Um adeus a Carlos Tenreiro- reflexões em torno da bolha cognitiva dos tempos de agora: Um adeus de porta aberta às ideias, por Júlio Marques Mota

Carlos Tenreiro

Um adeus de porta aberta às ideias

julio-marques-motaPor Júlio Marques Mota

em 27 de fevereiro de 2019

Quando se é velho, como é o meu caso, começa-se a ter necessidade de agarrar os fragmentos das memórias que nos restam sobre o passado, sobretudo aqueles fragmentos que de uma maneira ou de outra, foram relevantes na vida pessoal ou profissional de cada um de nós.

É neste quadro que se enquadra a minha relação pessoal e profissional para com o Carlos Tenreiro, meu antigo aluno, um dos mais brilhantes que conheci, meu antigo colega e meu amigo, num relacionamento que foi também expressão de uma noção consistente de coletivo na Universidade vivida por professores e alunos de então. Foi assim que cresceu a Faculdade de Economia, a partir de 1974, e tendo como base muito pouca coisa, reconheça‑se. Foram tempos difíceis esses, tempos de incomodidade pessoal e intelectual comuns a muitos professores e alunos de então. Uma incomodidade que, à luz do que se vê hoje, nos leva seriamente a dizer que eram todos de “esquerda” mesmo quando politicamente muitos deles não o eram. Tempos de solidariedade e de seriedade nas relações pessoais que davam aos cinco anos de licenciatura uma dimensão de aprendizagem e de maturidade que não me parece que hoje seja possível alcançar-se.

A relembrar isso mesmo, tenho presente uma minha ida com os estudantes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra a Poitiers, porque foi aí que conheci mais de perto o Carlos Tenreiro e uns tantos outros que com ele constituíam uma boa amostra do que era o quadro intelectual dos estudantes de então. Uma vivência que era um prazer. Desse grupo de 10 estudantes, creio eu, metade era selecionada por mim, alunos depois aprovados pelo Conselho Científico, e a outra metade era constituída por alunos propostos pelas estruturas associativas, um por cada ano. Dessa viagem ainda relembro alguns nomes como, por exemplo, os de João Paulo Moura e Daniel Ribeiro.

Do Carlos Tenreiro já disse o que tinha a dizer aquando da sua morte, mas hoje trata-se de um adeus de porta aberta às ideias, uma vez que estas não morrem…., a propósito da cerimónia que os seus filhos, Ana Elisa Marques Tenreiro e Pedro Nuno Marques Tenreiro, levarão a cabo com a deposição das cinzas no cemitério dos Olivais. É pois como adeus de porta aberta às ideias que edito uma série de textos sob o tema Um adeus a Carlos Tenreiro- reflexões em torno da bolha cognitiva dos tempos de agora. Uma série feita em torno de livros, e os livros foram um elemento relevante na permanência das minhas relações com o Carlos Tenreiro.

Hoje, para mim, trata-se pois de uma outra forma de adeus, de um adeus de porta aberta às ideias que nos permitam compreender a realidade dos difíceis tempos em que vivemos, de um adeus materializado então na publicação de uma pequena série de textos sobre os tempos de hoje, carregados de muito maus presságios, onde intelectuais nos falam sobre o vazio cognitivo que atravessa as sociedades modernas e talvez, também, as Universidades de hoje, apesar de por ela ter passado a crise, ou se calhar, por isso mesmo. Uma série de textos sobre dois livros, o de Adam Tooze, “Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World” e o de Ashoka Mody, “Eurotragedy: A Drama in Nine Acts”. Uma série em torno de dois livros que são verdadeiras pedradas no vazio cognitivo que se vive e se ensina na maioria da Universidades atuais.

A opção por este tipo de homenagem – falar de livros – deve-se ao facto de os nossos últimos contactos terem sido feitos à base de livros, de artigos e de histórias à base de livros. De livros, relembro o envio dos livros de Einstein, Oeuvres choisies, tome 5 : Science, éthique, philosophie; Oeuvres choisies, tome 6 : Ecrits politiques, com o comentário afetuoso e irónico do Carlos Tenreiro sobre o “custo da cultura”; de artigos ou brochuras relembro o seu envio do texto de uma COM de 1998 não facilmente encontrável, intitulada Crescimento e Emprego no quadro da UEM orientado para a Estabilidade ou o texto da OCDE sobre paraísos fiscais, intitulado Au-delà des apparences-l’utilisation des entités juridiques a des fins illicites, aparentemente desaparecido no site da OCDE – um dos melhores textos que conheço sobre Paraísos Fiscais ainda hoje; de histórias sobre livros relembro o que comovidamente me escreveu a propósito da minha carta aberta aos deputados intitulada   Carta aberta aos líderes parlamentares do nosso país, a propósito de um menino pobre que eu fui.

