os desequilíbrios globais dos Estados Unidos e da China, mesmo que pretensamente possam melhorar os desequilíbrios bilaterais. No seu artigo Stiglitz começa por dizer:

O “melhor” resultado da estreita focalização do Presidente Donald Trump sobre o défice comercial dos Estados Unidos com a China seria a melhoria no equilíbrio bilateral, compensado por um aumento de uma quantidade igual no défice americano com algum outro país (ou países). De facto, a redução significativa do défice comercial bilateral vai ser difícil.

Os leitores regulares do meu blog sabem que apresentei muitos argumentos semelhantes. Em abril de 2017, por exemplo, expliquei porque é que as tentativas desajeitadas para reduzir o grande défice comercial americano com o México muito provavelmente farão aumentar o défice americano para com o resto do mundo, mais do que reduzirão o défice americano com o México. Isso pode inicialmente parecer contraintuitivo, mas não há nada de complicado sobre a lógica que gera esse processo. Isto só parece contraintuitivo porque os modelos de comércio internacional que a maioria das pessoas tem em mente envolvem pressupostos implícitos que eram verdadeiros, de facto, mas que agora já deixaram de o ser. Como esses pressupostos quase nunca são explicitamente apresentados, é fácil deixar de reparar até que ponto as mudanças na dinâmica do comércio global e do investimento tornaram obsoletos os antigos modelos de comércio internacional que ainda animam os debates de hoje.

A mesma dinâmica se aplica ao comércio com a China, como Stiglitz aponta. Se bem que as tarifas sobre as importações chinesas sejam suscetíveis de reduzir o défice comercial bilateral dos americanos com a China, é pouco provável que reduzam o défice global dos Estados Unidos ou que venham a reduzir o excedente global da China. As tarifas só irão provocar mudanças nas estruturas do comércio mundial que podem aumentar marginalmente os preços em alguns bens, mas que não afetam as causas subjacentes dos desequilíbrios.

Os americanos aforram muito pouco?

Mas fica por aqui todo o meu acordo com Stiglitz sobre como as tarifas afetam o comércio, uma vez que discordo da sua posição sobre o que impulsiona os desequilíbrios comerciais americanos e, mais genericamente, sobre a dinâmica de equilíbrio da balança de pagamentos. Stiglitz argumenta que os Estados Unidos têm estado a ter défices comerciais, principalmente porque os americanos aforram uma parcela demasiado pequena do seu rendimento [1]. De acordo com esta lógica, se Washington quer reduzir os seus défices, ele deve implementar políticas que forcem o aumento das poupanças nos Estados Unidos:

Os Estados Unidos têm um problema, mas não é com a China. O problema é interno aos Estados Unidos: a América tem aforrado muito pouco Trump, como muitos dos seus compatriotas, é imensamente míope. Se ele compreendesse um bocadinho de economia e uma visão de longo prazo, ele teria feito possível por aumentar as poupanças dos americanos. Isso teria reduzido o défice comercial multilateral.

 

Os Estados Unidos têm realmente aforrado “muito pouco”. Mas é fácil mostrar que, sob certas condições, aqueles que são a maioria de todos nós, talvez até mesmo Stiglitz, concordariam em caracterizar a poupança global de hoje – o baixo nível de poupança dos Estados Unidos é uma consequência automática das pressões sobre o equilíbrio da balança de pagamentos exercidas pelo exterior.

Na verdade, a mesma aritmética básica mostra que os Estados Unidos não podem aumentar as poupanças internas em relação ao investimento interno (ou seja, não podem reduzir o seu défice comercial) sem abordar os problemas que realmente se originam na China, e em todos os outros grandes países com excedentes comerciais. Os Estados Unidos, dito por outras palavras, não têm um défice comercial porque poupam muito pouco: poupam muito pouco porque têm um défice comercial.

Mais uma vez, eu sei que isso pode parecer no início incrivelmente contraintuitivo (e aqui, inevitavelmente, poderão mesmo dizer que é uma afirmação estúpida, que ninguém está a apontar uma arma à cabeça dos consumidores americanos e forçá-los a comprar uma televisão de ecrã plano). Mas, na verdade, esta afirmação decorre inexoravelmente da aritmética de base da balança de pagamentos.

Antes de avançarmos a explicar o porquê, devo salientar que Stiglitz não é o único que pensa que o baixo nível de poupança dos Estados Unidos é a causa dos défices comerciais americanos. Esta ideia tem constituído um consenso quase esmagador entre os economistas e analistas durante décadas. Em maio de 2017, por exemplo, dois outros eminentes economistas, George P. Schultz e Martin Feldstein, propuseram uma explicação em 70 palavras de “tudo o que cada um de nós precisa de saber sobre o comércio internacional…” Estes autores escreveram:

Se um país consome mais do que produz, ele deve importar mais do que exporta. Isso não é nenhuma afirmação tola. Isso é aritmética. Se conseguirmos negociar uma redução do excedente comercial chinês com os Estados Unidos, teremos um aumento do défice comercial com algum outro país. As despesas federais incluídas no défice, uma ação massiva e continuada de poupança negativa [desentesouramento] são as culpadas. Controlem-se estas despesas e controlar-se-ão assim os défices comerciais.

