A DERROTA DE CORBYN, UMA CONSEQUÊNCIA DA CRISE POLÍTICA A OCIDENTE – III – A UE, CORBYN E O “ESVAZIAMENTO” DA ALA ESQUERDA TRABALHISTA, por DANNY NICOL

 

 

The EU, Corbyn and the “Hollowing Out” of Labour’s Left Wing, por Danny Nicol

The Full Brexit, 16 de Abril de 2019

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

 

O Brexit pôs em evidência  que não foi somente a ala direita do Partido Trabalhista que sucumbiu ao neoliberalismo. Ao abraçar a União Europeia, a sua ala esquerda  também sucumbiu.

A principal diferença entre a ala esquerda trabalhista e a direita trabalhista tem sido a de que a ala esquerda deseja criar uma nova sociedade enquanto a direita procura melhorar os piores aspetos da sociedade existente. Há pouco mais de um século, a esquerda teve uma vitória quando o partido adotou um objetivo socialista democrático. Na Cláusula IV(4) de seu livro de regras, o Partido comprometeu-se  a substituir o capitalismo por um sistema que, para garantir aos trabalhadores o pleno fruto de seu trabalho, seria baseado na propriedade comum dos meios de produção, distribuição e troca. A democracia seria ainda mais reforçada pela adoção do melhor sistema possível de administração popular de cada indústria ou serviço.

 O governo trabalhista de 1945-51 nacionalizou cerca de 20% da economia, mas o seu modelo “morrisoniano” de nacionalização, em que as empresas públicas eram geridas como empresas privadas, sem um plano económico nacional abrangente nem uma democracia industrial, não conseguiu atrair  a imaginação pública.  Posteriormente, a Cláusula IV(4) resistiu face aos  líderes trabalhistas de direita. Hugh Gaitskell lutou contra ela nos anos 50, Harold Wilson ignorou-a nos anos 60 e 70, e Tony Blair mandou aboli-la, ou melhor, substituí-la, nos anos 90. Sob Blair, o compromisso de propriedade comum foi abandonado. A atual Cláusula IV(4), entretanto, compromete o Partido a assegurar que “poder, riqueza e oportunidade estejam nas mãos de muitos, não de poucos” – um objetivo impossível de ser realizado dentro de um quadro capitalista.

 A ironia de 1975

A posição original da esquerda trabalhista sobre a CEE (agora UE) foi motivada pelo desejo de construir a nova sociedade prevista na Cláusula IV(4) original. No referendo de 1975 sobre a CEE, a Esquerda Trabalhista opôs-se à continuação da adesão de forma absolutamente sólida. Isto foi em grande parte devido ao receio de que as regras da CEE em matéria de auxílios estatais pudessem prejudicar um programa económico socialista, bem como a política regional. A Esquerda também favoreceu o comércio planeado em detrimento do comércio livre.

Na altura do referendo de 2016, as coisas tinham mudado completamente. A maioria dos membros do Partido Trabalhista de esquerda apoiou a adesão à UE. Contudo, ironicamente, a lei da UE contém agora obstáculos muito maiores à realização do socialismo democrático do que em 1975. Nessa altura, a lei dos auxílios estatais era rudimentar. Agora é uma esfera de direito desenvolvida que corrói gravemente a autonomia económica nacional.  Além disso, embora o direito da CEE em 1975 parecesse não interferir diretamente no equilíbrio entre a propriedade pública e privada nos Estados-Membros, hoje já não é esse o caso. O direito comunitário proíbe agora praticamente os Estados de substituir a mercantilização dos sectores económicos por monopólios nacionalizados. Somos, portanto, obrigados a concluir que algo mudou fundamentalmente no seio da esquerda trabalhista.

 A esquerda trabalhista e o tsunami do neoliberalismo

Nos anos 80, os sucessivos governos de Margaret Thatcher estabeleceram gradualmente o Thatcherismo como o novo senso comum, pelo menos entre a elite política. A resposta da liderança trabalhista foi iniciar uma revisão política no final dos anos 80 para mover o seu programa numa  direção mais capitalista. Três políticas-chave impulsionadas pela esquerda trabalhista – uma estratégia económica alternativa, a retirada da CEE e uma política de defesa não-nuclear – foram rejeitadas. Eventualmente, até a oposição ao vasto programa de privatização dos conservadores foi eliminada. Com os governos Major, Blair e Brown a sobrecarregarem  o Thatcherismo em vez de o inverterem, a ideologia sobreviveu ao seu iniciador político e foi redenominada neoliberalismo.

A hegemonia do Thatcherismo e do neoliberalismo mudou claramente a direita trabalhista. Ao contrário da era social-democrata de 1945-1979, a ala direita do Partido Trabalhista  tornou-se entusiasta da privatização. Também afastou  mais claramente ainda o Partido face aos  interesses da classe trabalhadora, ao mesmo tempo que se associava mais abertamente com os super-ricos.

