MINIBOTS: ILEGAIS, PERIGOSOS, DESNECESSÁRIOS. Por Mario Nuti

Espuma dos dias_minibots italia

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

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Agradecemos a Domenico Mario Nuti a disponibilidade do presente texto e com ele esperamos que os nossos leitores se sintam enriquecidos em termos de conhecimento sobre os graves problemas com que se debate a economia italiana, muitos dos quais derivam da crise que se iniciou em 2008 ,e que ainda não se pode dar por terminada, assim como das políticas austeritárias impostas por Bruxelas.

JM

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MINIBOTS: ILEGAIS, PERIGOSOS, DESNECESSÁRIOS

domenico mario nuti Por Mario Nuti

Outubro de 2019

A possível emissão de uma moeda paralela italiana, defendida pela primeira vez pelo Professor Borghi em 2012 para uma saída gradual da Zona Euro, tem sido amplamente debatida no ano passado como forma de reduzir os pagamentos em atraso ao sector privado sem aumentar a dívida pública. Neste texto defendemos que uma moeda dupla, sob a forma de Obrigações do Tesouro em pequenas denominações – MiniBots -, é ilegal, perigosa no seu impacto no diferencial das taxas de juro italianas e desnecessária para a redução dos atrasos nos pagamentos públicos.

Com dois partidos eurocépticos – o Movimento 5 Estrelas de Luigi Di Maio e a Lega de Matteo Salvini – formando um governo sob o primeiro-ministro Giuseppe Conte há pouco mais de um ano, as propostas para a introdução de uma moeda italiana paralela tornaram-se cada vez mais frequentes.

Originalmente, a dupla moeda foi apresentada como uma forma de organizar a saída gradual da Itália da zona euro, pelo Professor Claudio Borghi da Universidade de Siena – atualmente deputado da Lega e presidente da Comissão Parlamentar de Economia – em 2012, numa conferência organizada pelo Professor Alberto Bagnai da Universidade de Pescara. Ambos, Borghi e Bagnai – hoje senador da Lega e presidente da Comissão de Finanças do Senado – eram eurocépticos e defendiam a saída da Itália da zona euro (rotulada de Exitaly, Italexit ou, como foi recentemente chamada pelo The Economist, Quitaly). Ambos consideraram, com razão, as restrições ao défice e à dívida da UE e da UEM como as principais causas da recessão e da estagnação italianas, especialmente tendo em conta as políticas de austeridade incorporadas nessas restrições. Assim, os meios de comunicação social apressaram-se a associar Bagnai à proposta da dupla moeda – errada e injustamente, uma vez que Bagnai nunca defendeu uma dupla moeda, sendo antes favorável a uma mudança instantânea e não gradual.

A dupla moeda passou então a fazer parte do programa comum Lega – 5Star que combinava as políticas partilhadas por ambas os partidos e as consagrava num quase “contrato”, mas apenas como instrumento para reduzir a acumulação de atrasos no pagamento de dívidas contraídas pelo Estado e outros devedores públicos junto de credores privados.

Tal como no caso previsto para o Quitaly, o monopólio legal de emissão de moeda do Banco Central Europeu deveria ser contornado pela emissão de obrigações do Tesouro italiano, como os BOTs [Buoni del Tesoro], mas em denominações baixas – daí a alcunha de MiniBots. Borghi continuou a promovê-los tanto como forma de implementar uma Quitaly gradual quanto como instrumentos para reduzir os atrasados públicos em relação ao setor privado sem aumentar a dívida pública.

No passado mês de Março, foi aprovada, em princípio, uma moção parlamentar que contemplava a questão dos “MiniBots”, sem estipular pormenores, condições e montantes concretos. As sucessivas discussões sobre Quitaly e pagamentos em atraso e, sobretudo, o aumento e a manutenção do diferencial entre as taxas de juros para os BOTs italianos de longo prazo e os Bunds alemães, levaram a reflexões posteriores para que a moção nunca fosse finalizada ou fundamentada.