Enquanto Stiglitz argumenta que Washington deve implementar políticas que aumentem as poupanças nacionais para reduzir o défice comercial dos EUA, Schultz e Feldstein são mais específicos e muito mais ideológicos: eles afirmam que Washington deve reduzir a nível de poupança negativa provocada pela Administração, reduzindo o défice orçamental.

De qualquer forma, estes economistas concordam que apenas tomando medidas para forçar os americanos a pouparem mais – sejam as famílias americanas, as empresas, ou o governo- é que Washington pode reduzir o défice comercial americano. Eles argumentam que esta linha de raciocínio é a consequência inevitável das identidades contabilísticas que explicam a relação entre poupança, investimento e défices comerciais.

 

Um pressuposto escondido

Tenho defendido muitas vezes que os economistas fazem demasiado facilmente declarações categóricas quando as deveriam fazer no condicional. Stiglitz, Schultz, Feldstein, e outros baseiam os seus argumentos sobre a identidade contabilística segundo a qual o défice da balança corrente de um país é sempre e exatamente igual ao excesso de investimento interno sobre a poupança interna. (Para aqueles que estejam interessados, na minha resposta de maio 2017 ao artigo de Schultz e de Feldstein eu enumero e explico as equações muito simples que estão por detrás das identidades contabilísticas relevantes.[2])

A questão é que o investimento americano é superior às poupanças dos americanos desde há décadas, e as identidades contabilísticas permitem-nos ver que, enquanto isso for verdade, os Estados Unidos devem ter um défice na balança corrente exatamente igual à diferença entre investimento e poupança. Reduza-se a diferença entre as duas grandezas, argumenta Stiglitz, e automaticamente reduziremos o défice americano. Isso é verdade por definição.

Porque muito poucos economistas recomendariam reduzir o investimento, Stiglitz toma então o que parece ser logicamente a etapa seguinte. Ele argumenta que, se os Estados Unidos desenvolvessem políticas que levassem a um aumento da poupança dos EUA, os níveis mais elevados de poupanças reduziriam a diferença entre o investimento americano e a poupança americana. Fazendo isto, por sua vez, reduzir-se-ia o défice da balança corrente dos EUA. Teoricamente, isso poderia talvez ser feito através da redução do défice orçamental, dificultando que os consumidores contraiam empréstimos, aumentando os lucros das empresas à custa dos trabalhadores ou aumentando a desigualdade de rendimentos de forma mais geral.

Mas há um pressuposto escondido subjacente a este tipo de análise. Acontece que as políticas que aumentam as poupanças internas no setor relevante da economia reduziriam a diferença entre investimento e poupança apenas se os investimentos americanos e a poupança fossem totalmente determinados pelas forças internas americanas. Se fosse esse o caso, isso também significaria que os americanos importam capitais estrangeiros especificamente para colmatar esta lacuna entre investimento e poupança. Posta a questão de uma maneira ligeiramente diferente, aumentar a poupança interna reduziria a diferença entre investimento e poupança apenas se os estrangeiros exportassem capital para os Estados Unidos, principalmente sob a forma de financiamento comercial, e apenas se este financiamento comercial fosse projetado especificamente para financiar o défice comercial ou para financiar a diferença entre o investimento interno americano e a poupança interna americana. (que seria da mesma ordem de grandeza).

Isto é como o mundo funcionava outrora, mas isso já não é verdade hoje. Os economistas muitas vezes não conseguem identificar explicitamente as hipóteses que permitem fazer com que os seus modelos funcionem. Esta é provavelmente a razão pela qual tantos economistas retêm um modelo obsoleto da dinâmica da balança de pagamentos.

 

Porque é que o capital realmente flui para os Estados Unidos?

Há, de facto, duas explicações muito diferentes quanto à razão que leva a que o fluxo de poupanças estrangeiras flua para os Estados Unidos, e cada uma delas tem implicações completamente diferentes:

  1. Uma primeira explicação pressupõe que os desequilíbrios comerciais ou de capitais se originam nos Estados Unidos, talvez porque os americanos poupem muito pouco e consomem demasiado, caso em que o resto do mundo responde e se acomoda a estes desequilíbrios. De acordo com esta explicação, os Estados Unidos têm necessidades internas de investimento que não podem ser satisfeitas por poupanças internas, de modo que os americanos devem fazer subir o custo do capital para atrair poupanças externas para financiar a diferença entre o investimento [pretendido] e a poupança [disponível]. Este foi quase certamente o caso durante grande parte do século XIX.
  2. Uma segunda explicação pressupõe que os desequilíbrios comerciais ou de capitais se criam no estrangeiro. Pensa-se que os Estados Unidos se acomodam, se adaptam, se moldam a esses desequilíbrios, em parte porque tem mercados de capitais profundamente líquidos com uma governança altamente credível, e em parte por causa do seu papel de amortecedor de choque de capitais do mundo. De acordo com esta explicação, os países com excesso de poupanças – habitualmente, devo acrescentar, por causa de políticas que suprimem o seu consumo interno – têm poupanças que excedem as suas necessidades de investimento interno e devem exportar essas poupanças excedentárias e terem pois excedentes comerciais e evitar o desemprego. Estes países excedentários preferem exportar uma parcela substancial das suas poupanças para os Estados Unidos e, como o fazem assim, forçam o custo do capital a descer.

