PONTO – NEWSLETTER – INFORMAÇÃO SEM RUÍDO – PARCERIA com BRASIL DE FATO – selecção de CAMILO JOSEPH

29 de novembro de 2019

Olá,

a fala de Paulo Guedes sobre o AI-5 comprova: não existe programa ultraliberal de desmonte do Estado sem o respaldo de um projeto de poder autoritário. Não existe o governo Bolsonaro de um lado e a agenda econômica de outro, como querem os jornais. Foi assim no Chile dos sonhos de Guedes, está sendo assim no Brasil, onde o AI-5 não tem data marcada e, reparando bem, já começou.

Trilha para embalar a leitura desta edição: “Pesadelo”, do MPB4.

1. O AI-5 de cada dia. Não há uma semana que alguém do primeiro escalão não mencione, saudoso e esperançoso, o Ato Institucional que fechou o Congresso, cassou mandatos e instituiu a censura na ditadura militar. Nesta semana foi a vez do ministro Paulo Guedes, provando que está no mesmo barco dos olavistas, que crêem que o Brasil estaria ameaçado por uma convulsão social, o que alimenta outro devaneio bolsonarista de acionar mecanismos autoritários. Aliás, o temor de uma onda de protestos foi a justificativa usada por Guedes para frear a tramitação da reforma administrativa enviada ao Congresso. O mercado também interpretou as declarações como uma tentativa do governo em aumentar seus poderes para além da Constituição, diante da incapacidade de aprovar seu programa. Não existem reformas ultraliberais dissociadas de um governo autoritário.

Pois o autoritarismo inclusive já deixou o terreno da retórica e se materializou na forma do projeto de lei que isenta militares de punições por conflitos em situações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como informamos na semana passada. Mesmo que a proposta seja inconstitucional, como alertou o MPF, Bolsonaro foi mais além, e propôs que a GLO seja usada contra ocupações de terras, quando os Estados não realizarem os despejos. Mais do que as ocupações, Bolsonaro pretende utilizar a GLO contra qualquer forma de protesto. Quando deputado Bolsonaro já havia apresentado projetos semelhantes de exclusão de ilicitude e, desde 2010, membros das Forças Armadas são acusados de 34 mortes de civis, nenhum foi punido. Qual a novidade então? “Parece haver mesmo a disposição de empreender um processo de radicalização no país. Assim, em vez de o governo federal investir na paz e na distensão, faz o contrário. Há uma ação deliberada, resta evidente, para atrair as esquerdas e os movimentos sociais para o confronto”, escreve Reinaldo Azevedo

2. O AI-5 não tem data marcada. Um dos problemas de um certo alarmismo sobre as falas sobre o AI-5 é imaginar que ele tem data e hora marcada para ser instituído, como se na prática já não existissem sinais bastante claros da escalada autoritária. No mesmo dia das declarações de Bolsonaro, a Polícia Federal participou de uma ação de despejo de 700 famílias sem terra na Bahia, utilizando bombas de fumaça e balas de borracha e um agricultor foi atingido na cabeça por um tiro de bala de borracha. Na terça (26), a Polícia Civil do Pará prendeu quatro integrantes da Brigada de Incêndio de Alter do Chão, ligada ao Instituto Aquífero Alter do Chão, por suspeita de incêndio criminoso em uma Área de Proteção Ambiental (APA), além de cumprir mandados de busca e apreensão na sede do projeto Saúde e Alegria. Diálogos interceptados e revelados pela Polícia Civil como prova de que os brigadistas eram os incendiários não apresentam evidência de crime algum. O MPF veio a público afirmar que desde setembro investigava as causas de incêndio na região e “que nenhum elemento apontava para participação de brigadistas ou organizações da sociedade civil”, e sim “para o assédio de grileiros, ocupação desordenada e para a especulação imobiliária”. Além disso, informações dão conta de que nenhum dos quatro brigadistas estava na área quando os incêndios começaram. A ação não tem nada a ver com o governo Bolsonaro, certo? Bem, tanto o presidente quanto o ministro do Meio Ambiente usaram o episódio para reforçar o discurso mentiroso de que as ONGs são responsáveis pelas queimadas na Amazônia. Na quinta-feira (28), os brigadistas tiveram a prisão preventiva suspensa e foram libertados.

Enquanto isso, outro projeto tramita no Congresso ampliando a isenção de punições para policiais, não apenas no caso de GLO, mas em situações cotidianas. Um bom exemplo do que significa uma polícia sem freios para matar pode ser visto diariamente no Rio: o estado contabilizou em dez meses de 2019 o maior número de mortes por policiais já registrado desde 1998, o início da série histórica. A média é de cinco óbitos por dia. A cada 10 pessoas que morrem de modo violento no Estado, 4 são vítimas de agentes policiais.

