A GALIZA COMO TAREFA – rapanhota – Ernesto V. Souza

Vão desaparecendo com uma velocidade notável as lojas de bairro, as indústrias familiares, as oficinas de reparação e pequeno conserto, as modestas lojas de diário e até aquelas franquias que não chegaram a grandes. Mete medo, num passeio por ruas antes cheias de vida, tanta montra abandonada, tanta reixa nas portas e grade nas janelas, tanto cartaz de fechado, de aluga-se ou vende. Impressiona ver a rua cheia de pintadas, lixo acumulado, papéis e pó, de propagandas coladas nas paredes e nos vidros de comércios de alma morta. Dão medo essas ruas. Quem mora agora nelas?

Ouço gentes dizer que morre o espírito dos bairros, que morre mesmo o espírito das cidades, que as vilas esmorecem e o rural esvazia-se. Que os políticos não sabem ver, que não entendem o espírito. Mas que é o espírito de uma vila, de uma cidade? Quando foi, por outra parte que se deslocou assim a política e o governo do sentir dos votantes? quando a gestão fria se separou dos interesses dos coletivos que os escolheram?

Talvez é mais o que não dizem: é uma saudade de algo que desaparece? de algo que se considerava já consolidado, até permanente, e não era? Esvai o espírito do tempo velho moderno? há contraste com um mais novo que ainda não terminou de se formular? ou já está aqui, de socato, foi chegando e nos apanhou como um vento inclemente, ou um senhor feudal num descampado, como o anuncio de uma estação climática diferente, e não se percebeu?

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Hokusai, Viajantes surpreendidos por um vento súbito em Ejiri (c. 1832) (Tomado de: Nuvem)

Estamos submersos numa mudança económica, cultural e social, o espírito da nossa época é a inestabilidade, a mudança a pior, as crises: populacionais, sociais, económicas, políticas, climáticas. De fins do XIX, aquele período em que por fim caíram os restos sociais e económicos do Antigo regime, não se via uma crise de espírito igual e envolvida também num manto de reacionarismo intelectual, académico e político tamanho.

Não é apenas uma rapanhota descontrolada dos mercados e uma fase de saqueio do grande capitalismo. Estão a coalhar e a manifestar-se, na última década, os efeitos (demorados e dissimulados pelas poupanças, os patrimónios e os tópicos e maneiras socialmente admitidos) dos discursos, propagandas, propostas, teorias, iniciativas e políticas (sanitárias, sociais, académicas, científicas) nadas na reação conservadora iniciada a finais dos anos 70.

Após três décadas de construção, o pensamento neo-conservador está maduro e influi constantemente através dos discursos e projetos, do dia a dia, e palavras, dos sketchs montados para twitter, facebook, para essa tv ligeira, dos protagonistas políticos, económicos e académicos; na análise e relevância dos dados, nas conclusões, nas vozes dos mass média, da arte e da cultura, também na roupa, nas modas, no consumo, na lógica da produção a pequena escala, na venda, e no comércio.

Fica apenas por determinar se estamos no início de um bravo tempo novo emergente neo-feudal ou se contemplamos a tempestade no seu ponto mais alto.

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