A Universidade em declínio a Alta Frequência – Carta aberta aos docentes e investigadores de hoje e aos Reitores de amanhã. Por Júlio Marques Mota

Espuma dos dias 2 UNIVERSIDADE 2

 

Assunto da maior importância para a Europa, e também para o nosso país, publicaremos hoje três textos sobre o estado das nossas Universidades, transformadas em Universidades empresas pelo processo de Bolonha, que como bem resumiu o Professor Vitorino Magalhães Godinho é um processo “obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista (…) feito à revelia de professores e investigadores”, processo que parece se irá agravar à sombra da crise provocada pelo Covid-19.

Como diz o Professor aposentado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Júlio Marques Mota, “Bolonha representa mais uma componente deste grande mercado do ensino e formação, vem trazer o primado das competências negociáveis no mercado, dos marketable skills, sobre os saberes. Ou seja, o que se pretende desde logo é que seja o mercado a ditar às instituições universitárias os conteúdos e as práticas de aprendizagem, com a consequente desvalorização dos saberes.

Sobre as recentes declarações do governo, pela voz do secretário de Estado João Sobrinho Teixeira, de que “deve passar a haver “menor carga letiva” e as escolas devem começar a “trabalhar com os estudantes recorrendo a outras ferramentas”, diz Júlio Mota: “pretende-se que se ensine mais e melhor em menos tempo e com menos aulas: trata-se de um novo paradigma. De resto, este foi o argumento a justificar Bolonha”. Sobre isto alerta para a continuação da degradação da carreira docente (redução do número de aulas, precarização laboral, carreiras bloqueadas) e adicionalmente com o tele-trabalho docente (aulas à distância, aulas invertidas) toda uma “panóplia de instrumentos que permitam reduzir os custos com docentes e obviamente com a qualidade do ensino realizado”.

Recorrendo ao exemplo de Itália, onde foi lançado em fevereiro passado, um Apelo intitulado “Desintoxicação: saber para o futuro” com a intenção de gerar um grande debate nacional, o Professor Júlio Mota deixa o desafio para que seja lançado aqui em Portugal um Movimento de Dignificação do Ensino e da Investigação, assim como das carreiras de todos aqueles que nestas áreas trabalham.

Textos a publicar:

  • “Carta aberta aos docentes e investigadores de hoje e aos Reitores de amanhã”, por Júlio Marques Mota
  • “Desintoxiquemos o saber para o futuro”, apelo lançado em Itália por docentes e investigadores
  • “Contra a universidade tóxica, libertemos o conhecimento e a investigação”, por Roberto Ciccarelli

FT

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Carta aberta aos docentes e investigadores de hoje e aos Reitores de amanhã

 

julio-marques-mota Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 29 de abril de 2020

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Foto tomada de empréstimo de dedona.wordpress

 

Professor Universitário durante décadas, estou atualmente na situação de aposentado. Saí antes do limite de idade pelo cansaço que me estava a dar a lecionação, já sob a égide da Reforma de Bolonha, pois desde que se iniciou a aplicação desta reforma a qualidade do ensino baixou, e rapidamente, a pique. Basta pensar naqueles que à pala da transição concluíram repentinamente os seus cursos e com boas classificações. Sobre isto escrevi muito, não vale a pena repetir-me.

Essa minha angústia de professor expressei-a por vários textos ao longo dos anos, sendo certo uma coisa: foi revoltante o silêncio de muitos daqueles que embarcaram no barco da Reforma do Ensino, dita de Bolonha. Quando questionei um destes silenciosos face a Bolonha relativamente à má qualidade das teses que passaríamos a ter, respondeu-me: não te rales, temos uma certa idade. Quem vai ter de ler essas teses não somos nós, serão os mais novos. E a previsão verificou-se: as teses baixaram de qualidade assustadoramente, não por culpa dos alunos, não por culpa dos seus orientadores, coitados que bem se esforçaram para que as teses saíssem limpas, mas por culpa de um sistema que deixou de ensinar com qualidade. Naturalmente assim. Sem ovos, não há omeletes, diz o ditado popular

