Das personagens de Charles Dickens reais às personagens não menos reais de hoje – Um texto dedicado à minha neta. Por Júlio Marques Mota

jim-carrey-papel-scrooge-cuento-navidad-robert-zemeckis-1482520470513

 

julio-marques-mota Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 16 de junho de 2020

 

A propósito do texto editado hoje no blog A Viagem dos Argonautas, intitulado Não há bancos alimentares? As Leis dos Pobres e Charles Dickens há  150 anos

Hoje a minha neta faz 18 anos. Um dia muito especial que será vivido em situação de Covid 19 com todas as limitações que esse facto impõe. É pena. Pena por ela que tenha sentido que o dia se reduzia a um pouco mais que o habitual, a família, em vez de um dia de referência na sua vida com amigos e amigas, pena por todos nós que somos assolados por uma enorme crise de consequências ainda imprevisíveis, pena por todos aqueles que vão crescer num mundo de sequelas que esta crise vai deixar por muito tempo .

Sem discursos nem sentimentos especiais à volta desta data dedico-lhe esta peça, sublinhando que hoje também muita gente está a viver os tempos de Dickens e também porque há uma fina cumplicidade entre nós os dois em termos de afetividade estabelecida à volta do autor Charles Dickens, dos seus livros e dos filmes que a partir deles foram produzidos. Dos livros relembro o primeiro contacto que com Dickens ela e eu tivemos, pois era eu que lhe lia desde tenra idade as histórias para ir dormir. Nestas estavam sempre histórias que no tempo da minha infância nunca li, pela simples razão que faço parte do grupo definido por Soeiro Gomes dos homens que nunca foram meninos. E assim conhecemos como primeiro livro de Dickens, Scrooge, a que mais tarde se seguiram outros. Depois relembro os dois trabalhos que para o ciclo fez sobre obras de Dickens e já mais velha relembro as diversas versões de Scrooge em filme, que visionámos em vésperas de Natal.

E por arrasto dedico também esta peça a uma avó desconhecida e hoje por mim incapaz de ser reconhecida. Nesse dia, quando vimos o filme, O Homem que Inventou o Natal de Bharat Nalluri, estavam quatro pessoas na sala, eu e a minha neta, uma avó e o seu neto, nós colocados nas filas do meio, ela e o seu neto nas primeiras filas. Leram-se as letras mágicas, FIM, as luzes acenderam-se e ela o neto levantaram-se e, curiosamente, esperaram por nós para me afirmar em jeito de pergunta: uma vergonha, indicaram este filme para crianças. Não acha? Tive de estar a explicar tudo ao meu neto. Olhei para ela, ela uma avó típica da pequena burguesia, ele, um neto a esperar ansiosamente que lhes desse razão. Com muita calma, respondi-lhe; sabe, este filme foi feito a pensar nas pessoas e nas crianças que as acompanham que tenham já lido o livro Um cântico de Natal, pois faz a ligação entre a vida real do autor, a sociedade daquele tempo e os meios de que se serve para criar a ficção que viu retratada no filme. Faça então o caminho inverso, pegue no seu neto, vá ali abaixo, à Bertrand, compre o livro e à noite leia capítulo a capítulo ao seu neto. Terá então duas alegrias, a de ter a sua companhia, interessada na magia da história, e a de o estimular à leitura. Ganhará o gosto da leitura e ajudará por essa via a fazer dele um Homem. A arte, ajuda, sabe. Bom Natal, disse-lhe em jeito de despedida.

Relembrar Dickens é também olhar atentamente para os tempos de hoje. Muito mudou, é certo, dos tempos de Dickens para agora, mas com os Diabos, os problemas são os mesmos se bem que embalados em papéis de celofane de tonalidades diferentes. Os bancos alimentares, ou a falta deles, estão aí a demonstrá-lo, porque durante décadas, pedra após pedra, se desmantelou o sistema Estado Providência que assegurava também os mecanismos de apoio com dignidade a quem caía em dificuldades. Hoje são milhões, muitos milhões mesmo a viverem os tempos de Dickens, a viverem um mundo que não podemos nem devemos querer mais. E as personagens reais de Dickens voltaram em carne viva às páginas dos jornais e aos canais de televisão e, tal como no século XIX, no século XXI também não são ficção.

