Carta a Graça Freitas. Por Luís Osório

Espuma dos dias Coronavirus

Seleção de Francisco Tavares

 

Com a devida vénia e agradecimento a Luís Osório, reproduzo aqui na Viagem dos Argonautas a sua excelente “Carta a Graça Freitas”. No entanto, não resisto a deixar aqui o comentário de um médico meu amigo, a propósito desta carta:

Foi minha professora de saude pública e medicina preventiva na faculdade. Pessoa de elevado valor científico e técnico e com um talento para ensinar espetacular. Das pessoas mais humildes que vi ensinar na minha faculdade, sempre aberta a críticas pois tive aulas com ela na sequência de grandes controvérsias de saúde pública que recaíram sobre ela (a vacinação contra o hpv e a aquisição do tamiflu para a gripe das aves). Sempre chamou a ela a responsabilidade das decisões que tomou e sempre teve a postura que tem hoje (quando o escândalo rebentava adivinhem quem o George mandava responder a entrevistas?). Sim pode ter cometido erros de comunicação ou de política mas reafirmo que deve ser a pessoa em Portugal mais competente para lidar com a questão de saúde. Agora não podem esperar que lide com a economia (disponibilidade de meios de protecção no mercado) , com a religião (missas, funerais) ou com a política (25 de abril e afins). Em suma, na minha opinião que não sou especialista em nada estamos em mãos não perfeitas mas muito capazes.”

FT

________________________

Carta a Graça Freitas

Luís Osório Por Luís Osório

Publicado por Comunidade Cultura e Arte.jpg em 15/04/2020 (ver aqui)

84 Carta a Graça Freitas
Miguel Manso/Público

 

Não nos conhecemos. Na verdade, não me parece sequer que nos tenhamos cruzado em alguma circunstância. Mas tenho-a visto (eu e certamente a larga maioria dos portugueses) todos os dias a dar a cara pela evolução da pandemia no nosso país.

Posso imaginar a pressão diária, mas apenas imaginar. Sem dúvida que se nota o cansaço, está mais magra, impossível não o notar. Dá-me ideia, admito desde já a especulação, que se irrita com algumas das críticas que lhe têm sido feitas, pressinto-lhe o enfado.

É exatamente por isso que lhe escrevo.

Quero dizer-lhe que, face às circunstâncias, está a correr bem. Não ligue mais do que a conta à cólera da maledicência e à ignorância atrevida. Nunca se esqueça de que Portugal é o país de onde saíram os navegadores, mas também é o país em que ficaram os velhos do Restelo a dizer mal dos navegadores.

Imagino que a irrite muito.

De repente, a sua história e percurso não servem para nada.

Todo o trabalho de dedicação à saúde pública; a revolução que fez no sistema de vacinação português; as centenas de médicos a quem influenciou com as suas aulas na Faculdade de Medicina; o trabalho de sapa que permitiu que o seu antecessor brilhasse; os elogios internacionais pelo seu contributo nas reuniões do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças.

Não, Dra. Graça Freitas, esqueça.

Para muitos comentadores, autarcas ou agitadores de redes sociais isso não interessa nada. De repente, são todos especialistas no que a senhora estuda há quarenta anos. São imunologistas, matemáticos, físicos e tudo o resto de que se faz o cardápio do grupo de trabalho que lidera.

Errou várias vezes. Teve de alterar previsões. Disse uma coisa nuns dias e teve de se desdizer noutros. Imprudentemente falou demasiado cedo de situações que acabaram por não se concretizar – atenção que em política os murros na mesa nunca se anunciam, dão-se simplesmente. Por vezes falou com demasiada certeza, o que nunca é avisado.

Mas pergunto-me se poderia ser de outra maneira? Existia alguém que pudesse antecipar o que iria acontecer antes de acontecer? Existiu algum precedente que pudesse ajudar a antecipar? Sei que não. E isso obrigou a navegar à vista, a corrigir em mar alto, a tentar que a viagem prosseguisse com o mínimo de danos.

Ao ouvir determinadas pessoas a gritarem-lhe ao ouvido imagino o que seria se não estivesse a cumprir os objetivos. Imagino o que seria se Portugal tivesse os mortos (em proporção) de Espanha, Itália, Inglaterra ou França. Imagino o que seria se Portugal não fosse elogiado pelo New York Times, se o El País não nos definisse como os “suecos do sul” ou se tantos investigadores não estivessem a elogiar-nos pelo trabalho feito nesta primeira fase da pandemia. O que seria, Graça? Consegue imaginar?

Sei que gosta de cuidar das suas orquídeas, li algures. Aposto que também gostará de Confúcio que tratava as orquídeas com paixão e zelo. Gabava-lhes a beleza e a delicadeza. E foi Confúcio quem, muito a propósito, nos deixou a frase definitiva: “O que sabemos, saber que o sabemos. Aquilo que não sabemos, saber que não o sabemos: eis o verdadeiro saber.

____________________________

O autor: Luís Osório é hoje mais um escritor do que um jornalista. Mãe, Promete-me que Lês é o seu sétimo livro e sucede à Queda de Um Homem, o primeiro romance. Foi director de jornais e de uma estação de rádio. É autor de programas de televisão e rádio, encenador, consultor empresarial e comentador político. Ganhou o Sete de Ouro, o Gazeta Revelação, o Prémio Inovação Manuel Pinto Azevedo. Foi nomeado três vezes para os Globos de Ouro pela autoria de Portugalmente e Zapping.

 

 

 

 

 

 

2 Comments

  1. Iniciei um comentário a esta Carta, em complemento do que já havia feito quando a divulguei. Esse comentário saiu-me muito longo e, então, resolvi fazer um texto a publicar neste blogue e para ser inserido nas comemorações do 25 de Abril, para onde remeto o leitor.

Leave a Reply