3. É bom se acostumar. O fracasso do governo em recuperar a economia ou em pautar qualquer reforma após a Previdência seriam os motivos para a fala autoritária de Paulo Guedes. E os números atestam a incapacidade do governo em sair da recessão: segundo levantamento da Austin Rating, a recuperação seria atingida em maio de 2022. Mas isso num cenário positivo, porque outras projeções do estudo indicam a possibilidade de que essa recuperação só ocorra em 2035. E, ainda que uma série de fatores externos tenha colaborado para a alta do dólar, alcançando o maior valor nominal desde o plano Real, as declarações de Guedes de que juros baixos e dólar alto serão uma combinação por longo tempo despertaram a desconfiança do próprio mercado de que desvalorizar a moeda nacional faz parte dos planos econômicos do governo, o que beneficiaria a princípio só o setor exportador, como o agronegócio e empresas petrolíferas. E a primeira consequência já pode ser sentida no prato: o preço da carne bovina subiu em média 20% neste mês, justamente pela demanda de exportação, e a previsão é de que os preços continuarão subindo até o próximo ano. Como isso tudo já não fosse suficiente para aumentar a carestia, pela segunda vez, o governo reduziu o valor do reajuste do salário mínimo no próximo ano de R$ 1.039 para R$ 1.031. Um aumento de 3,3% em relação ao atual (R$ 998), mas R$13 abaixo do valor da política anterior de valorização do salário pela inflação somada ao PIB.

4. Escola sem ministro. Dois dos mais performáticos e ideológicos ministros do governo, Abraham Weintraub e Damares Alves se encontraram para o lançamento de um projeto que ressuscita mais uma vez as teses do Escola sem Partido. De um lado, o governo criou um canal para receber denúncias de como questões religiosas e morais são tratadas nas salas de aula, por outro o MEC irá cortar as verbas de municípios e estados que não se manifestarem contra as denúncias. Poucos ministros parecem exprimir tão bem o estilo olavista de governar como Weintraub, comportando-se como um comentarista (ruim) de redes sociais. A agressividade e a polêmica fácil nos debates públicos, como os ataques à UNE e às universidades em geral, têm servido como cortina de fumaça para esconder a ineficiência da sua gestão, até sob o viés liberal. Segundo a Comissão de Representação externa da Câmara, mesmo os valores que não sofreram bloqueio tiveram baixo índice de execução, como o “apoio ao desenvolvimento da educação básica”, com repasse próximo a zero até julho. Apenas 4,4% da verba reservada para investimentos do MEC foi executada, comprovando “a baixa capacidade de gerenciamento dos gestores responsáveis”. Mencionamos na edição passada que a demissão de Weintraub para uma minirreforma ministerial foi cogitada, mas a informação foi desmentida por Bolsonaro no início da semana. Porém, a crise sobre o MEC provocou a exoneração de coordenadores da equipe de alfabetização, em meio a críticas sobre a inoperância da pasta. Um dos demitidos é o psicólogo e pesquisador Renan Sargiani, o principal defensor do método fônico para alfabetizar crianças.

5. Até não sobrar nada. A desregulamentação e o desmonte da estrutura de fiscalização do setor ambiental resultaram em mais um índice negativo nesta semana: o corte seletivo de madeiras desmatou, em apenas três meses, uma área do tamanho do município de São Paulo. Neste tipo de corte, são tiradas apenas as árvores mais nobres, como ipê e jatobá, para fins madeireiros. Porém, esta é a etapa inicial de um processo que vai rareando a floresta até o ponto em que ela é queimada ou cortada totalmente – o chamado corte raso – para a colocação posterior de pastagem, por exemplo. O volume de corte foi 35% maior do que toda a extração ao longo dos 12 meses anteriores. Curiosamente, na mesma semana, Bolsonaro sinalizou com a possibilidade de legalizar a exportação de madeiras in natura, hoje proibida. A retórica incentivadora de queimadas e de violência contra indígenas na Amazônia, pelo menos, vai render alguma incomodação a Bolsonaro: ele se tornou alvo de denúncia no Tribunal Penal Internacional, acusado de incitação ao genocídio de povos indígenas e crimes contra a humanidade, ao minar a fiscalização de crimes ambientais na Amazônia. Enquanto isso, no outro caso de omissão e destruição ambiental, como previsto, o óleo chegou ao litoral do sudeste. Ao todo, ao menos 124 municípios de todos os nove Estados do Nordeste, do Espírito Santo e do Rio de Janeiro foram afetados por fragmentos ou manchas de petróleo. Um estudo da UFBA demonstra que o número de invertebrados bentônicos vivos (como corais, moluscos, crustáceos, polvos e lagostas) foi reduzido em 66% em quatro praias do litoral do Bahia, após o derramamento de óleo. Os corais foram as espécies mais afetadas até agora.

