Ano de 2019, ano de eleições europeias. Parte II – Imagens soltas de uma União Europeia em decomposição a partir de alguns dos seus Estados membros. 8º Texto – Alemanha: Um texto final, um texto de síntese. Parte III

Regimes Monetários Internacionais e o Modelo Alemão – 3ª Parte

(Fritz W. Scharpf, 18 de Fevereiro de 2018)

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Uma produção de qualidade e diversificada

Na Alemanha, o declínio relativo da produção e do emprego no sector industrial teve início apenas depois de 1970 – mais tarde do que noutras economias industriais (ver figura 3). E embora o volume de produção tenha evidentemente continuado a aumentar, a taxa de crescimento após 1970 foi inferior à da França e da Itália, o que é atribuído principalmente ao impacto da política de estabilização rigorosa do Bundesbank no sector interno da economia. Aqui, as altas taxas de juros reais tinham restringido a procura do consumidor, o investimento e o emprego (Schettkat e Sun 2009), enquanto a sobreavaliação da taxa de câmbio nominal tinha aumentado a competitividade dos preços das importações no mercado interno (Figura 7).

Devido a essas restrições internas e à posição do governo em continuar a defender o livre comércio, a “fuga para as exportações” foi, talvez, pré-ordenada na tradição industrial alemã. De qualquer forma, o desempenho das exportações parece não ter sido notavelmente afetado pela mudança radical no regime cambial internacional de Bretton Woods para o regime de câmbios flutuantes desordenados (Figura 8). Começando no nível um pouco mais alto alcançado no final da década de 1960, a participação das exportações no PIB aumentou ao longo da década de 1970, aproximadamente em paralelo com as exportações de outras grandes economias europeias cujas moedas se tinham desvalorizado significativamente em relação ao marco alemão e cujos custos do trabalho na indústria manufatureira eram significativamente menores (Vitols 1997).

Inicialmente, esta resiliência das exportações alemãs beneficiou do facto de, ao contrário da Alemanha, a primeira resposta à crise do preço do petróleo de 1973-1974 ter sido o relançamento monetário e orçamental na maioria dos países industrializados. Outro fator foi a disposição das empresas em defender os seus mercados de exportação, atenuando o impacto do aumento das taxas de câmbio sobre os preços de exportação, em detrimento dos lucros e dos investimentos (Scharpf 1991, 131). Ao mesmo tempo, porém, a indústria exportadora alemã também começou a ajustar-se à perda de competitividade pelos preços, “movendo-se para cima” [em termos de qualidade e de produtos].

Este movimento foi facilitado pelas vantagens comparativas de uma forte tradição de engenharia, de uma mão-de-obra industrial altamente qualificada, de relações laborais geralmente cooperativas ao nível da empresa [1] e da existência de uma grande parte de pequenas e médias empresas flexíveis e orientadas para a exportação. Ao separar a negociação salarial propensa a conflitos ao nível dos sindicatos e das organizações de empregadores da co-determinação dentro das empresas, as relações industriais alemãs facilitaram as empresas relativamente industriais na estrutura económica (Bagnasco e Sabel 1995; Söllner 2014). Nestas condições, as empresas foram capazes de procurar ou defender os mercados externos, especializando-se em linhas de produtos menos sensíveis aos preços em bens de investimento e bens de consumo duradouros de alta qualidade. Com o benefício adicional da flexibilidade assistida por computador nos processos de fabricação, a indústria alemã passou da produção em massa “Fordista” para um perfil de “produção deversificada e de qualidade” (Sorge and Streeck 1988; Streeck 1991; Sorge and Streeck 2016), que permitiu que a indústria de exportação alemã de salários elevados se mantivesse até ao final dos anos 1980, não apenas na Europa e nos Estados Unidos, mas também em competição com concorrentes do Sudeste Asiático de salários mais baixos e cada vez mais especializados (Streeck 1997a).