A primeira explicação — que foi válida para a maior parte da história moderna — pressupõe que a maioria dos fluxos de capital consiste essencialmente em finanças comerciais. A segunda explicação — que provavelmente já era válida no final do século XIX e que agora se tornou válida novamente desde o final do século XX — pressupõe que a maioria dos fluxos de capital são impulsionados pelos bancos centrais, fundos soberanos, fugas de capital e pelos investidores a gerirem o seu capital. O pressuposto é que estes fluxos de capital representam decisões de investimento independentes baseadas em expectativas de risco e de retornos de capital.

Qualquer que seja a explicação correta, é claro que o mundo deve equilibrar-se em cada momento do tempo. E a menos que acreditemos que o equilíbrio é alcançado por uma coincidência extraordinária em cada ponto no tempo, a causalidade deve fluir num sentido ou noutro. Não há nada na identidade contabilística que nos diga qual o sentido da causalidade que se verifica, mas que a causalidade existe, isso é certo.

É totalmente incorreto supor, no entanto — como a maioria dos economistas implicitamente fazem — que é o resto do mundo que se acomoda automaticamente aos desequilíbrios dos EUA. Poderia facilmente ser o inverso. E eu penso que é muito provável que seja mesmo o inverso que se deve tomar como verdadeiro dado que as taxas de juro geralmente não sobem em paralelo com o aumento dos défices comerciais dos Estados Unidos. As taxas de juros sugerem muito fortemente que o capital não é sugado do exterior para os Estados Unidos mas, pelo contrário, é forçado do exterior para os Estados Unidos.

Mais importante ainda, os fluxos de capitais para os Estados Unidos não consistem apenas em finanças comerciais. Em vez disso, este afluxo consiste essencialmente em decisões de investimento independentes impulsionadas por bancos centrais, fundos de riqueza soberana, fuga de capitais s e investidores que gerem o seu capital. Por causa da profundidade e da qualidade de seus mercados financeiros, os Estados Unidos atuam como um investidor de último recurso, absorvendo as poupanças estrangeiras excedentárias que procuram um porto seguro.

Qualquer que seja a explicação que o leitor possa preferir, o que quero salientar é que não estou a afirmar que uma explicação seja verdadeira sobre a outra. Prefiro insistir no facto de que qualquer modelo de comércio internacional deve reconhecer explicitamente que um mundo em que as importações de capitais dos EUA são determinadas no estrangeiro, por países e investidores que procuram gerir as suas poupanças excedentárias, funciona de forma muito diferente de um mundo em que as importações americanas de capitais são determinadas internamente, como um reflexo das taxas de poupança americanas estruturalmente baixas que exigem ao país ter de importar capital estrangeiro.

Neste último caso, Stiglitz estaria correto em argumentar que as políticas que forçam a poupança americana a aumentar devem reduzir a diferença entre investimento e poupança e, por isso mesmo, deve reduzir o défice da balança corrente. No caso anterior, no entanto, o excedente da balança de capital dos EUA (ou seja, as importações de capital estrangeiro) é determinado pelas condições no exterior que, por sua vez, determinam a diferença entre o investimento e a poupança americana. Neste caso, porque as políticas destinadas a aumentar as poupanças internas não têm nenhum efeito previsível sobre o excedente da balança americana de capital, a diferença entre o investimento e a poupança nos Estados Unidos permanecerá inalterada, assim como o défice da balança corrente.

(continua)

Texto disponível em http://carnegieendowment.org/chinafinancialmarkets/77009

 Notas

[1] A referência nesta frase aos défices comerciais, o termo défice da balança corrente seria mais correto, mas para os fins deste ensaio, podemos ignorar a diferença entre os dois conceitos.

[2] N.E. Texto editado na presente série sob o número 11, em 15 e 16 de outubro, “Porque é que a redução do défice orçamental provoca a redução do défice comercial ou um aumento no desemprego?”, https://aviagemdosargonautas.net/2018/10/15/a-critica-demolidora-de-michael-pettis-a-teoria-e-a-politica-economica-neoliberal-11-porque-e-que-a-reducao-do-defice-orcamental-provoca-a-reducao-do-defice-comercial-ou-um-aumento-no-desemprego/ e seguinte.

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