No contexto dos debates sobre a eventual abertura de um procedimento disciplinar sobre a próxima lei orçamental italiana (DEF), a emissão e a circulação dos “MiniBots” foram repetidamente declaradas ilegais como sendo uma moeda dupla ou sujeitas às mesmas restrições aplicáveis a qualquer instrumento de dívida utilizado para financiar os défices públicos. Esta é a posição unanimemente adoptada por muitos funcionários europeus e italianos competentes, nomeadamente: Mario Draghi, o Comissário da UE Moscovici, o Presidente da Comissão Juncker, o Presidente do Conselho Tusk, a Secretária-Geral do FMI Lagarde, os governadores dos bancos centrais holandês, austríaco e italiano, o Presidente da Itália, a Confederação da Indústria Italiana, o Primeiro-Ministro Conte e o seu Ministro das Finanças Tria, bem como muitos outros responsáveis e políticos.

Sob o forte peso deste tipo de pressão o deputado da Lega Giorgetti, atualmente Subsecretário de Estado do Conselho de Ministros, designado pelo primeiro-ministro Conte como candidato à Presidência do Parlamento Europeu, declarou que a questão dos MiniBots era “inverosímil” [improvável, irrealista, fora de questão] e gracejou “ninguém ainda está a ouvir Borghi, ele representa notícias velhas e de qualquer modo ninguém quer sair da zona do euro “.

Tanto Salvini como Di Maio comentaram que os MiniBots eram um dos compromissos políticos comuns estipulados no seu quase-contrato e que tinham sido aprovados numa moção parlamentar; se as pessoas tivessem mudado de ideias, gostariam de ouvir as suas razões. No entanto, Salvini pareceu reduzir a sua anterior ênfase nos MiniBots, acrescentando que eles eram apenas uma das várias propostas em consideração para reduzir os pagamentos em atraso. Muitos observadores rejeitaram o abrandamento de Giorgetti e Salvini como instrumental para agradecer o apoio do Parlamento Europeu à candidatura de Giorgetti a um importante cargo da UE, mas outros interpretaram os seus pronunciamentos como evidência de uma divisão não apenas entre Salvini e Di Maio (especialmente em vista da ênfase renovada de Salvini no Imposto Fixo e a sua querela sobre a sua viabilidade fiscal e a do salário mínimo de Di Maio), mas também dentro da própria Lega, com alguns membros a favor e outros contra os MiniBots.

Borghi simplesmente ignorou o gracejo de Giorgetti sobre os MiniBots serem “inverosímeis”, dizendo que isso tinha sido intencionado como uma piada, e insistiu que os instrumentos propostos eram legais e eficazes, quer como moeda dupla quer como uma forma de reduzir atrasos sem aumentar a dívida pública. Os minibots, não tendo sido confirmados em seus detalhes, condições ou valores, atualmente permanecem uma vaga possibilidade em animação suspensa.

Sempre me opus à dupla moeda, uma oposição enraizada no estudo da experiência soviética de estabilização da moeda através da dupla chervontsy [N.T. moedas de ouro estrangeiras e nacionais] na transição entre o Comunismo de Guerra e a Nova Política Económica por volta de 1925-26, bem como a uma solução aplicada na transição pós-socialista da década de 1990 através de caixas de conversão de divisas [Currency Boards] ou de outras formas de dolarização/DM-tização , ou à dupla moeda ocasionalmente debatida em profundidade na crise da dívida europeia de 2007-08.

Uma moeda dupla emitida a uma taxa de câmbio fixa com a moeda utilizada anteriormente está sujeita à Lei de Gresham, segundo a qual a moeda má (sobrevalorizada em relação ao poder de compra relativo) afasta da circulação a moeda boa (subvalorizada). Enquanto uma moeda dupla trocada em condições de mercado flutuantes gera incerteza quanto ao seu valor futuro, provocando um diferencial de taxa de juro entre as duas moedas.

Uma economia em pleno controlo da sua política monetária e orçamental pode fazer muito melhor com outras políticas de estabilização, mantendo-se fiel a uma moeda única. No entanto, também aceitei prontamente que um país cuja dívida fosse denominada numa moeda estrangeira (tal como o euro é para os membros individuais da zona euro para todos os efeitos) poderia e, em algumas circunstâncias, deveria facilitar a recuperação da soberania monetária e fiscal, se e só se quisessem fazê-lo gradualmente, através da adopção de uma moeda dupla.