Ao mesmo tempo, os governos fizeram o seu melhor para modernizar e efetivar as políticas que tenderiam a estabilizar o modelo de crescimento baseado na indústria. Enquanto a Alemanha não tinha uma política industrial coerente ao estilo francês, a política de investigação e tecnologia a nível nacional começou a concentrar-se na inovação de produtos e de processos no setor industrial (Hauff e Scharpf 1975), os governos ao nível dos Land usaram o estabelecimento de Fachhochschulen (escolas de engenharia abaixo do nível universitário) para fornecer capacidades académicas de investigação e de desenvolvimento orientadas para a prática, concentrando-se nas oportunidades e necessidades específicas de pequenas e médias empresas em “distritos industriais” especializados (Piore e Sabel 1984; Allen 1989; Herrigel 1993). Embora a ajuda financeira do Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW) fosse importante neste contexto, programas eficazes foram geralmente designados e implementados por redes “meso-corporativas” de governos locais, associações empresariais, bancos regionais, sindicatos e instituições de I&D e de formação financiadas pelo Estado (Hull e Hjern 1982; Allen 1990; Vitols 1997; Herrigel 2000). Com efeito, as políticas de infraestruturas públicas e as redes de políticas de cooperação a nível regional e local constituíam uma espécie de política industrial que apoiava a especialização da indústria germânica tanto nos segmentos menos sensíveis aos preços nos mercados de bens de investimento e de bens de consumo duradouros como em termos de “diversificação da produção e de qualidade” (Matzner e Streeck 1991; Streeck 1991; Streeck 1991). Em conjunto, estes esforços ajudaram a manter a viabilidade internacional da indústria alemã apesar de ter a sua moeda sobrevalorizada. E o declínio constante do emprego foi de facto interrompido na segunda metade da década de 1980 (Figura 9).

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Mas, embora todos os esforços se concentrassem na defesa do sector industrial, o seu sucesso relativo não conseguiu restabelecer o pleno emprego na economia. Em vez disso, as inovações na tecnologia na produção e na organização do trabalho e os requisitos mais elevados de competências na diversificação da produção e com qualidade tiveram o efeito de reduzir as oportunidades de emprego para os trabalhadores pouco qualificados na indústria alemã – e o aumento do desemprego a longo prazo (“estrutural”)[2] – aponta para o facto de estas perdas na indústria não terem sido compensadas por um aumento do emprego noutros locais. E embora o emprego global também tenha diminuído em França e na Itália durante os anos 70 e 80, houve outros países europeus cujo desempenho em termos de emprego foi muito melhor (Figura 10).

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Como se verá, os fracos resultados da Alemanha em matéria de emprego devem-se, em grande medida, a condicionalismos específicos no sector dos serviços.

Como é que o Estado-Providência está a limitar o crescimento da economia de serviços

De acordo com as grandes teorias da sociedade pós-industrial (Bell 1973; Fourastié 1949), a mudança secular do emprego da agricultura para a indústria deveria continuar com o declínio do emprego industrial, que poderá ser compensado pela ascensão da economia de serviços. Durante algum tempo, a Alemanha pareceu ser um caso desviante, pois o emprego industrial tinha-se mantido até ao final da década de 1960, quando já estava em declínio noutros lugares. Depois de 1970, porém, ficou claro que a Alemanha tinha sido apenas um país atrasado na trajetória geral da desindustrialização. E, embora as taxas de emprego na indústria alemã continuassem a ser mais elevadas do que em qualquer outro lugar, já não eram suficientes para estabilizar o emprego em geral.

No entanto, embora o declínio da indústria tenha prosseguido aproximadamente ao mesmo ritmo nas economias industriais avançadas, tal não foi, de modo algum, o caso do aumento previsto da economia de serviços. Embora o emprego de serviços tenha aumentado em todos os lugares, as trajetórias diferiram drasticamente entre as economias capitalistas avançadas – e aqui a Alemanha estava entre os extremamente atrasados (Figura 11).

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Na economia política comparativa dos diferentes Estado Providência capitalistas, a divergência do emprego no setor dos serviços é explicada pelas diferenças estruturais entre o Estado Providência dito de tipo escandinavo (ou “Social Democrata”), os anglo-americanos (ou “Liberais”) e os continentais (ou “Bismarckianos”) (Scharpf 1986; Flora 1986; Esping-Andersen 1990; Alber e Gilbert 2010).

No Estado Providência social liberal, a baixa carga tributária e a distribuição desigual de rendimento estão associadas ao crescimento de serviços privados e financiados pelo setor privado – sugerindo que as famílias de alta rendimento estão a criar empregos para os trabalhadores de serviços de baixos salários. Nos estados de bem-estar social escandinavos de alta tributação, no outro extremo, os serviços prestados pelo Estado em educação, cuidados de saúde e serviços sociais para os jovens, para as pessoas doentes e para as pessoas mais velhas expandiram-se rapidamente depois de 1960.

