Sobre as razões que estão na base dos focos de tensão entre a China e os Estados Unidos – 3. Como deve o Ocidente encarar a ascensão da China. Por Martin Wolf

Tensão EUA China 0

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

3. Como deve o Ocidente encarar a ascensão da China 

Martin Wolf 2 por Martin Wolf

Publicado por FTimes em 15 de maio de 2018 (ver texto aqui)

e republicado por Gonzallo Rafo (ver aqui)

 

Os países desenvolvidos estão coxos pela sua incapacidade em tratar os seus próprios problemas.

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Os países avançados de hoje, dominados pelo peso dos EUA e da Europa, representam uma parcela preponderante da economia global. Os 14 por cento da humanidade que vive nos países avançados gera 60 por cento da produção mundial a preços de mercado e 41 por cento se calculados à paridade do poder de compra.

Isto não durará sempre: ainda muito recentemente, por volta de 1990, os países avançados geravam 78 por cento do PIB mundial a preços de mercado e 64 por cento se calculado à paridade do poder de compra. O Ocidente tem de aceitar o seu declínio relativo ou envolver-se numa luta manifestamente imoral e provavelmente ruinosa para o evitar. Esta é a verdade mais importante da nossa época.

Por esta razão, sobretudo, os ocidentais precisam antes de tudo analisar de que modo as potências em ascensão veem o mundo. É provável que a China, em particular, venha a emergir como de longe a maior economia do mundo. Precisamos de analisar e avaliar os pontos de vista daqueles que a dirigem. Há duas semanas, apresentei o que ouvi em reuniões de alto nível em Pequim. Agora, vou avaliar o que ouvi, sobre esse meu relato.

A China precisa de um governo central forte

Um facto digno de nota era a opinião dos nossos interlocutores de que a estabilidade política chinesa é frágil. A história sugere que eles têm razão. Os últimos dois séculos viram muitas catástrofes provocadas pelo homem, desde a rebelião de Taiping do século XIX até ao Grande Salto em Frente e a revolução cultural.

É muito fácil, portanto, entender a razão pela qual os membros da elite parecem convencidos de que a renovação do Partido Comunista, sob o controle de Xi Jinping, é essencial. Devemos aqui recordar que as transformações da modernização e da urbanização que atravessa atualmente a China, desestabilizou a Europa nos séculos XIX e no início do século XX.

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No entanto, este aperto no controlo pode descarrilar a economia ou gerar uma explosão política num país cuja população é cada vez mais instruída, em que as pessoas têm mais vastas redes de comunicação e de interligação, e onde há cada vez mais gente a viver prosperamente. A China deseja ser uma Singapura em ponto grande, muito grande. Pode sê-lo?

Os modelos ocidentais estão desacreditados

A elite chinesa tem razão, eles estão desacreditados, infelizmente. A visão dominante entre a restante população costumava ser que o Ocidente era intervencionista, egoísta e hipócrita, mas competente. Depois da crise financeira e do aparecimento do populismo, a capacidade do Ocidente para gerir os seus sistemas económicos e políticos tem começado a ser posta em dúvida. Para aqueles que creem na democracia e na economia de mercado como expressões de liberdade individual, essas incapacidades são angustiantes. Estas falhas só podem ser ultrapassadas por reformas. Infelizmente, o que o Ocidente está a obter, em vez disso, é uma raiva que o torna incapaz de ultrapassar as suas incapacidades.

 

A China não quer dirigir o mundo

Sobre esta questão, nós podemos expressar dúvidas. Pela primeira vez, a China transformar-se-á numa grande potência no quadro de uma civilização global. Como todos as grandes potências antes dela, a China quererá certamente reorganizar a ordem global e o comportamento de outros Estados (e organizações privadas, também) a seu gosto.

A China também tem muitos vizinhos, muitos deles historicamente aliados dos EUA. Já está a tentar expandir a sua influência, nomeadamente no mar do Sul da China. A China também está a tentar influenciar o comportamento, não menos importante de todos os estudantes chineses, no exterior. Tudo isso representa a inevitável extensão do poder chinês no exterior.

 

A China está sob um ataque conduzido pelos Estados Unidos

A elite chinesa tem razão em pensar que os americanos consideram cada vez mais a China como um rival, até mesmo como uma ameaça. Os americanos, por sua vez, argumentam que a China os está a atacar, alargando o seu poder militar e enfraquecendo os seus aliados, nomeadamente o Japão.

A verdade é que o poder é inevitavelmente um jogo de soma zero. A ascensão do poder chinês será vista como uma ameaça pelos EUA, quaisquer que possam ser as intenções dos chineses.

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Além disso, muitos americanos, e certamente muitos ocidentais, não aceitam realmente as posições chinesas quanto ao Tibete e à Formosa, desconfiam das intenções de China e ressentem-se com o seu sucesso. Uma tal desconfiança mútua abre a chamada armadilha de Tucídides de suspeita entre o poder dominante atual e as potências em ascensão.

Os objetivos dos Estados Unidos nas negociações comerciais são incompreensíveis

A China tem razão: estes objetivos são ridículos. Mas dentro deles há questões genuinamente importantes, nomeadamente a propriedade intelectual.

A China sobreviverá a estes ataques

Isto é quase que seguramente verdadeiro. A menos que os EUA quebrem todos os seus compromissos e procurem impor um embargo económico à China, a fricção atual não travará o progresso chinês, embora possa retardá-lo. Uma ameaça maior seria a reação interna da China a um ambiente externo muito mais hostil. A resposta provável seria ainda um controlo político e económico mais rigoroso, em vez da necessária mudança para uma economia mais orientada para o mercado, mais centrada no sector privado e mais controlada pelo consumo.

Este será um ano de teste

E assim será. Na verdade, será um século de teste. A visão correta que o Ocidente deve adotar é que a China é certamente um concorrente importante. A sua ascensão vai criar muitos dilemas para o Ocidente e, especialmente, para os EUA. Mas a China é também um parceiro essencial para garantir um mundo razoavelmente cooperativo, estável, próspero e pacífico.

O Ocidente precisa pensar muito mais fortemente sobre como um tal mundo deve funcionar. A opinião da administração dos EUA — que o exercício unilateral do poder dos EUA é tudo o que é necessário — fracassará. Não vai gerir o bem comum mundial dessa forma, ainda que a Administração Trump não se preocupe com isso, de modo nenhum. Também não vai conseguir estabilidade: se duvidar disso, olhe então para o caldeirão em que o Médio Oriente se tornou após diversas intervenções sem fim.

É essencial que os ocidentais percebam que o nosso maior inimigo é a nossa incapacidade em gerir bem os nossos próprios países. Entretanto, o único futuro para um mundo interdependente tem de estar baseado no respeito mútuo e na cooperação multilateral. Isto não significa aceitar cada exigência chinesa como legítima. Longe disso. A resistência assente em princípios é essencial. Mas nós estamos a mover-nos de um passado dominado pelo Ocidente para um futuro pós ocidental. Temos que fazer o melhor dentro dessa nova realidade.

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