O problema com os MiniBots é que, naturalmente, as regras estatutárias do BCE, totalmente aprovadas pelos membros da zona euro antes da sua adesão, os tornam naturalmente ilegais. E todas as emissões líquidas de instrumentos de dívida de qualquer tipo ipso facto aumentam automaticamente o stock da dívida pública. Isto vale também para os MiniBots emitidos com o único propósito de reduzir os pagamentos em atraso: mesmo que fossem legais, os MiniBots não podem evitar o aumento da dívida pública. Em primeiro lugar, embora o aumento da dívida devido à sua emissão seja extinto quando são gastos no pagamento de impostos ou na compra de bens e serviços do setor público, ao mesmo tempo a sua despesa diminui exatamente no mesmo montante da receita do setor público e, portanto, aumenta as suas necessidades de obtenção de empréstimos, contribuindo assim para aumentar a dívida. Como corolário, se os MiniBots forem extintos através da sua aquisição pelo setor público, obviamente eles nunca poderão desempenhar o papel de uma moeda paralela para substituir a antiga moeda em circulação monetária. Mas a própria menção de MiniBots alarma desnecessariamente os investidores, provocando automaticamente, ainda que erroneamente, a venda de títulos públicos e o aumento e permanência do spread das taxas de juros na rolagem da dívida pública que é de cerca de 400 mil milhões por ano. (Aqui o absurdo de emitir malas recheadas com MiniBots de baixa denominação para credores privados apenas para serem entregues fechadas aos devedores públicos é deixado de lado, mas também deve ser considerado).

Em segundo lugar, é verdade que os MiniBots, ao contrário dos BOTs ordinários, não dão direito a uma taxa de juros, mas os juros economizados na sua emissão são mais do que compensados pelo aumento do custo dos juros sobre a emissão daquela parcela da dívida bruta paga no vencimento, mas reemitida pelo Tesouro: o ganho de juros de aproximadamente 0,5% do PIB seria obtido à custa de um aumento de juros sobre algo próximo a 4% do PIB, que deveria ser deduzido do ganho, tornando-o negativo a menos que a taxa de juros suba mais de 800% em relação ao seu nível anterior.

Finalmente, os MiniBots não são necessários nem suficientes para reduzir os pagamentos em atraso devidos pelo setor público aos agentes privados. Os MiniBots só poderiam ser emitidos para reembolsar créditos certificados ao setor privado, ou seja, incluídos no balanço do devedor e devidamente aprovados, satisfazendo todos os requisitos para a adjudicação do contrato subjacente, desde regras antimáfia até o tamanho, qualificações técnicas e experiência das empresas adjudicatárias, bem como publicidade e concorrência. Mas para pagar esses créditos certificados, os devedores públicos desde 2012 têm acesso a financiamento de uma agência pública (a Cassa Depositi e Prestiti) a um custo simbólico de juros, enquanto os credores certificados podem sempre usá-los como garantia para obter crédito de bancos comerciais, a uma taxa que não seria necessariamente significativamente maior do que a taxa na qual os MiniBots podem ter que ser descontados de qualquer maneira para convertê-los em dinheiro. Além disso, os atrasos de pagamento em créditos certificados foram grandemente reduzidos desde 2012, com o governo central, empresas públicas e grandes cidades agora satisfazendo, em média, o novo período de espera máximo legal de 48 dias entre a certificação e o pagamento. Aparentemente, o Ministério do Trabalho e Desenvolvimento é o pagador mais rápido (5 dias), enquanto o Ministério do Interior é o pagador mais lento, com um período de espera médio 35% superior ao normal. Se Salvini realmente quisesse reduzir o acúmulo de atrasados, ele poderia simplesmente emitir um memorando interno em vez de MiniBots. É verdade que algumas cidades como Nápoles, partes do Sul e Agências Nacionais de Saúde excedem grosseiramente a norma, mas mesmo o seu atraso tem encolhido (todos os números citados aqui são de dados oficiais do ISTAT).

O problema dos pagamentos em atraso, que começou a aumentar com a crise europeia de 2007-2008 e, especialmente, com as tentativas de reduzir o défice público calculado numa base de caixa em vez de numa base de acumulação para cumprir as restrições da UE e da zona euro, foi reduzido de cerca de 120 mil milhões de euros para cerca de 50 mil milhões de euros, o que é ainda demasiado elevado. Os mini-Bots não teriam qualquer utilidade no seu caso: para serem utilizados na liquidação, esses créditos devem ser incluídos primeiro nos balanços adequados e depois sujeitos a procedimentos de certificação. Esta é a responsabilidade de cada agência devedora, não há nada que o Tesouro possa fazer a esse respeito.

