A GALIZA COMO TAREFA – leais conselheiros – Ernesto V. Souza

Como galego de nação e até de costumes, quanto mais tempo passo pelo mundo fora, mais países do espaço latino percorro e mais leio em línguas romances, mais confirmo a minha sensação de que a ideia que se me apresenta das línguas arredor é renascentista, padrão, fechada e moderna. Mas a minha, se me deixo guiar pela intuição é outra: mais simples, mais antiga, mais intuitiva, mais aberta, francamente medieval ou anterior.

Para um galego, português e castelhano, são quase a mesma língua; de feito são a mesma língua galega com alguns enfeites, detalhes e complementos: mudando cá, trocando lá, exagerando ou suavizando acolá, a mesma base serve para produzir uma e outra. E no caso do catalão, provençal, italiano, francês é apenas pôr-se à tarefa.

Com umas poucas leituras, uns meses de imersão, interesse e uma mente aberta qualquer utente de uma língua romance medianamente alfabetizado pode entender e se fazer entender noutra com bastante sucesso. Para as operações do dia a dia, uns poucos desses dias avondam. Porém, não chega uma vida inteira para passar por falante ou escrevente qualificado numa outra variedade de uma mesma língua.

Em função da maior perfeição com que adiantemos numa outra língua, aumenta em não poucos casos a exigência, o detalhe com que se nos julga e com que se nos apanha e situa, imediatamente, logo, ou mais tarde em função da perfeição imitativa, fora. Porque as línguas não são apenas comunicação ou ferramentas de cultura: definem nação, classe, grupo social. Definem – por que definem? – dentros e foras.

Nesse sentido são curiosos os falsos amigos, os clichês e palavras da gíria na moda, os purismos, regionalismos, arcaísmos. Os elementos dos que carecemos e os ruídos que nos fazem suspeitos Mas, para mim, são conceitos divertidos: possibilidades das línguas apenas. Pois os mais deles não são fenômenos linguísticos (intrínsecos a língua e a comunicação), senão manifestações sociais que evidenciam o dissimulo, a adaptação, a mimetização, as exigências para estar IN ou ser aceite, ou a exibição de riqueza, academicismo, pureza, casticismo.

São esse sobre esforço aplicado, concreto e contrário à ferramenta universal, que implica o verdadeiro conhecimento social e autorizado de uma língua, o prestígio social da variante diafásica, diatópica, diastrática e histórica padronizada em cada Estado, e carimbada por cada sequência de grupos de poder.

A ideia de língua dos galegos é outra. Para nós, a língua não é uma questão fechada num padrão, curiosamente coincidente com fronteiras e classes. É uma bancada de trabalho, não um móvel de época e estilo concreto feito.

A língua é uma base universal, na que qualquer manifestação lógica, interessante, rendível, jeitosa, do conjunto africano-asiático-brasileiro-português é possível como galego. Uma base que com algumas adições, censuras ou repressões, com algum exagero fonético, sintático ou ortográfico, com modificação de escolhas léxicas deixa-se transformar noutras realizações dialetais mais simples ou mais complexas, em função do trabalho e de procurarmos essa perfeição autorizada, do arco romance.

Afinal os “falsos amigos” & al., sem dramatizarmos em guardinhas e aduaneiros, vêm sendo uns úteis e leais conselheiros, que descobrem (em muitos casos informando-nos de bases lexicais, camadas históricas e escolhas sociais) as ligações e origens e também as pistas e pegadas das tradições, dos costumes, das oposições e tensões antigas ou presentes, das marcações sociológicas e de classe, ou as evoluções diversas das sociedades.

 

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