São pois factos como estes que me levam a fazer este tipo de despedida, relembrando também o profundo respeito que o Carlos Tenreiro tinha pelo outro em geral, o que lhe conferia um enormíssimo sentido de humanidade, um enorme sentido de viver em conjunto. Tive essa perceção na viagem a Poitiers, e mantive-a depois quando colega e quando já fora de Coimbra mantivemos relações de amizade. Uma característica que nunca é demais realçar, sobretudo nos tempos de agora, e que, diga-se de passagem, me faz lembrar o filósofo canadiano Charles Taylor para quem o grande défice das sociedades modernas é exatamente o défice de reconhecimento do outro, a argamassa ou cimento de qualquer sociedade que se preze. Este défice, hoje tentacular, vem coroar as práticas neoliberais desencadeadas, sobretudo, a partir do início dos anos de 1980, a tornarem real a tese apregoada por Margaret Thatcher de que não há sociedades, há indivíduos. Para a concretização desta visão neoliberal do mundo e para este tipo de relação entre as pessoas, foi relevante a transformação do Estado Providência numa dramática caricatura de si-próprio, minimizando-se o seu papel, mercantilizando-se as suas atividades e funções, de que temos como um dos exemplos as privatizações e a criação de múltiplos organismos reguladores privados, ditos independentes. Com esta transformação do Estado Providência teve-se como sua consequência, a redução do espaço económico a um espaço de um só vetor: somos todos concorrentes uns contra os outros.

O que podemos achar mais caricato nesta lógica de redução ou de anulação do social à minimização do custo económico é que esta mesma lógica encontrámo-la também já ao nível das nações e sobretudo da União Europeia. Daqui se pode retirar que quanto maior é o défice de reconhecimento do outro, maior é desagregação social, maior é a concorrência nacional, primeiro, internacional, depois, e maior é em seguida, o défice de reconhecimento das nações entre si.

Esta lógica parece já ser uma das razões não ditas que estão por detrás do Brexit. Como assinala Victor Hill quanto à concorrência no espaço europeu integrado:

“A firma Cadbury, tendo sido adquirida pela Kraft Heinz (NASDAQ:KHC) em 2010, transferiu a produção de chocolate para a Polónia em 2011 com um subsídio da UE. O fabrico da Ford (NYSE:F) Transit foi transferido para a Turquia em 2013 com um empréstimo da UE. A Jaguar Land Rover (JLR) concordou recentemente em construir uma nova fábrica na Eslováquia com um apoio da UE de 130 milhões de euros. O proprietário final da JLR, o Grupo Tata, liquidou a siderurgia de Port Talbot e degradou os direitos de pensão dos trabalhadores. A Peugeot (EPA:UG) também encerrou a fábrica de Ryton e transferiu a produção para a Eslováquia com subsídios da UE.

O novo veículo de combate Ajax do exército britânico vai ser construído em Espanha utilizando aço sueco a pedido da UE. A fábrica de produtos brancos da Indesit (BIT:IND) em Bodelwyddan, no País de Gales, foi deslocalizada para os Países Baixos com o apoio da UE. A Hoover (parte da Techtronic Industries (HK:0669013440)) transferiu a sua fábrica de Merthyr do Reino Unido para a República Checa com o apoio da UE.

Numerosos aeroportos britânicos, incluindo Heathrow, são propriedade da Ferrovial de Espanha (BME:FER), tal como a Scottish Power é propriedade de Iberdrola de Espanha (BME:IBE), porque a legislação fiscal espanhola favorece as empresas que adquirem no estrangeiro. A maioria dos autocarros de Londres é explorada por empresas espanholas e alemãs. A central nuclear de Hinkley Point C será construída pela EDF (EPA:EDF) francesa, maioritariamente detida pelo Governo francês, utilizando aço chinês barato que falhou em instalações nucleares semelhantes. Esta central franco-chinesa produzirá a eletricidade mais cara da história britânica.

Swindon foi outrora um grande produtor de máquinas de caminho-de-ferro e material circulante. Agora, a Bombardier (TSE:BBD) em Derby é o único fabricante de material circulante sediado no Reino Unido. No entanto, o governo do Reino Unido, sob as regras da UE, tem sido consistentemente obrigado a fazer encomendas a produtores da UE como a Alstom (EPA:ELO). Esse grande ícone do automóvel britânico, o Mini (adquirido quando a BMW (ETR:BMW) comprou a Rover Group em 1994), é agora construído na Holanda e na Áustria.”

Percebe-se, pois, a lógica da redução das sociedades a um somatório de indivíduos isolados, pois é por essa via que se instala depois a lógica redutora das identidades nacionais, contra a qual protestam os defensores do Leave no quadro do Brexit em nome da defesa do Estado-nação. Esta lógica de redução dos sujeitos e das nações, conduzida a esta nível torna-se uma lógica de aplicação circular que passa  da transformação dos sujeitos humanos a  fatores de produção apenas, para o conceito operacional de nações não como espaços culturalmente diferenciadas, mas apenas como zonas do espaço integrado onde os “fatores de produção” se deslocam livremente no sentido da minimização dos seus custos. A partir daqui aprofundam-se as desigualdades entre nações, agudiza-se o conflito de reconhecimento entre elas. Um dado estrutural do modelo neoliberal, portanto.