Em conclusão, os MiniBots são úteis, são mesmo necessários para uma saída gradual da zona euro, mas precisamente por essa razão foram tornados ilegais. Em todo o caso, ou são uma moeda dupla, desnecessária quando a Quitaly já não é seriamente defendida, ou um instrumento de dívida sujeito a restrições da UE e do euro, e não ambas: tertium non datur. Para a compensação da dívida pública para com os credores privados, os MiniBots são desnecessários para as dívidas/créditos certificados, inúteis para os não certificados.

As negociações governamentais com a UE e o BCE, em vez de insistirem em algumas decimais adicionais do PIB em objectivos de défice e dívida, deveriam insistir no reconhecimento de que a redução dos atrasos nos pagamentos públicos envolve apenas uma mudança de credores, dos fornecedores públicos para aqueles que adquirem as obrigações emitidas para os reembolsar. Consequentemente, como não aumentam a dívida global, não devem ser incluídos no cálculo do défice. Nos últimos dois anos, tenho vindo a propor repetidamente esta abordagem em conferências e seminários públicos (incluindo um seminário na Câmara dos Deputados) e em vários blogues, mas a proposta caiu em saco roto. Repetita juvant. Talvez agora que o problema capturou a atenção e preocupação do público esta possível mudança possa ser reconsiderada.

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O autor: Domenico Mario Nuti é Professor de Sistemas Económicos Comparados (1993-2010, agora Emérito), na Faculdade de Economia da Universidade de Roma “La Sapienza”. Investigador Sénior Honorário, Centre for Russian and East-European Studies, Universidade de Birmingham. Licenciado em Direito (Roma 1962), foi membro da Academia de Ciências polaca em 1962-63 onde estudou com Oskar Lange e Michael Kalecki, e obteve o seu doutoramento em Economia em Cambridge, Inglaterra (1970), sob a supervisão de Maurice Dobb e Nicholas Kaldor. Ex-membro do King’s College, Cambridge (1965-79); Professor de Economia Política e Diretor do Centre for Russian and East European Studies, Universidade de Birmingham (1980-82); Professor de Economia, Instituto Universitário Europeu, Florença (1982-90). Professor convidado, London Business School (1993-2005). Conselheiro económico na Comissão Europeia, DG II, sobre a Europa Central e Oriental (1990-93). Consultor do Banco Mundial e outras organizações económicas internacionais. Conselheiro Especialista da Câmara dos Lordes Comité das Comunidades Europeias (1993-1994). Assessor Económico do Governo Polaco no âmbito do Programa PHARE da União Europeia (1994-1997; 2002-2003). Conselheiro económico da Administração Presidencial da Bielorrússia, sob o patrocínio do Banco Mundial (1998) e da CE (1999). Conselheiro económico da Administração Presidencial do Usbequistão, no âmbito do Programa TACIS da União Europeia (1999-2000). Presidente da Associação Europeia de Estudos Económicos Comparados, 2001-2002. Autor de numerosas publicações, principalmente sobre sistemas económicos comparados, em particular sobre 1) a reforma das economias de planeamento central e a sua transição pós-socialista para economias de mercado; 2) governança das empresas e participação dos empregados nas decisões e resultados da empresa; 3) processos de integração económica na Europa e na economia global. Referenciado em: Mark Blaug, Who’s Who in Economics. A Biographical Dictionary of Major Economists, MIT Press, Cambridge, Mass, 1983, 1986, 1999; P. Arestis and M. C. Sawyer, A Biographical Dictionary of Dissenting Economists, Elgar Publishing, London 1992, pp. 401-409. [Entradas nunca foram atualizadas]. Saul Estrin, Grzegorz W. Kolodko e Milica Uvalic editaram uma publicação comemorativa em sua honra, Transition and Beyond, Palgrave Macmillan, London 2007; a Introdução contém uma nota biográfica e uma lista das principais publicações. Analisado em Rivista di Politica Economica Jan.-Feb. 2008 por Stefano Manzocchi, http://eprints.luiss.it/180/1/Manzocchi_2008.pdf

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