Venezuela, essa ferida absurda! Por José Natanson

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Seleção e tradução de Francisco Tavares

Venezuela, essa ferida absurda!

Que é a Venezuela? Uma democracia? Uma ditadura?

jose natanson Por José Natanson

Publicado por sin permiso  em 27 de janeiro de 2019

Até dezembro de 2017 a Venezuela arrastava uma série de défices institucionais e republicanos gigantescos. Todavia, continuava a celebrar eleições razoavelmente livres e competitivas, nas quais o governo não se privava de inclinar o campo eleitoral mediante a descarada utilização de todos os recursos estatais ao seu alcance, mas eleições essas em que existia uma presença real da oposição e cujos resultados eram verificados por instituições como o Centro Carter e as Nações Unidas. Se a democracia se pode definir como un tipo de regime em que não só há eleições mas que além disso não se sabe de antemão quem as vai ganhar, se a democracia comporta definitivamente um certo grau de incerteza, Venezuela era ainda uma democracia; no limite, mas democracia afinal (de facto, o chavismo podia ser acusado de muitas coisas mas não de que não se realizassem eleições e de que não reconhecesse as suas derrotas nos poucos casos que ocorreram, coisa que por outro lado a oposição não fazia, acostumada a denunciar fraude quando perde mas não quando ganha, e sempre com o mesmo Conselho Nacional Eleitoral, as mesmas urnas eletrónicas e o mesmo tribunal).

Mas nos últimos anos isto mudou. Em dezembro de 2015 a oposição triunfou inesperadamente nas eleições para a Assembleia Nacional. Conseguiu uma maioria de dois terços, suficiente para reformar a Constituição e bloquear o governo, e anunciou que o seu plano consistia em forçar uma saída antecipada de Nicolás Maduro. O chavismo, que tinha denunciado irregularidades na eleição apesar de ter controlado todo o processo, apresentou uma série de impugnações. O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), que lhe responde, aceitou uma, e ordenou, com argumentos duvidosos, repetir a eleição no estado de Amazonas e não não dar posse aos seus três deputados. A oposição, que deste modo perdia os dois terços, recusou-se a acatar a sentença. O TSJ, ante um pedido do Executivo, declarou a Assembleia em desrespeito ao Tribunal, e pouco depois anunciou que absorvia as suas funções, um autogolpe tão ostensível –e aparentemente implementado sem o aval de Maduro- que afinal teve que retroceder.

Ao impasse institucional provocado pelo conflito de poderes somaram-se uma série de marchas e mobilizações que entre abril e julho de 2016 causarão mais de 100 mortos. A repressão do governo, seja qual for o parâmetro que se utilize, foi feroz, tanto a oficial como a paraoficial dos “coletivos” armados, mas também se registaram mortos chavistas às mãos de multidões em fúria que chegaram a queimar viva uma pessoa.

A saída que Maduro encontrou, mais política que democrática, foram as eleições para a Assembleia Constituinte anunciadas em 1 de maio de 2017. Realizaram-se sob um curioso sistema setorial-representativo, não contemplado na Constituição vigente, segundo o qual uma parte dos 564 constituintes fossem eleitos por sector (camponeses, operários, pessoas portadoras de deficiência, empresários, etc) e outra por municípios, num desenho tal que outorgava ao chavismo uma vantagem indiscutível: ganhava mesmo que perdesse. A oposição não se apresentou e as eleições concretizaram-se, pela primeira vez, sem observadores independentes. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral, a participação foi de 40 por cento, embora a empresa responsável pelas máquinas de votação tenha questionado este dado. Mas a questão central é que Maduro se negou a validar os resultados num plebiscito em que a população se decidisse por um Sim ou um Não à nova Constituição, como tinha feito Chávez em 1999. Depois, a Constituinte simplesmente declarou-se “originária” e, em vez de se dedicar a escrever uma nova Constituição, instalou-se como uma espécie de órgão suprapoder que absorveu as funções da Assembleia Legislativa.

Sentindo-se fortalecido, Maduro convocou para 15 de outubro de 2017 eleições regionais (governadores), que vinha a protelar desde há um ano sem mais argumentos institucionais que a possibilidade de uma derrota. A oposição apresentou candidatos, as eleições realizaram-se normalmente e o chavismo… arrasou (contra todos os prognósticos, impôs-se em 18 dos 23 estados e inclusive derrotou figuras opositoras como Henri Falcón em Lara e ao sucessor de Henrique Capriles em Miranda). A oposição denunciou fraude, embora nunca tenha exibido os famosos boletins que o demonstravam.

A correlação de forças tinha mudado. O governo, que antes tinha protelado as eleições regionais, desta vez decidiu adiantar as presidenciais. Aduzindo que o Conselho Nacional Eleitoral tinha imposto uma série de restrições intransponíveis, como a necessidade de revalidar novamente os boletins de todos os partidos e a proibição de a Mesa de Unidad Democrática, histórica denominação do anti-chavismo, utilizar esse nome, uma parte da oposição decidiu não se apresentar. Mas um setor, liderado por Falcón, sim, apresentou-se, e foi amplamente derrotado. A participação foi baixa. Em 10 de janeiro, Maduro jurou novamente como presidente.

