CARTA DE BRAGA – “dos ignorantes vaidosos e de náufragos”- por António Oliveira

Lembro-me de há pouco tempo ter lido, mas já nem sei onde, que Bertrand Russel ao criticar a fatuidade e ignorância (a qualificação é dele!) de boa parte da classe política, disse um dia que nada o satisfaria mais do que ver os políticos obrigados a um sólido conhecimento da História e da Literatura.

Russel, que deixou marcas indeléveis na Matemática e na Filosofia e não suportava a vaidade e a ignorância, acrescentou ainda que, até por isso, gostaria muito de poder ouvir um discurso político apoiado na erudição e na narrativa.

Acredito que esta questão, para além do uso permanente de chavões de que nem vale a pena falar, decorre do evidente conflito entre significado e sentido que qualquer expressão quase sempre arrasta, até só devido à administração de silêncios entre palavras e frases.

Basta considerar como a poesia pede sempre ‘saber e qualidade’ ao dizedor ou ao ledor, para não ser dita com um sentimento parecido ou igual ao ‘emocionante’ bater de um teclado.

Na verdade, uma letra isolada nada vale mas, quando articulada com outras, pode formar palavras para contar ideias, levar a emoções, a conceitos, a futuros e ajudar a organizar, a construir e a sedimentar reuniões, associações, grupos e comunidades.

O som monocórdico do teclado, tanto como as mesmas expressão e entoação dos discursos sempre idênticos, leva ao repetitivo das ideias, arrastando o anular da individualidade e da especificidade, transformando as comunidades em agrupamentos amorfos, onde nada se tem para permutar com outros, além do que se pode comprar para continuar igual a tudo o resto.

Discursos monótonos, escanados só pelos chavões e quanto mais popularuncho melhor!

Acredito ter sido por tudo isto, que Bertrand Russel falou do conhecimento da história porque, quanto mais cada pessoa aprofundar a sua origem, tanto mais terá para poder oferecer e repartir com outros, até por se deverem assumir e partilhar origens e memórias comuns.

Por outro lado, o conferencista e mestre em literatura hispânica, António Basanta, muito reforça aquela opinião de Bertrand Russel quando afirma ‘Ler é o mais parecido com Amar. Um acto íntimo, pois quando se lê, não se pode fazer mais nada!

A este propósito, também acredito que o livro, aquele conjunto de páginas cheios de letras articuladas em palavras e frases para levar a conceitos e formar comunidades, poderá vir a ter nestes tempos, uma importância igual à de uma arma política.

Talvez os tais vaidosos e fátuos intérpretes da política (seguindo as palavras de Russel!) o venham um dia a penar como autêntica arma de destruição maciça.

Isto porque, de acordo com o Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), 48% da população portuguesa é considerada iletrada funcional, o valor mais elevado da União Europeia.

A ser verdade, só cerca de 45% dos alfabetizados são capazes de ler um texto, observar um gráfico, perceber um aviso ou um comunicado para o interpretar devidamente.

E até pelo percurso político onde, absurda e indignamente, este povo foi arredado da cultura durante muitas dezenas ou melhor, centenas de anos, aquele tal conjunto de páginas com letras articuladas em palavras e frases, teria forçosamente de continuar a ser um objecto alheio à maioria da população.

Um facto a confirmar a afirmação recente do filósofo e sociólogo Daniel Innerarity, ‘somos só democracias a girar em volta do curtíssimo prazo, que não empreende as transformações de fundo que as nossas sociedades exigem’.

Também já não me lembra onde li, só interiorizei, que depois de ter sido declarado inútil para o exército, Woody Allen teria afirmado ‘Se houver uma guerra, só vou servir para refém!

Mas não me esqueço de como hoje, estamos inteiramente metidos e à deriva numa guerra global, onde se declarou o papel, o verdadeiro e real resguardo de palavras e ideias, como o inimigo a abater, pois até as letras já começaram a ser substituídas por uns míseros símbolos ideográficos.

Mas esta guerra nem parece preocupar muito os tais políticos vaidosos e ignorantes (usando ainda a linguagem e classificação de Bertrand Russel!), porque os problemas de um mundo com poucos ou nenhuns leitores, não afectam quem os não lê, mas não deixam de aumentar e muito, os prejuízos já causados e sofridos pela quantidade cada vez maior de reféns naufragados da cultura.

Talvez venham a ser eles a fazer do livro a arma para acabar com o curtíssimo prazo, por só nele se poderem historiar e narrar ideias com lhaneza e sabedoria!

Ave, Bertrand Russel!

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

6 Comments

  1. As estatísticas da PNUD parecem-me muito optimistas, porquanto há cerca de 25 anos, estando eu numa aula Direito Civil, de formandos para o exame de Revisor Oficial de Contas, verifiquei que gente licenciada não era capaz de entender o sentido do artigo que acabava de ler. Hoje, com a cultura de Smartfone o panorama é catastrófico.

  2. Com os meus prévios agradecimentos peço o favor de aceitar querer esclarecer-me em que livro de Daniel Innerarity figura a passagem – “somos só democracia ……” – que o Senhor indica?CLV

    1. O que mais me preocupa é o facto de no seguidismo de ideotices políticas de governos reféns do poder financeiro os “naufragos” não consigam olhar para o lado e tomar consciência da razão porque cada um é (foi) usado (por quem!) para atraiçoar o semelhante de infortúnio! Porque continua a olhar o mundo, as coisas, os factos, apenas a partir do seu umbigo e não se dispõe a colocar-se “na pele do outro”? O porquê de tanta fúria contra os comunistas?!

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