O efeito da hegemonia neoliberal sobre a esquerda trabalhista atraiu muito menos atenção, o que era compreensível dada a marginalização da esquerda na era Blair-Brown. Mas, sobretudo,  a Esquerda Trabalhista não era impermeável ao profundo domínio do neoliberalismo. A partir dos anos 90, abandonou silenciosamente os seus compromissos, especialmente para com a ideia de transformar a economia. O impacto foi o de esvaziar a ala esquerda trabalhista do seu carácter distintivo e privá-la do seu objetivo. A ideia de substituir o capitalismo pelo socialismo democrático foi esquecida ou redefinida. Ao invés disso, grande parte da esquerda trabalhista recuou para o liberalismo de esquerda. Preocupações da esquerda-liberal vieram à tona, como a fé nos direitos humanos e nas decisões judiciais, a ênfase excessiva na política de identidade, o foco excessivo em lutas em outras partes do mundo e uma posição  de simpatia para com as instituições supranacionais. Esse “radicalismo” forneceu uma cobertura útil para a aceitação do status quo capitalista. Como argumentado em outros lugares sobre The Full Bexit, houve um abandono generalizado dos interesses da classe trabalhadora. (Ver Analysis #7 – Why Does the British Left Love the EU?Analysis #12 – When the Left Abandons Workers, They Are Easy Prey for the Right, e  #Analysis #16 – Understanding Leave Voters’ Motivation in Northeast England).

 Psicologicamente, a esquerda trabalhista dos anos 90 precisava de sair do seu prolongado estado de marginalização e isolamento. Adotar posições mais próximas das da Direita trabalhista foi um atalho para o fazer. A esquerda trabalhista optou por se identificar mais com o Partido Trabalhista como um todo e menos como uma fação desejosa de substituir o capitalismo.  Assim, a esquerda trabalhista cultivou um clima de construção de consenso, refletido numa    mudança contra a votação Esquerda-versus -Direita nas reuniões do Comité Executivo Nacional do Partido. Quanto às figuras da Esquerda Trabalhista, estas gozavam cada vez mais de uma aura baseada no herói e em laços de amizade pessoal com a  base da Esquerda Trabalhista, mantendo uma postura acrítica e inquestionável em relação a elas.

Contra este pano de fundo de rendição ideológica geral, a estima  da esquerda trabalhista para com a UE desenvolveu-se sem qualquer análise real da sua verdadeira natureza. Esta não é a organização progressista que muitos pensam. As suas “Quatro Liberdades” – de bens, pessoas, serviços e capital – encapsulam uma devoção supra-política e supra-democrática ao capitalismo. A sua política da Fortaleza Europa envolve a gestão de campos de concentração para migrantes não comunitários dentro do território da UE e a externalização e financiamento de outros campos de concentração em países como a Líbia, Sudão e Turquia. A mesma política torna-a responsável pela morte de vários milhares de africanos e outros migrantes no Mar Mediterrâneo todos os anos[1]. O seu tratamento aos cidadãos da Grécia, Espanha, Itália e outros países mais pobres da Zona Euro tem sido terrível e racista. Do mesmo modo, a esquerda trabalhista não presta qualquer atenção à forma como a UE criou um sistema em que as instituições da UE e os líderes nacionais trabalham em constante articulação para entrincheirar e constitucionalizar as políticas neoliberais, tirando-as dos rigores da contestação nacional, da democracia e da responsabilização (ver  Analysis #1 – The EU’s Democratic Deficit: Why Brexit is Essential for Restoring Popular Sovereignty–  – O Défice Democrático da UE: Porque Brexit é essencial para restaurar a Soberania Popular). Por exemplo, as diretivas de liberalização inspiradas em Blair, que fornecem uma garantia permanente de privatização na maioria dos serviços públicos, são rotineiramente varridas para debaixo do tapete pelos apoiantes trabalhistas-esquerdistas da UE. No entanto, apesar da natureza da UE, a maioria da esquerda trabalhista ou gosta dela ou é-lhe  dedicada. Isto só surgiu claramente depois do partido ter eleito Jeremy Corbyn como líder, em resposta às deceções dos líderes de direita Blair, Brown e Miliband.

Capitulação de Corbyn #1

Corbyn aparecia como sendo uma lufada de ar fresco após os longos anos de domínio neoliberal dos trabalhistas. Afinal, ele é, ostensivamente, o primeiro líder de esquerda do partido desde os anos entre as duas guerras. Mas, na verdade, apesar de toda a reviravolta, o seu programa político é modesto e o seu compromisso de introduzir um nível sem precedentes de democracia partidária resultou apenas em melhorias insignificantes.

A elevação de Corbyn coincidiu com o iminente referendo da UE. Nas reuniões de pressão, o candidato à liderança Corbyn disse repetidamente que precisaria de “muita persuasão” para apoiar a adesão à UE, instando as várias atividades neoliberais da organização.  Uma vez eleito, Corbyn desmoronou-se em três dias: o adversário de décadas da UE comprometeu-se a fazer campanha pelo  “Permanecer”  no referend.  Lá se vai a “política honesta”. A sua principal justificação para a sua reviravolta  foi que ele descobriu subitamente que renunciar à adesão à UE significaria uma “fogueira dos direitos dos trabalhadores”. Esta posição é amplamente desacreditada por Mary Davis neste website (ver Analysis #13 – The Chimera of Workers’ Rights in the EU – A Quimera dos Direitos dos Trabalhadores na UE).