6. A Lava Jato vive! Para quem achava que a libertação de Lula colocaria uma pá de cal no lavajatismo, o TRF4 resolveu demonstrar que ela está bem viva. Resumindo, o tribunal de segunda instância ignorou tanto a decisão da semana passada sobre sentenças copia e cola da juíza Gabriela Hardt, como também a interpretação do STF sobre os delatores. A decisão foi interpretada como uma afronta ao Supremo. Também não faltaram defesas explícitas da operação curitibana e críticas às denúncias do site The Intercept. De quebra, o tribunal aumentou a pena para 17 anos de prisão. Ao desconsiderar maioria já formada no STF para que réus delatores falem após réus delatados, avalia o jornalista Kennedy Alencar, a 8ª Turma do TRF-4 abre um flanco para que a confirmação da condenação de Lula no caso do sítio seja derrubada em instância superior. Até ministros do STF e do STJ notaram isso: os desembargadores de Porto Alegre desconsideraram questões técnicas e o precedente do STF para reafirmar a Lava Jato. O TRF4 também seguiu a onda de declarações governistas de que Lula provocaria manifestações ao estilo chileno e provocou um aparato de segurança desproporcional para o julgamento. Por enquanto não há probabilidade de Lula retornar para a cadeia, com a decisão do STF sobre a prisão em segunda instância e com a tramitação do projeto engavetado no Congresso temporariamente, mas a decisão mantém a inelegibilidade de Lula. 

7. As instituições funcionando. Duas más notícias para o clã Bolsonaro. Por ampla maioria, o  STF decidiu pelo compartilhamento irrestrito de dados financeiros sem necessidade de autorização judicial. A decisão permite ao MPF retomar as investigações que envolviam Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz. Já o TSE começou a julgar na terça (26) a validade de assinaturas eletrônicas para a criação de partido político, mas a decisão foi adiada devido ao pedido de vista do ministro Luís Felipe Salomão. O julgamento será retomado na próxima terça (3). Reportagem do UOL mostra que a intenção de a Aliança pelo Brasil reunir quase 500 mil assinaturas e obter até o início de abril o registro na Justiça Eleitoral contrasta com a experiência de outros partidos. A Rede, por exemplo, esperou dois anos e meio pelo registro. Enquanto aguarda a questão sobre as assinaturas digitais, Bolsonaro está usando dinheiro público – e o apoio das igrejas neopentecostais – para reunir assinaturas físicas. Em viagem oficial a Manaus na terça (26), Bolsonaro participou de culto no templo da Assembleia de Deus da capital e, após um discurso rápido, aliados do presidente coletaram assinaturas para a criação do partido.

8. Ponto final: nossas recomendações de leitura

  • No GGN, Luis Nassif detalha as relações entre economia da fé, informalidade, política e lavagem de dinheiro que movem os pastores neopentecostais na política. É o caso do Pastor Marcio Matos, da Igreja Anabatista, candidato da Rede à prefeitura de Caxias (RJ) e proprietário da maior distribuidora de cigarros na baixada Fluminense. No artigo, Nassif mostra como foi Eduardo Cunha quem articulou esta rede de interesses evangélicos que agora é herdada por Bolsonaro.
  • Para a Repórter Brasil, Daniel Camargos apura o bilionário mercado alimentado pelo garimpo ilegal na Amazônia. A reportagem também mostra a articulação dos garimpeiros para atacarem fiscais do meio-ambiente e como o discurso do governo – contrário a ONGs, indígenas e fiscalização – é reproduzido por prefeitos e empresários locais.
  • Os aplicativos de transporte se tornaram uma alternativa para famílias inteiras diante do desemprego, porém são justamente as relações familiares que desaparecem na busca diária por atingir metas e nos horários infindáveis de trabalho. A BBC registrou o cotidiano destas famílias para discutir o aumento da informalidade e a destruição das garantias trabalhistas, a uberização.
  • As células neonazistas no Brasil sentem-se confortáveis e impunes para atuar no Brasil graças ao discurso do governo Bolsonaro, constata a antropóloga Adriana Dias, em entrevista para a Vice. Três pilares sustentam a política de ódio, segundo a pesquisadora: o discurso da meritocracia, uma ideia eugenista onde se cria a ilusão de que todos somos iguais e só prospera quem é o vencedor; a construção de um inimigo onde se deposita a frustração e o culto exacerbado à masculinidade e ao militarismo.
  • Duas análises mais profundas sobre alvos constantes dos ataques do bolsonarismo. O podcast Chutando a Escada fez uma longa entrevista com a antropóloga Rosana Pinheiro Machado sobre várias dimensões da crise e dos ataques à educação no Brasil, desde os cientistas que não conseguem voltar ao país pelas condições políticas ao caráter de gênero na perseguição a professores e cientistas. Já o canal Meteoro mostra que a crise brasileira é também estética. O bolsonarismo supostamente defende a reprodução dos clássicos, mas na verdade se reduz ao kitsch, o exagerado, o piegas e o estereotipado. 
  • O bolsonarismo é competente ao usar a estratégia de controlar o noticiário e manter a sociedade e a imprensa só na reprodução e na reação. Quando estão latindo num lugar, a matilha já está mordendo em outro. É na Amazônia e nas periferias urbanas que o autoritarismo já se instalou. Artigo de Eliane Brum para o El País.

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