CARTA DE BRAGA – “sandálias de pneu” por António Oliveira

Magina era um homem velho, bem velho! Notava-se pela carapinha quase toda branca. O gerente nunca o quis mandar embora por ele ser uma pessoa sabedora, um belíssimo contador de estórias e também por já não ter ninguém no povo de onde tinha vindo, a uma porrada de quilómetros da cidade.

Tinha um quarto só para ele nos anexos da casa, continuava a andar descalço como sempre andou, ou então calçava umas sandálias feitas de pneu, presas por uma correia de pele, tudo feito por ele e usava a diário uns calções bem grandes, ou um pano grande enrolado em volta do corpo.

Tinha um cuidado enorme com a limpeza e nunca ia para o quarto ao final do dia, sem passar pelo chuveiro ‘precisa estar limpo toda hora’.

Já não trabalhava mas falava e, uma tarde desci a escada a dar para o quintal e aproximei-me devagar, sem fazer ruído, mas ele deu conta, olhou para trás e ‘tás bem, você?

Nunca tinha falado tão próximo de um homem como aquele, pequeno e mirrado das canseiras da vida e da idade, cabelo quase todo branco e um cachimbo que nem era comprado, via-se bem ter sido feito por ele ou por alguém de saber aproveitar uns pedacitos de troncos, a dar mesmo para aquilo.

Falámos da vida ali, da família que já nem tinha, do ‘patrão que deixava ele ficar num quarto só para mim e inda paga inté sem ter nada de fazer’, só conversava e ‘inda pergunta todos dias você está bem, Magina?

Habituei-me a procurá-lo, a descer a escada para ir ao encontro dele à porta do armazém, a escutar as estórias estranhas que contava, ‘aprendi dos mais velho, inda era criança, cambuta’. Um escutar já com mais de sessenta anos!

Mas o tempo nunca apaga as estórias que nos mudam o modo de ver o mundo e, esta contou-a ele, uma tarde, quando a chuva não deixava andar na rua. Ele costumava aproveitar o descansar do tempo e falava das ‘coisa toda’ em que acreditava.

«No começo das coisa, tinha uma fazenda grande e um patrão que mandava todos!

Vivia sozinho numa casa sozinha também, as pessoa ficava nas casa grande para os que trabalha, lá não havia diferença nem pessoa de mais gostar!

Um dia, no fim do trabalho, o patrão chegou nas casa, juntou todas as pessoa e falou

Amanhã o rio vai acabar e não vai ter mais água! Quem levantar manhazinha vai ter muita água e vai ficar lavado. Quem ficar para trás vai ter só água com barro. Quem fizer mangonha (*) e levantar tarde já não tem mais água e vai ter problema!

E você sabes como é tudo! Quem levantou cedo tinha água e ficou bem lavado, claro! Quem levantou depois, só tem água com terra, já não deu para lavar bem e ficou da cor da terra e inté tem muita pessoa assim! Depois com os mangonheiro, só teve água para as palma das mão e sola dos pé!

Você estás a ver! Todos os homens nasce igual, mas uns proveita melhor que os outro, os que não ouve as palavras do patrão, o mesmo patrão para todas pessoa!»

Há muita coisa a tirar desta estória, ouvida de um homem com muita idade, que não sabia ler nem escrever, mas guardava as que tinha ouvido dos mais velhos e o ajudaram a fazer a vida.

Imaginem-se a ouvi-la ali num armazém qualquer, sentados em sacos de tanta coisa, abrigados para fugir da chuva.

Mas não lhe mudem o nome! Magina, uma pessoa antiga de cabelos quase todos brancos, enrolado num pano, pés calçados com sandálias feitas de pneu e mão a segurar um cachimbo, aparado à faca.

Um homem grande e bom!

* preguiça

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

3 Comments

  1. A cultura bebida na origem, sem capas grossas nem marketing, só vinda dos mais velhos!
    Obrigado caro Carlos Leça da Veiga

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