CARTA DE BRAGA – “da dignidade e de preços” por António Oliveira

Lev Tolstoi deixou escrito no texto ‘Patriotismo e Governo’, datado de 1900 e agora reeditado e integrado em ‘Os últimos escritos’.

Um governo no sentido mais amplo, que inclui em si os capitalistas e a imprensa, não é mais do que uma organização em que a maior parte das pessoas fica sob o poder de uma pequena parte; e essa mesma parte menor, submete-se ao poder de outra ainda mais pequena; e esta a outra ainda mais pequena etc., chegando finalmente a um pequeno número de pessoas ou a só uma que, por meio da violência obtém o poder sobre todas as outras’.

Uma afirmação a ter hoje em conta por alguém (Kant?) ter dito um dia que o mundo se divide entre coisas com valor monetário e outras com dignidade!

Talvez seja uma visão redutora mas, estes tempos parecem acentuar cada vez mais a já enorme diferença, mesmo confrontação, entre dignidade e mercadoria.

O homem tem valor por si próprio e, por isso mesmo, não devia ter preço. Ao reduzirem-lhe ou retirarem essa qualidade, impondo-lhe os avaros condicionalismos do mercado, acabam obviamente por lhe agredir a dignidade, pela incompatibilidade evidente entre dignidade e preço.

Na vida de todos os dias, desde a saída de casa para procurar ou ir a caminho do trabalho, de um sítio para viver, de poder assistir ou ver algo, para estudar ou esmolar, encontram-se e cruzam-se barreiras, burocracias, incompetências, perguntas, receios e até desprezos, a maioria das vezes pela ideia de custos, ligada quase sempre a pré-conceitos sobre aparências e rendimentos.

Talvez, assumo mesmo este talvez, sejam as experiências das trocas comerciais – as que nos levam a diário da tenda ou da mercearia ao multibanco – a impor tais reservas, por se saberem muitas trocas ligadas a práticas frequentes longe de direitos estatuídos e estabelecidos pela ética, pela lei e pela vida em sociedade, mormente na saúde, na habitação e na escolarização.

Tudo isto se passa num tempo em que a inteligência humana nos põe à disposição maravilhas e condições tecnológicas cada vez mais avançadas mas, por outro lado, abre questões éticas e sociais com consequências ainda não totalmente qualificáveis nem quantificáveis.

As barreiras impostas pelo uso e abuso das tecnologias, assumindo muitas vezes um carácter quase dogmático, conduzem a arredamentos sociais, levando cada vez mais gente a viver isolada e, uma grande parte dela, de maior idade.

Muitos ligam este facto ao desapego familiar, mas as pressões de um capitalismo e consumismo ferozes, mais as condições de trabalho que elas impõem, conseguem que, nos países ocidentais, já se considerem o anciãos ‘pesados’ e se comecem também a arredar ou a desviar dos núcleos da vida e da atenção familiares.

Núcleos de vida já com enormes problemas, em cidades onde a habitação faz parte de um negócio globalizado, acartando ansiedade e insegurança às classes médias, aos mais velhos e até aos mais jovens, forçados a abalar dos seus lugares de sempre ou manterem-se muito mais tempo na casa paterna, pelos preços elevadíssimos do aluguer.

Problemas potenciados por vermos e sabermos as cidades agora completamente voltadas para a produção, com as pessoas a agir como formigas a tapar desoras para voltar a produzir no dia seguinte, depois de terem pespegado a vida pessoal nas redes sociais para outras formigas não se sentirem isoladas, sabendo-se também sozinhas.

Pessoas características – vemo-las nas ruas, nos transportes e no todo diário desta era digital – já completamente adaptadas e adoptadas pela submissão psicológica àqueles formigueiros, os ‘não lugares’ de vinculação e encontros virtuais.

Tudo isto a propósito da incompatibilidade entre preço e dignidade, a dignidade que foi e continua a ser um dos maiores motores e motivadores da história do homem!

E lá, nessa História, conta-se e mostram-se exemplos como Ghandi ou Mandela, para nunca nos esquecermos do fracasso de quem os tentou aviltar, despojando-os da dignidade.

Ainda sobre este propósito, Saint Exupéry também deixou escrito no belíssimo ‘Piloto de guerra’.

É à Sociedade, e não ao temperamento individual, que cabe assegurar a equidade no compartilhamento das provisões. A dignidade do indivíduo exige que ele não seja reduzido à vassalagem pelas larguezas de outrem. Seria paradoxal ver os possuidores reivindicar, além da posse de seus bens, a gratidão daqueles que nada possuem

Apetece voltar a Kant, a quem um dia os alunos perguntaram para onde iria a Alemanha e ele respondeu apenas ‘depende do que façam vocês!

Não será de aproveitarmos também?

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

 

 

 

 

2 Comments

  1. Mercado a par com a mística do PIB, deficit e crescimento é incompatível com a dignidade, a ética e demais valores morais.

  2. “Está tudo nas nossas mãos”, AInda acredito, mas…como lutar com esses Golias sociais? Ainda iremos a tempo de o bater por David?Temo o futuro…Vamos fazendo, no nosso eixo dee acção, o que pudermos…Beijo para ti…

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