Todos sabemos, Bolonha foi aplicada com o consentimento, o silêncio de muita gente, uns que discordando não podiam sem grande risco de carreira protestar publicamente, não podiam sem grande risco assumir posição contrária, a carreira de docente é piramidal, outros que, por convicção ou por oportunismo, e isto depende dos casos, mas não sei bem distinguir. Neste processo houve honrosas exceções publicamente assumidas contra essa reforma. No grupo de vozes que se fizeram ouvir contam-se a de Vitorino Magalhães Godinho, a de Luís Reis Torgal.

Não vou aqui fazer a história da minha perceção sobre essa degradação. Relembro aqui, face a essa degradação que todos sabiam que se iria verificar, apenas a posição assumida por Vitorino Magalhães Godinho e por Luís Reis Torgal, em 2010, que são ambas premonitórias do clima que se vive hoje nas Universidades.

Sobre Bolonha e sobre o silêncio dos professores que a acataram, diz-nos Vitorino Magalhães Godinho:

Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro ato de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudoacordo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob as forcas caudinas.

Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal, os problemas da Europa, 2.ª ed., Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 62.

De Luís Reis Torgal relembro, por exemplo, a sua posição assumida em 2010 sobre a trajetória descendente do ensino universitário e do seguidismo nele instalado:

O “processo de Bolonha” veio completar, para o ensino superior, essa acção do camartelo “pedagogista”. (…) A licenciatura tornou-se um mero ciclo de passagem, com uma formação deficiente, e pouco vale como ciclo autónomo. Os mestrados — antes só frequentados por alunos de qualidade e agora abertos a todos, embora alguns pagos a peso de ouro — também necessariamente tiveram de se desvalorizar em termos de formação. E o mesmo está a suceder com os doutoramentos, alguns adquiridos simplesmente com a publicação de dois artigos em “revistas indexadas” (por agências privadas) ou por dissertações que, na minha área, não valem uma sofrível tese de licenciatura do meu tempo.

Claro que os “pedagogistas”, os burocratas e a Senhora Ministra — com a bênção da UE e da OCDE (…) dirão que estou a depreciar a Educação. Ao invés, dir-lhes-ei que estou a lutar por ela, no seu sentido idealista e não economicista e neoliberal, e pela Cultura, que passa por uma profunda crise de identidade. A prova disso é que raramente o espírito crítico se levanta contra a situação existente. O que apenas se verifica é o “seguidismo”, ou o debate em circuito fechado ou em circuito demasiado aberto (no espetáculo quase sempre demagógico da TV), ou a afirmação de revolta, mas só em momentos mais trágicos”. (vide texto integral em https://educar.wordpress.com/2010/04/12/opinioes-luis-reis-torgal/ )

 

Nesse mesmo ano e numa carta aberta ao Ministro de tutela de então, Professor Mariano Gago, escrevi:

Senhor Ministro, não são as instituições e os seus trabalhadores que devem ser avaliados, passados pelo crivo para serem penalizados. Não! É o sistema como um todo que deve ser estudado e necessariamente melhorado, mas só o será com a participação de todos. Só assim as necessárias melhorias poderão ser encontradas. E ninguém duvida que estas são urgentes.”

