Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
14. Uma retrospetiva: o que significou realmente “a partilha de riscos” na zona euro
Por Marcello Minenna
Publicado por Financial Times, Alphaville, em 11 de outubro de 2018 (texto original aqui)
O presente texto é de Marcello Minenna, diretor de Análise Quantitativa e Inovação Financeira da Consob, a entidade italiana reguladora dos valores mobiliários. Os pontos de vista nele expressos são as opiniões pessoais do autor e não refletem necessariamente a opinião de Consob.
Um debate recorrente desde a crise do euro tem sido o de saber se os instrumentos de estabilidade devem partilhar os riscos entre os Estados-Membros ou, pelo contrário, segregar os riscos dentro de cada país. Enquanto a zona euro discute – e adia – medidas genuínas de partilha de riscos, como o seguro de depósitos europeu, é importante olhar para trás e ver quando é que os riscos foram partilhados e quem é que realmente beneficiou com essa partilha.
Partilha de riscos quando necessário
A narrativa comum é que os programas de resgate têm ajudado países com profundos problemas a evitar a bancarrota soberana ou a falência generalizada de bancos. Mas, ao evitar resultados extremos, esses programas também protegeram os bancos dos países centrais – Alemanha e França, em particular – que haviam acumulado enormes exposições à periferia antes da crise. Na época, a partilha de riscos (ainda que desagradável) era a melhor opção disponível para os governos dos países centrais. Ela salvou-os de intervir (à custa dos seus contribuintes) para sustentar os seus próprios sistemas bancários nacionais.
A “partilha de riscos”, desde a crise, foi sempre um “duplo resgate”. Um resgate aos bancos da periferia, que por sua vez ofereceu outro resgate aos bancos do núcleo central da zona euro. Segundo o Banco de Pagamentos Internacionais (BIS), em 2010 a exposição total das instituições financeiras francesas e alemãs à Grécia e aos seus bancos era de 120 mil milhões de dólares, mais de dez vezes maior que a exposição dos bancos italianos e espanhóis. Em maio desse ano, os governos da zona euro começaram a desembolsar 52,9 mil milhões de euros de empréstimos bilaterais à Grécia; a parte da França nesta medida de partilha de riscos apenas excedeu ligeiramente a da Itália. E em meados de 2011, os bancos franceses e (menos abruptamente) os bancos alemães tinham reduzido a sua própria exposição à Grécia e aos bancos gregos em 35 mil milhões de dólares.

Depois, foi a vez da Irlanda: em setembro de 2010, os créditos dos bancos alemães e franceses sobre as contrapartes na Irlanda ultrapassavam os 200 mil milhões de dólares. Os dos investidores espanhóis e italianos eram inferiores a 30 mil milhões de dólares. Levou-se a cabo um resgate com o apoio financeiro partilhado dos países europeus. Os bancos alemães reduziram a sua exposição privada em 58,7 mil milhões de dólares até 2011. Novamente, a participação da Alemanha no plano de resgate foi muito menor.

Poucos meses depois, o resgate de Portugal mostra uma história semelhante. (Note-se que os investidores espanhóis desde 2014 aumentaram acentuadamente a sua exposição a Portugal, que hoje se tornou essencialmente a colónia financeira do seu vizinho).

O mesmo se passa em Espanha um pouco mais tarde. Em caso de incumprimento por parte dos credores espanhóis, os bancos alemães e franceses – expostos a 140 mil milhões de dólares e 128 mil milhões de dólares, respetivamente – teriam sofrido grandes prejuízos. Não surpreendentemente, a Moody’s tinha revisto as perspetivas de notação de risco de várias instituições alemãs de estáveis para negativas. Em dezembro de 2012, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) disponibilizou 41 mil milhões de euros para a recapitalização indireta dos bancos espanhóis: fundos que, em parte, serviram para reembolsar às contrapartes alemãs os empréstimos generosamente concedidos antes da crise. Entretanto, os países com uma exposição marginal ao setor financeiro espanhol foram chamados a desempenhar o seu papel: uma conta de 14,4 mil milhões de euros para a Itália, por exemplo.