 Capitulação de Corbyn #2

Acontece que Corbyn havia desertado do lado vencedor para o lado perdedor. Com o resultado  do referendo, o governo e o Parlamento tinham agora a escolha do acordo que deveria substituir a adesão à UE. A resposta da esquerda trabalhista foi notável no seu vazio (ver Análise #17 – Analysis #17 – Labour Stands Exposed on Brexit). Não criou “linhas vermelhas” de princípio para as negociações sobre questões como a propriedade pública, os auxílios estatais e os contratos públicos. Em vez disso, Corbyn cometeu uma segunda capitulação: iniciou uma campanha de denúncia contra uma saída sem acordo, o No Deal,  e a favor de “tirar a hipótese de sair sem acordo de cima da   mesa “. Corbyn saltou assim para  o comboio do establishment -exagerando excessivamente os riscos do No Deal, e agora é regularmente papagueado em termos apocalípticos pelos seus tenentes John McDonnell e Rebecca Long-Bailey.

Isto tem servido para fazer da esquerda trabalhista uma força do status quo. Nas atuais circunstâncias, o No Deal é o único resultado que tornaria legítimos os objetivos democráticos socialistas de propriedade comum e intervenção estatal a favor da classe trabalhadora (ver Análise #15 – Analysis #15 – Is No Deal the Only Socialist Option? – O No Deal é a única opção socialista?). Sem o No Deal, a mudança fundamental permanecerá legalmente inadmissível. Isto iria, na verdade, paralisar o trabalho na resolução de problemas económicos muito mais graves, como a crise da dívida global que se avizinha. Mais fundamentalmente ainda, impediria o Partido Trabalhista  de criar uma sociedade mais igualitária no lugar do capitalismo. Além disso, “tirar o No Deal de cima da mesa” deixa um governo sem poder de negociação nas negociações com a Comissão Europeia neoliberal. Assim, se um governo trabalhista sob Corbyn ainda estivesse a negociar com a UE, não teria outra alternativa senão aceitar medidas da UE que tornassem a privatização permanente e que conferissem à UE poder sobre os subsídios industriais e os contratos públicos do Reino Unido. “Tirar o No Deal de cima da mesa” também abre as perspetivas de um segundo referendo, que não só teria consequências desastrosas para a esquerda, mas também representaria um limite para a própria democracia britânica (Analysis #20 – Parliament at the Cliff-Edge: Why a Second Referendum Could Destroy its Authority  – Parlamento à beira do abismo: Porque é que  um segundo referendo poderia destruir a sua Autoridade).

O esvaziamento da  ala esquerda trabalhista

Se um governo de esquerda trabalhista não pode nacionalizar grandes setores da economia, não pode apoiá-los através de subsídios industriais que são “incompatíveis com o mercado único” e não pode implantar contratos públicos de uma forma que ajude as pessoas da classe trabalhadora, então o que é exatamente a esquerda trabalhista? A sua única folha de figueira é o seu compromisso de acabar com a austeridade. Mas a anti-austeridade é vaga. Além disso, é precária. Se a esquerda trabalhista no poder conservar o poder da elite económica, a despesa pública continuará, como no passado, totalmente dependente da boa vontade política dessa elite. Desde o final dos anos 70, a elite económica tem sido tudo menos simpática para com as necessidades das “ordens inferiores”. Se um governo Corbyn confinado dentro dos parâmetros da UE aumentasse o imposto sobre o rendimento e as empresas para financiar a despesa pública, isso iria quase certamente provocar a fuga de capitais por parte de empresas poderosas e indivíduos ricos. O Partido Trabalhista  seria impotente para evitar isso, uma vez que os controles de capital são ilegais dentro da UE. Desesperados numa economia globalizada e neoliberal que não tem qualquer intenção de mudar, quanto tempo levaria um governo Corbyn a ceder?

A simpatia  da ala esquerda trabalhista em relação à UE precisa, portanto, de ser contextualizada. Longe de ser impermeável à ideologia capitalista, a onda de maré do neoliberalismo teve um efeito profundo sobre a Esquerda Trabalhista. Cedendo à ditadura neoliberal de que “não há alternativa”, a esquerda privou-se do seu compromisso distinto de criar uma nova sociedade para substituir o capitalismo. Ao fazê-lo, abandonou em grande parte o interesse da classe trabalhadora. Fê-lo muito antes de Brexit surgir como uma questão urgente. O apego da esquerda trabalhista à UE é, portanto, um sintoma, não uma causa, desse desarmamento político.

References

[1] See, e.g., Liz Clark “Inside the EU refugee camp driving people to suicide”, Medecins Sans Frontieres, 8 October 2018; Human Rights Watch, No Escape from Hell: EU Policies Contribute to Abuse of Migrants in Libya, 21 January 2019.

About the Author

Danny Nicol is Professor of Public Law at the University of Westminster and author of The Constitutional Protection of Capitalism (Oxford: Hart, 2010).

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