Em 2012 numa conferência sobre a Reforma de Bolonha no ISEG afirmei:

Bolonha representa mais uma componente deste grande mercado do ensino e formação, vem trazer o primado das competências negociáveis no mercado, dos marketable skills, sobre os saberes. Ou seja, o que se pretende desde logo é que seja o mercado a ditar às instituições universitárias os conteúdos e as práticas de aprendizagem, com a consequente desvalorização dos saberes. Isto é assim na medida em que se quer que seja o mercado o normalizador e quem valida, em última instância, essas formações escolares e os trajectos individuais de cada estudante. Assim se compreende a multiplicidade de opções escolares em muitos cursos, em que as licenciaturas são equivalentes a autênticos menu à la carte, em nome da liberdade e da responsabilidade individual do estudante investidor arbitragista, do estudante que para escolher tem que ser já conhecedor do que precisa de saber, como se fosse possível sabê-lo a priori, apenas a partir dos dados presentes do mercado de trabalho, como se este não fosse instável e, por isto, muitas das vezes imprevisível, como se a decisão individual nunca entrasse em colisão com a de muitos outros que individualmente tomaram a mesma opção.

Neste contexto, a função da Universidade é pois a de criar “especialistas” dotados de um stock de competências que se vendam bem no mercado e ao menor custo, ou seja, que permitam a cada futuro trabalhador entrar no mercado de trabalho. O resto, o que faltar à formação para que cada um se adapte às condições exigidas pelo mercado em cada momento caberá de novo à decisão individual, trabalhador ou empresas, num contexto de um vasto mercado de ensino e formação que se pretende que seja cada vez mais resultante do sector privado.”

Enfim, os anos passaram e fiquei com o sentimento de que as coisas pioraram e fortemente a partir da situação já vivida em 2010. Basta olhar para o quadro legislativo criado sob a tutela de um dos diversos falcões da austeridade para o Ensino Superior, João Gabriel Silva, que se orgulhava de que as condições de trabalho oferecidas aos professores doutorados no desemprego eram das mais favoráveis das oferecidas nas Universidades Portuguesas. Poder-se-á então imaginar como seriam as outras! Uma obra de resto continuada pelo seu sucessor no cargo, o Prof. Doutor Amílcar Falcão, sobre quem já me referi numa Carta aberta recente dirigida ao Ministro do Ensino Superior, aos Reitores de hoje e de amanhã, também, pelo que me dispenso de mais comentários sobre o ensino, sobre a investigação sobre a precariedade instalada nas Universidades. Nesta recente carta aberta referia-me à farsa sobre a avaliação à distância que a Universidade se preparava para levar a cabo, o que mostra bem como o ensino de qualidade é uma prioridade por ela a esquecer, por muito que, naturalmente, se apregoe o contrário. Não comentemos mais o estado da desgraça a que tudo isto chegou.

Curiosamente, hoje, chega-me ao conhecimento via jornais diários na versão eletrónica as declarações do secretário de Estado João Sobrinho Teixeira de que reproduzo excertos da notícia:

“Hoje, o governante lembrou que “Portugal tem uma das maiores cargas horárias por semana” e que a imposição de isolamento social veio trazer um “abanão às aulas presenciais”.

Para João Sobrinho Teixeira deve passar a haver “menor carga letiva” e as escolas devem começar a “trabalhar com os estudantes recorrendo a outras ferramentas”, num ensino também baseado em projetos.

O desafio é conseguir ensinar “de uma forma mais eficaz para que os nossos estudantes possam aprender.

“Já foi aberto um concurso com fundos comunitários para que esta nova noção de aprendizagem possa ser implementada”, afirmou o secretário de Estado, considerando que este desafio é independente daquilo que venha a ser o impacto futuro do covid-19.

Com menor carga letiva, também os professores do ensino superior podem ficar com mais tempo para a investigação”.