Do défice de reconhecimento entre indivíduos, e por tudo o que lhe está subjacente, temos a desagregação das sociedades e com esta desagregação temos o aparecimento dos populismos que oferecem aos indivíduos espaços de identificação e de reconhecimento que a Democracia de cariz neoliberal lhe retirou. A partir daqui podemos ter as alianças mais espúrias criadas pelos partidos populistas de que é um bom exemplo a atual aliança entre a Polónia e a Itália ou o que se passa com os países europeus da zona leste da Europa[1], em particular com o grupo dito de Visegrado. Paralelamente, a partir do défice de reconhecimento entre nações, temos desde conflitos tipo Brexit até à guerra comercial China-USA ou ainda aos conflitos à partida inesperados como o que surgiu agora entre a França e a Itália, com a França a colocar-se ao lado da Alemanha e com a Itália a resistir à linha austeritária imposta por Berlim, ou ainda outros que põem em perigo a Paz internacional. A instabilidade internacional que se vive hoje é de tudo isto um bom espelho, e esperemos que não venha a ser um remake de outros acontecimentos de má memória.

O reconhecimento do outro, e é este que constitui o cimento de um viver em sociedade, esfuma-se assim no espaço preço-custo da produção que a ideologia neoliberal tem sistematicamente vindo a impor, espaço onde o trabalho é a variável de ajustamento no disfuncionamento consentido, e talvez também pretendido, dos mercados. É deste disfuncionamento que os dois livros citados nos falam, e muito.

Neste espaço redutor do que é social deixa de haver lugar para o reconhecimento do outro, para o viver em conjunto, uma vez que somos todos concorrentes uns contra os outros. Esta evolução é-nos sintetizada por uma imagem bem sugestiva apresentada pelo republicano Kevin Phillips ao analisar criticamente a vaga neoliberal. Segundo este autor, o capitalismo moderno na sua ânsia de desregulação incentiva e premeia a prática de todos os pecados mortais, com exceção de um, a avareza. Não há, pois, espaço para o sentimento de se estar e viver em conjunto. Logicamente assim é neste contexto, diz-nos Kevin Phillips, que o neoliberalismo considera o Estado como uma coisa tão boa, tão boa que o melhor que há a fazer com ele é não o utilizar, é poupá-lo!

O reconhecimento do outro como pedra filosofal, como referência do viver em conjunto, do viver com os outros, é uma caraterística que o Carlos Tenreiro tão genuinamente praticou e que a confirmam outros, seus colegas e amigos como, por exemplo, a Margarida Mano ou o seu colega de estudo Manuel Queiroz que sobre o Carlos Tenreiro dizem:

“A memória do Carlos, que me invade amiúde, teima a fazer do passado presente. Da célebre viagem a Poitiers, onde nos conhecemos, à partilha da leccionação de “Política Económica”, aos repetidos encontros em Bruxelas, aos telefonemas obrigatórios em junho e dezembro … tudo alimenta memórias do colega e amigo, muitas vezes mestre descontraído, que fez de mim um pouco do que sou … e de quem tenho, e terei, muitas saudades… de porta aberta.” (Margarida Mano)

Recordo com saudade um homem bom e excelente colega e Professor. Recordo a sua maneira simples e despretensiosa, até no trajar, com que expunha as matérias que dominava bem e o modo simples de se relacionar com os outros.” (Manuel Queiroz)

Uma característica que o colocou de costas voltadas para esta redução do espaço social e económico e nunca é demais lembrá-lo neste meu adeus.

Um adeus de porta aberta às ideias, publicando textos sobre livros foi, pois, a minha opção. Os textos de referência acima citados, assim como as recensões que anexo e que constituem a série, são todos eles textos de uma grande inquietação intelectual, de gente que, tal como dantes, tal como com ele e comigo, tal como com muitos outros, é irrelevante se se é de direita ou de esquerda, porque o que é aqui relevante é a seriedade com que nos ensinam a ler a realidade dos difíceis tempos em que vivemos.

A série será constituída pelos seguintes textos:

  1. Matthew Soener, Uma década turbulenta
  2. Andrew Stuttaford, Uma marcha de loucos
  3. A tragédia do euro ou a incrível bolha cognitiva em que a Europa se fechou: entrevista exclusiva a Ashoka Mody conduzida por Nicolas Goetzmann
  4. Jonathan Story, Professor Emeritus, INSEAD, A América e o Mundo: O Crash de 2008 e a Eurotragédia.

 

Nota

[1] Para uma análise do que se passa a Leste, veja-se: Joachim Becker, Neo-nationalism in the EU –social and economic policy platforms and actions, editado por AK-Europe, Policy Paper, February 2019, Europe General.

1 Comment

  1. Durante muito tempo deixou-se em roda livre uma direita que usando todos os truques de manipulação da informação demonisando os comunistas por tudo de mau que a humanidade já tinha vivido e apagando, branqueando os autores e as causas das guerras mundiais. A ileteracia funcional e a ignorância à solta na maioria da classe política aliada a vontade de dinheiro fácil que a Europa e os EUA “ofereciam” e à omissão de muitos levou-nos ao beco em que hoje estamos!

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