Em contrapartida, os Estados Providência “Bismarckianos”, incluindo a Alemanha, ainda estavam vinculados ao seu modelo original de segurança social baseada no trabalho, com transferências de dinheiro relativamente generosas e de estatuto – mantendo as transferências de dinheiro para o “ganha-pão masculino” e a sua família em casos de doença, invalidez e desemprego, e na reforma. Ao mesmo tempo, os serviços essenciais de cuidados aos jovens, doentes e idosos ainda eram prestados por mães, esposas e filhas no interior da família. Assim, o emprego nos serviços sociais financiados pelo Estado era tão baixo, ou mesmo inferior, ao dos Estados Unidos e do Reino Unido (Alber 1986; Scharpf 1986; Scharpf e Schmidt 2000; Palier e Martin 2008; Palier 2010).

Mas a relativa generosidade das transferências sociais e das pensões pressupunha um emprego a longo prazo e a tempo inteiro. Assim, o sistema foi mal concebido para a existência de uma situação de declínio do emprego normal e para um aumento da instabilidade no emprego, para a insegurança do trabalho por conta própria – e para modelos familiares que já não estavam em conformidade com o modelo de sustento da família estável. Em suma, a partir da década de 1970, a parte da população que estava bem servida pelo Estado-Providência alemão estava a diminuir sem se ter em conto o impacto das crises económicas e das mudanças societais. Ao mesmo tempo, os esforços para alargar a sua cobertura face ao declínio do emprego industrial sem alterar a sua fonte de financiamento baseada em seguros tiveram o efeito perverso de subexplorar o crescimento das oportunidades de emprego não industrial (Manow and Seils 2000).

A partir da década de 1970, a política do mercado de trabalho, bem como o seguro de desemprego e a segurança de pensão de reforma foram usados para amenizar as perdas de empregos no setor industrial e limitar o seu impacto político saliente nas estatísticas de desemprego. Assim, o número de “trabalhadores convidados” foi reduzido após 1974. Além disso, a oferta de trabalho foi reduzida através da passagem à reforma antecipada precoce e flexível – opções que tinham sido introduzidas antes da crise, mas foram ainda mais ampliadas em resposta aos interesses comuns dos empregadores e sindicatos em evitar despedimentos em massa. Estas opções facilitaram opções de saída sozialverträgliche (socialmente aceitáveis) para os trabalhadores mais velhos, combinando um período de desemprego subsidiado pelo empregador aos 59 anos (mais tarde aos 57) e com a passagem á reforma antecipada aos 60 anos, com pedidos de pensão completa. Consequentemente, a baixa no emprego global só em parte se refletiu no aumento do desemprego registado[3].

Como as condições do federalismo orçamental alemão dificultaram o financiamento dessa generosidade através de aumentos de impostos, a carga caiu principalmente sobre as contribuições para a segurança social, que estavam a aumentar continuamente, de 11,1% do PIB em 1970 para 15,6% em 1985 (IW 2013, Tabela 1). Estas contribuições – para o seguro de desemprego, o seguro de invalidez, o seguro de saúde, o seguro de cuidados de longa duração e a pensão de reforma – são geralmente pagas de forma paritária por empregadores e trabalhadores. Ao contrário dos impostos sobre o rendimento, no entanto, estas contribuições não têm um limite inferior (mas um limite superior), a estrutura é proporcional, e a incidência geral é regressiva. Por conseguinte, na série da OCDE sobre “Tributação dos salários”, a Alemanha foi (e continua a sê-lo) incluída na lista dos países com a maior “carga fiscal” sobre os baixos rendimentos salariais (OCDE 2017e). No extremo inferior da escala salarial, a carga fiscal é duas vezes mais elevada do que nos Estados anglo-americanos liberais ou na Suíça, e é quase tão elevada como na Suécia social-democrata. Em combinação com os salários de reserva proporcionados pelo nível relativamente generoso dos subsídios de desemprego relacionados com os salários, esta carga fiscal teve o efeito de retirar do mercado privado, não só na indústria, mas também nos serviços, o trabalho pouco qualificado.