Assim, com uma Assembleia Legislativa legalmente constituída mas desprovista de funções reais, uma Assembleia Constituinte manifestamente ilegal e um presidente atingido na sua legitimidade de origem, chegamos à situação atual. A insólita decisão de Juan Guaidó de declarar-se “presidente encarregado” e a ainda mais insólita decisão dos Estados Unidos e boa parte dos países latinoamericanos de “o reconhecerem” agudizam a tensão e aprofundam a polarização. Mas, até onde chega realmente a mão sinistra do império? Na realidade, salvo que decida uma invasão armada desde as Caraíbas ou desde Colômbia, o que criaria um Vietnam de grau extremo, difícil de imaginar para uma administração Trump que acaba de se retirar da Síria, a capacidade de ingerência de Washington limita-se às sanções financeiras e ao apoio à oposição. Por isso, para lá das intenções, o efeito é limitado: a Venezuela não é uma ilha, não pode ser bloqueda como a Cuba, e sobrevive basicamente das suas minguadas exportações de petróleo, um bem que encontra sempre quem o compre (incluindo sobretudo os Estados Unidos, o principal comprador do crude venezuelano). A ingerência existe, mas resulta insuficiente para derrocar o chavismo.

A explicação para o drama venezuelano é fundamentalmente local: uma economia deslocada (1 milhão por cento de inflação no ano passado), uma dramática deterioração social (62% de pobreza, segundo o índice elaborado pelas universidades), a maior taxa de homicídios da América Latina (89 por 100 mil habitantes) e uma sociedade em decomposição (cerca de dois milhões de emigrantes em dois anos, incluindo praticamente toda a classe média). Apesar disso, Maduro conseguiu manter o poder, basicamente por três razões. O primeiro é o controle vertical da Força Armada Bolivariana, que não é um “aliado” do governo, mas uma parte essencial do dispositivo de poder. A segunda são os resquícios de legitimidade que ainda conserva como resultado dos formidáveis avanços sociais alcançados durante os governos de Chávez e a rejeição gerada pela oposição política nos setores populares, o que explica porque “os pobres não descem das colinas”. Este apoio social relativo é complementado pela rede desordenada e ineficiente, mas enorme, de provisão básica de alimentos instrumentada através do Carnet de la Patria e pelo facto de que, como resultado da hiperinflação e não de uma decisão deliberada de política económica, boa parte dos serviços públicos – luz, metro, internet – são praticamente gratuitos. O terceiro aspecto que explica a sobrevivência é o apoio geopolítico de grandes potências como a Rússia e a China e de potências emergentes como o Irão e a Turquia, que ofereceram assistência financeira, energética e militar nos momentos mais críticos e demonstraram que o governo não está totalmente isolado, embora à custa de uma dívida monstruosa e da hipoteca de boa parte da riqueza mineral e de hidrocarbonetos do país.

Neste contexto, a única saída possível é uma negociação entre as duas partes, algo que outrora parecia possível e que agora é descartado. Num contexto de polarização tal que o vencedor leva tudo, uma das maiores dificuldades é a questão da imunidade dos funcionários chavistas no caso da sua saída do governo. Uma vez que a oposição tem um espírito mortífero de vingança, o chavismo suspeita, com razão, que abandonar o governo não implicaria uma passagem pacífica para a oposição parlamentar, mas sim prisão perpétua ou exílio; em suma, eles sentem que o poder não está em jogo, mas sim a vida.

Voltemos à pergunta inicial. A Venezuela não é uma ditadura em sentido estrito. Não é nem um regime estalinista nem um sistema de partido único: não há violações massivas dos direitos humanos (embora sejam focalizadas e uma política de “zona liberada” para as ações dos grupos paraestatais nos bairros). Liberdade de expressão persistente, embora limitada sobretudo nos meios digitais, que o braço do governo não alcança. Maduro não é um autocrata e a sociedade pode expressar-se eletivamente, com os problemas que apontamos. Ao mesmo tempo, na Venezuela há uma evidente proscrição de opositores e um número crescente de presos políticos: se no Brasil Lula não conseguiu candidatar-se às últimas eleições, na Venezuela as principais figuras da oposição estão no exílio (Manuel Rosales), inabilitadas (Henrique Capriles, Corina Machado) ou presas (Leopoldo López). Se na Argentina Milagro Sala é um prisioneiro político, não importa como você olhe para ele, na Venezuela há dezenas de presos políticos, alguns deles presos simplesmente por organizarem mobilizações pacíficas e a maioria deles detidos em condições desumanas na prisão administrada pelos serviços de inteligência. O militarismo tem sido uma das características do regime desde o tempo de Chávez. E finalmente, como vimos nestes dias, a repressão nas ruas atinge uma ferocidade que não se vê em nenhum outro país da América Latina, exceto na Nicarágua (o silêncio da esquerda latino-americana a este respeito é impressionante).

Como nenhum outro país da região, a Venezuela é uma democracia, uma espécie de autoritarismo caótico e ultra-corrupto, um regime híbrido que combina elementos democráticos e autoritários e vai mudando de acordo com o contexto internacional, os preços do petróleo, o humor do governo e a correlação de forças com a oposição.

Texto disponível em http://www.sinpermiso.info/textos/venezuela-esa-herida-absurda

José Natanson: Jornalista e politólogo. É diretor de Le Monde diplomatique edição Cono Sur, de Review. Trabalhou como redaor e colunista do diário Página/12, para o qual fez a cobertura de campanhas eleitorais e diversos acontecimentos na Argentina e no exterior . Colaborador habitual em diversos meios de comunicação na Argentina e na América Latina, conduziu programas na rádio e na televisão e foi chefe de redação da revista de ciências sociais e debate político Nueva Sociedad. Trabalhou como consultor do PNUD.

 

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