 

Bem, daqui saliento apenas duas coisas:

  1. O ensino irá de mal a pior. Chegamos à conclusão que na opinião do governo ensina-se demais. Sabemos a argumentação contrária: pretende-se que se ensine mais e melhor em menos tempo e com menos aulas: trata-se de um novo paradigma. De resto, este foi o argumento a justificar Bolonha. Sou levado a pensar que se pretende que o ensino universitário na sua espiral descendente se aproxima do pior que possa vir a ser feito ao nível dos Politécnicos, onde se utilizará, também aí, a mesma argumentação para provocar uma igual descida para o mundo da ignorância.
  2. A carreira docente, enquanto carreira profissional, terá a mesma evolução. Sobrecarregada com trabalho burocrático, muito dele, tipicamente trabalho puro e simples de escritório, iremos assistir à redução do número de aulas, já que anos não se pode reduzir mais, iremos ver contratos de professores por renovar, carreiras a ficarem ainda mais bloqueadas do que já estão agora por efeito das políticas de austeridade, e de novo, iremos ver professores sobrecarregados com 4 disciplinas por ano, como já vimos em Coimbra nos tempos de João Gabriel. Adicionalmente, iremos assistir, para gáudio dos tecnocratas seguidores da lógica austeritária de Bruxelas, ao tele-trabalho docente, às aulas à distância, às aulas invertidas, enfim, iremos assistir a toda a panóplia de instrumentos que permitam reduzir os custos com docentes e obviamente com a qualidade do ensino realizado. No limite, e por este caminho, a Universidade pode transformar-se numa espécie de mercado cambial, mercado sem território específico, definido pelos computadores e pelas plataformas em que está tudo interligado, recebendo ordens e determinando ordens, talvez até à velocidade expressa pela negociação de alta frequência, em que se utilizam potentes computadores e algoritmos automatizados. Com o seguidismo a que temos estado a assistir não faltarão defensores desta estratégia a apoiar João Sobrinho Teixeira como também houve com o processo de Bolonha agora posto em Itália em forte questão.

Com estas posições, será que por aqui se está já a vislumbrar que o atual governo de António Costa, tão elogiado internacionalmente, e com justa razão, face à incompetência e maldade que grassa por esta Europa amaldiçoada, está já a preparar o terreno para a austeridade que aí virá, ou será esta posição o resultado da incompetência de alguém habituado a estudos superiores curtos e que ainda os quererá mais curtos? Anseio para que seja esta segunda hipótese a explicação para este conjunto de afirmações.

Tudo isto, com mais força de razão, nos chama a atenção para o levantamento do estado crítico do ensino superior e da investigação que é necessário fazer, seguindo de perto o exemplo italiano. Com efeito, este trabalho começa a ser feito, e de forma contundente, em Itália desde há meses e há sinais de que o mesmo possa vir a acontecer em França. No caso italiano está a circular pelas Universidades italianas desde o final de Fevereiro, um texto em que da sua leitura. comentário a comentário, ponto a ponto, se pode chegar à constatação de que a realidade portuguesa e a italiana são realidades muito próximas, senão mesmo justapostas, o que não é de admirar uma vez que o modelo europeu é o mesmo.

Com efeito, em Itália foi lançado um Apelo intitulado intitulado Desintoxicação: saber para o futuro (Apelo lançado em Roars.it) que conta já com mais de 1500 assinaturas com a intenção de gerar um grande debate nacional aquando da reunião dos ministros da Educação e da Investigação que em junho terá lugar em Roma para fazerem o balanço de 20 anos, desde que se iniciou a Reforma de Bolonha. Iniciado a partir de Roars.it este manifesto teve já direito a divulgação pelos jornais il Manifesto, Corriere della Sera, La Repubblica.

Pela qualidade do texto do Apelo-manifesto publicado já em fins de  fevereiro em Itália, considero que este documento pode e deve ser entendido como um documento de reflexão que deverá ser divulgado pelos docentes e investigadores do nosso país e, porque não, por todos aqueles que consideram lamentável a situação em que se encontram as nossas Universidades e que aspiram a um ensino de qualidade que só pode existir com carreiras docentes (e de discentes) assim como de investigação, de qualidade.  Espero igualmente que a partir deste mesmo documento em circulação se possa aqui, como em Itália, lançar um Movimento de Dignificação do Ensino e da Investigação, assim como das carreiras de todos aqueles que nestas áreas trabalham.

 

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