Na Suécia, naturalmente, a maioria dos serviços era prestada no sector público, ao passo que a taxa de emprego ad Alemanha no sector público era ainda mais baixa do que nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, porém, o emprego alemão nos serviços do sector privado era tão baixo como na Suécia (Scharpf 1986). Em consequência, o desemprego de longa duração e “estrutural” continuou a aumentar à medida que os trabalhadores pouco qualificados foram sendo afastados do emprego industrial intensivo e não encontraram lugar, nem no sector público nem no sector privado da economia alemã de serviços. Por outras palavras, em contraste com os Estados Sociais-Democratas e Liberais, a Alemanha e sistemas bismarckianos semelhantes estavam a caminho de proporcionar “bem-estar sem trabalho” (Hemerijck et al. 2000; Scharpf 1997; 2000).

O modelo alemão no final dos anos 80

Notoriamente, porém, nem o governo social-liberal de Helmut Schmidt, nem o de Helmut Kohl, seu sucessor conservador-liberal após 1982, fizeram da reforma estrutural de um Estado-Providência cada vez mais disfuncional e insustentável uma prioridade política. Em vez disso, a atenção política e pública permaneceu focada no fortalecimento da competitividade da indústria alemã sob a condição de moeda forte. E a partir dessa perspetiva, a Alemanha parecia ser relativamente bem-sucedida. Para as indústrias exportadoras, o SME do final da década de 1980 foi melhor do que as excessivas oscilações cambiais da década de 1970; e após a transição bem-sucedida para a diversificação da produção e com qualidade, o lento aumento das exportações industriais continuou apesar das restrições de uma moeda sobrevalorizada e dos altos salários de uma força de trabalho qualificada. Assim, enquanto a baixa do emprego industrial se estabilizou em meados da década de 80, o emprego nos serviços continuou o seu lento aumento, e mesmo a muito baixa taxa de emprego global recomeçou a aumentar um pouco (ver Figura 10).

No final da década de 1980, portanto, o modelo alemão parecia estar em relativamente boa forma. Em comparação com outras economias avançadas, o sector industrial não tinha declinado tão profundamente e parecia ter alcançado um rumo estável. Na ausência de um sector de baixos salários, a igualdade salarial era quase tão boa como na Suécia e muito melhor do que nas economias anglo-saxónicas[4]. E, em comparação com o radicalismo do lado da oferta de Thatcher e Reagan, as políticas de liberalização moderada adotadas pelo governo conservador-liberal de Kohl sob as restrições de múltiplos vetos do federalismo alemão também não pareciam pôr em questão as instituições políticas, económicas e sociais do modelo alemão (Lehmbruch et al. 1988; Zohlnhöfer 2001). Em retrospetiva, portanto, o final da década de 1980 poderia de facto ser visto como um período em que o “capitalismo alemão” e as suas instituições de uma “economia social de mercado” internacionalmente competitiva, orientada para a estabilidade, cooperativa e bastante igualitária pareciam mais atraentes em termos socioeconómicos do que muitas outras economias capitalistas avançadas. No entanto, as reformas básicas do estado de bem-estar social não estavam na agenda política.


Notas:

[1] Ao separar a negociação salarial propensa a conflitos ao nível dos sindicatos e das organizações de empregadores da co-determinação dentro das empresas, as relações industriais alemãs facilitaram a negociação relativamente cooperativa sobre a organização do trabalho e as condições de trabalho ao nível dos conselhos de gestão e dos conselhos de empresa (Streeck 1984; 1997).

[2] A proporção de pessoas em situação de desempregados de longa duração (>1 ano) no desemprego total aumentou de 10% em 1975 para 31% em 1989 (Bundesanstalt für Arbeit 1976; 1990).

[3] A medida adequada teria sido o aumento da “taxa de inatividade”, definida como a percentagem da população em idade activa que depende de transferências públicas que substituem o rendimento (Hemerijck, Manow e van Kersbergen 2000; Hemerijck e Schludi 2000), que, no entanto, não foi nem mencionada nas estatísticas oficiais nem objeto de debate público.

[4] Os dados comparativos da OCDE só estão disponíveis a partir de meados dos anos 90, quando a desigualdade salarial já estava a aumentar na Alemanha. Nessa altura, a dispersão dos salários horários a tempo inteiro (D5/D1, D9/D1 e D5/D1) na Alemanha era superior à da Suécia, mas inferior à do Reino Unido e muito inferior à dos Estados Unidos: OECD Employment Database – Earnings and Wages.http://stats.oecd.org/Index.aspx?DatasetCode=DEC_I#.


A quarta parte deste texto desta série será publicada amanhã, 16/10/2019, 22h


Tradução de Júlio Marques Mota – Fonte aqui

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