UMA CARTA DO PORTO – Por José Fernando Magalhães (338)

A NOSSA MINI-MINI-MICRO-QUINTINHA

 

Ficava na rua de Tânger e as nossas traseiras confinavam com o Consulado Brasileiro. Era um paraíso desordenado e maravilhoso.

O meu pai transportara para a cidade a sua costela de lavrador e aldeão. Nascido mesmo no centro de Paços de Ferreira, então uma pequena Vila, vivera até vir estudar para o Porto no meio de um terreno com cerca de meio hectare, cultivado na sua maior parte, e onde havia porcos, vacas, galinhas, patos, perus, coelhos e um cavalo com a respectiva charrete, para além das frutas, dos legumes e dos cereais.

O terrenozinho da Rua de Tânger, minúsculo, mas grande no meio da cidade, tinha mais ou menos dez por trinta metros. E o meu pai fez com que tudo lá coubesse.

Imagem Internet

Tínhamos couve, galega e tronchuda, alface, tomate, batata (só me lembro de ter havido uma ou duas vezes), cenoura e cebola, em canteiros estreitos e bem delimitados. Tínhamos um enorme limoeiro, uma pereira e uma ameixieira branca (grandinhas), uma laranjeira e um pessegueiro (estes pequenos). Tínhamos uma ramada em forma de u ao fundo do quintal, por cima do poço, com uva americana tinta, e um casinhoto, que ainda existe, onde havia um pequeno lagar onde o meu pai fazia o vinho. Pendurado na ramada, mesmo ao fundo, junto ao muro onde um esteio muito grande estava deitado a fazer de banco, estava um baloiço. Na parede do fundo e na que delimitava o terreno para nascente, havia quatro bancos de pedra, e um outro, virado para o fundo do quintal por baixo da árvore de brincar e deliciar o olhar.

Mas não ficava por aqui. Havia flores, rosas (desde as minúsculas Sta Teresinha até às trepadeiras com rosas de palmo), hidrângeas, gladíolos, tulipas, jarros, azáleas, agapantos, etc., e uma enorme japoneira (lindíssima) com camélias simples, rosa chá.

E havia as galinhas!

Ao fundo do quintal, mesmo antes da casinha do lagar, estava o galinheiro. E havendo galinhas, havia ovos, e de quando em vez um arrozinho de frango. Isto porque o meu pai tinha ainda uma outra coisa que fazia as minhas delícias.

A casa dos meus pais, um segundo andar (o primeiro e o rés-do-chão estavam alugados naquela época), tinha um sótão, grande. Na altura ainda em bruto, tinha uma mesa de ping-pong, servia para arrumos e, no cimo das escadas que lhe davam acesso, estava uma chocadeira eléctrica. Ao lado, um espaço de cerca de um metro quadrado para onde os pintainhos iam depois de nascerem. Enquanto isso não acontecia, era ver o meu pai diligentemente a virar diariamente (julgo até que duas vezes por dia) os ovos previamente galados, para que o calor se distribuísse igualmente por todo o ovo, durante a gestação. Ao fim de algum tempo, o milagre do nascimento das pequeninas aves era acompanhado com ternura pelos meus pais e por todos nós. Amarelinhos, com uma penugem adorável, víamo-los crescer dia-a-dia, tiritando em grupo compacto debaixo da grande lâmpada vermelha que os aquecia, criar penas, transformarem-se em frangos e estarem preparados para a primeira saída e depois para o novo habitat, o galinheiro. O cheiro à farinha que lhes servia de alimento, ainda hoje faz parte destas minhas memórias.

Chocadeira muito semelhante à que nós tínhamos
imagem internet

Em finais de Setembro era o tempo de fazer o vinho. Adorava pisar as uvas e mais tarde provar o vinho doce. Ainda hoje salivo à lembrança de tal sabor. A colheita raramente produzia mais do que sete ou oito almudes, e a qualidade era simplesmente sofrível, mas para o meu pai, era o melhor que havia. Era dele, feito por ele, com o esforço dele. Tanto o vinho, como as alfaces, as couves, as cenouras e as batatas, e a fruta. Eram um prazer imenso e um orgulho.

Hoje, o quintal chama-se jardim, tem meia dúzia de arbustos encostados às paredes que já não são de pedra à vista mas de cimento pintado de branco, e tem erva/relva.

A japoneira onde eu, os meus filhos, os meus sobrinhos e muitos amigos brincámos, foi deitada abaixo, as outras árvores acabaram por morrer ao longo do tempo devido a velhice ou a doença, a ramada de uva americana teve a mesma sorte da japoneira, os frangos e as galinhas já não vivem naquelas bandas há muitos anos, e a pequena horta não é, há décadas, mais do que uma recordação saudosa. A costela de lavrador / aldeão do meu pai, foi-se antes dele, há muito mais de trinta anos. 

 

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4 Comments

  1. Muito interessante. As ligações à terra mãe não se perdem. Haja vontade.
    Na Foz ainda existem na Avenida D.Pedro IV alguns terrenos cultivados.
    Esta avenida sai da Praça do Império.
    Obrigado e um abraço
    Mário Fleming

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