Segregação de risco como regra
Durante os anos de emergência da crise, os países da zona euro encontraram formas seletivas de partilhar o risco. Mas desde então – já que os bancos principais dos países centrais reduziram a sua exposição à periferia – as principais decisões da burocracia do euro para combater a crise foram a favor da segregação de riscos. A lista inclui:
- Disposições relativas à repartição dos encargos e ao resgate interno;
- Pressionar os bancos a alienar créditos de cobrança duvidosa (com as consequentes vendas ao desbarato a fundos abutres e imparidades elevadas para os bancos);
- O adiamento sistemático do sistema pan-europeu de garantia de depósitos (que deveria ter sido o terceiro pilar da união bancária), bem como propostas para o condicionar à redução do risco;
- Pressão contínua sobre os sistemas bancários da periferia que, devido a restrições apertadas na qualidade e provisionamento dos ativos, mantêm o crédito ao sector privado não financeiro em níveis moderados;
- Orientações recentes sobre o provisionamento integral dos créditos de cobrança duvidosa dos novos bancos;
- Discussão sobre a ponderação de risco das exposições soberanas dos bancos e sobre a introdução de limites de concentração para essas mesmas exposições;
- Propostas de introdução de mecanismos automáticos para a gestão de crises de dívida soberana;
- A tentativa de transformar o MEE num fundo monetário europeu com o novo papel de fiscalizador das políticas orçamentais nacionais.
Mas as duas intervenções que mais contribuíram para a segregação de risco na periferia foram as Operações de Refinanciamento de Longo Prazo (LTROs) e as do programa Quantitative Easing (QE).
Através das Operações de Refinanciamento de Longo Prazo, o BCE emprestou ao sistema bancário mais de €1 milhão de milhões sob a forma de reservas do banco central, que apenas podem ser utilizadas para liquidar responsabilidades interbancárias. A ideia era ajudar os bancos da periferia a fazer face à forte contração do crédito interbancário. Foi o que fizeram. No entanto, uma grande parte do que eles pediram emprestado absorveu o excesso de oferta de dívida pública periférica que os bancos franceses e alemães estavam a vender e liquidou os passivos comerciais devidos a esses mesmos bancos. O outro uso principal foi para responder ao colapso dos depósitos internos, que estavam a partir para destinos do norte da zona do euro.
Ninguém questiona que o QE assegurou uma procura estável e massiva por títulos do governo. No entanto, também criou anomalias importantes (ainda espelhadas pelos rendimentos negativos dos títulos do governo alemão de curto e médio prazo) e reacendeu a fuga de capitais da periferia para os países centrais. A alocação das compras de títulos favoreceu países (como a Alemanha e a França) com uma deflação insignificante à custa de outros (como Espanha e Itália) muito mais afetados pela queda no nível geral de preços.
Ao mesmo tempo, apenas uma parte marginal dos riscos inerentes às obrigações adquiridas é partilhada por todos os bancos centrais participantes no sistema do euro. Com efeito, a grande maioria das compras de obrigações é efetuada diretamente pelos bancos centrais nacionais, com fundos obtidos junto do BCE. Cada banco central nacional permanece exposto ao risco de insolvência da sua própria administração nacional.
O ponto-chave para ambos os programas: a exposição dos países centrais à periferia foi drasticamente reduzida.
Medição da segregação de risco
A dimensão de toda esta desalavancagem pode ser medida utilizando dados do Banco Internacional de Pagamentos sobre a posição consolidada de bancos estrangeiros face a contrapartes residentes em Itália, Grécia, Espanha, Portugal e Irlanda.
Após terem acumulado um crédito avultado sobre a periferia no período 2000-2008, estes bancos desmantelaram 64 por cento das suas exposições na década seguinte. De facto, no seu pico (junho de 2008), a exposição total do sistema bancário franco-alemão à periferia excedia $1,9 milhões de milhões; em junho de 2012 já tinha caído para $800 mil milhões e, nos cinco anos seguintes, diminuiu ainda mais, atingindo $680 mil milhões no final de 2017.

Em termos de exposições diretas, nas vésperas da crise, a Alemanha era líder em Espanha (315,5 mil milhões de dólares), na Irlanda (240,7 mil milhões de dólares) e em Portugal (52 mil milhões de dólares), enquanto a França era líder em Itália (553,4 mil milhões de dólares) e na Grécia (86,1 mil milhões de dólares). Mas, na realidade, uma boa parte do investimento francês no sul da Europa estava a canalizar poupanças alemãs.
O desinvestimento colossal da periferia – mais de US$ 1,2 milhão de milhões – evoca uma comparação com os dados do QE: em julho de 2018, os países periféricos (excluindo a Grécia) eram beneficiários de compras de títulos por € 667 mil milhões de euros, pouco mais da metade do desinvestimento realizado pelos bancos dos países centrais.
Como poderia ser uma verdadeira e consistente partilha de riscos
Desde a crise, as instituições europeias têm dado sistematicamente prioridade à segregação de riscos dentro dos países periféricos. A estratégia destinava-se oficialmente a prevenir o contágio entre países. Na prática, a segregação tornou os países mais vulneráveis ainda menos estáveis. As exceções a essa regra têm sido apresentadas como assistência extraordinária em favor dos Estados periféricos individuais. Na prática, têm sido “resgates duplos”: o resgate de um país periférico específico protegeu bancos privados em países centrais que tinham construído fortes exposições à periferia nos anos anteriores à crise. E apoiando todos os fundos de resgate europeus, o “cavaleiro branco”, estavam os governos membros, o que significa que muitos governos ofereciam programas de ajuda financeira a países aos quais o seu próprio setor privado estava fracamente exposto.
Estes episódios de partilha seletiva de riscos não foram suficientes para tornar a zona euro uma zona segura e à prova da crise. Pelo contrário, quando o BCE está a considerar o fim da flexibilização quantitativa, ainda vemos incertezas de mercado sobre a compactidade da União Económica e Monetária.
O único antídoto para este clima de desconfiança mútua é integrar autenticamente nas políticas europeias uma verdadeira a partilha de riscos, tanto no sector privado como no sector público. Daí a importância de completar a união bancária com o sistema europeu de garantia de depósitos e estar aberto a propostas viáveis para a mutualização dos riscos soberanos, como a que desenvolvi com Dosi, Roventini e Violi, onde considerámos uma garantia supranacional do Mecanismo Europeu de Estabilidade sobre as dívidas públicas de todos os Estados-Membros. Esta garantia, paga em condições de mercado justas e condicionada a um conjunto de restrições para desencorajar o risco moral, seria uma solução equilibrada para restaurar a credibilidade de uma periferia devastada.
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O autor: Marcello Minenna é Chefe da Unidade de Análise Quantitativa em Consob (a Comissão de Valores Mobiliários de Itália). Lecionou Finança Quantitativa na Universidade de Bocconi e na Escola de Pós-Graduação de Matemática Financeira em Londres. Escreve regularmente no The Wall Street Journal e no Corriere della Sera, e é membro de um grupo de consultores que apoia a análise económica do maior sindicato italiano, o CGIL.