Os bancos alimentares faltavam no tempo de Dickens, os bancos alimentares faltam hoje e com a classe média cansada de estar sempre a dar, como se, do outro lado, o sistema económico e a sua cúpula, o Estado, não existam. O texto de Dickens intitulado Cântico de Natal é publicado em 1843 e cerca de 90 anos mais tarde, em 1933, no país mais rico do mundo, ouviu-se uma voz, que perdura até aos nossos tempos, que se levantou contra a caridade instituída como solução e com a qual se viveu ainda agora no período 2010-20 na Europa. Esse alguém foi Marriner Ecclles, Presidente do Federal Reserve americano ao expor, comentar e criticar uma situação em muito semelhante à que atravessámos de 2010 a 2020, e continuamos a atravessar, e que, tal como Dickens, se manifestou contra a injustiça do sistema. Numa audição célebre no Congresso, afirmou Marriner Eccles:

Apoio ao desemprego.

Sem entrar em pormenores ou números, é reconhecido por todos que o nosso problema mais urgente e agudo de hoje é proporcionar imediatamente um apoio adequado aos milhões de pessoas que se encontram desprovidas e desempregadas em todos os cantos da nossa Nação. É uma vergonha nacional que tal sofrimento seja permitido neste país, o país mais rico do mundo. A atual situação não é culpa dos desempregados, mas sim dos nossos dirigentes empresariais, financeiros e políticos. É incompreensível que muito do povo deste país continue, estupidamente, por muito mais tempo a sofrer os desperdícios, a comer a sopa dos pobres, a cometer suicídios e a viver em  desespero, e a ver-se forçado a morrer, a roubar ou a aceitar uma miserável ninharia sob a forma de caridade de que se ressente, e de que se ressente com justa razão. Ou adotamos um plano que dê resposta a esta situação sob o capitalismo, ou adotamos um plano que funcione sem capitalismo.

A caridade privada está quase totalmente esgotada. É impossível que a maioria das nossas subdivisões políticas disponibilize fundos adicionais através da obtenção de empréstimos ou da tributação. Muitas delas estão atualmente em falta no cumprimento das suas obrigações e não podem fornecer os fundos necessários para pagar as despesas das suas escolas e do governo local.

Faço parte da Comissão Executiva de Assistência ao Desemprego do Governador do meu Estado e, embora esteja certo de que os desempregados recebem tanto ou mais do que em muitas zonas do país, os fundos disponíveis são totalmente inadequados para fazer face à situação, que se está a tornar diariamente mais difícil de controlar. Defendo que o Governo disponibilize, como a mais urgente de todas as medidas de emergência, pelo menos 500.000.000 dólares a distribuir pelos Estados, conforme as necessidades, a título de donativo e não de empréstimo, numa base per capita , em montantes que permitam às organizações de ajuda humanitária de cada Estado cuidar das necessidades dos desempregados de uma forma mais adequada do que até agora tem sido possível. Por esta razão, quando é feito como empréstimo, existe uma resistência à aceitação de empréstimos. Há um corte até um certo ponto, o ponto em que é dominante a fome. Quando um Estado tem de pedir emprestado o dinheiro, essa é a atitude das autoridades públicas que resulta das exigências dos dirigentes empresariais e dos contribuintes em geral em matéria de economia.

Senador WALSH do Massachusetts. Quando se trata de um presente não há tampa, não há limite?

Senador GORE. Onde é que o Governo Federal obtém este dinheiro para dar aos Estados?

MARRINER ECCLES. Onde é que arranjou os 27.000.000.000 dólares durante a guerra para os desperdiçar?

Senador GORE. Uma situação muito diferente.

(…)

MARRINER ECCLES. Fazer menos seria falhar no primeiro dever do governo, a proteção da vida dos seus cidadãos.”

E agora se substituirmos Estados federados (nos EUA) por estados membros da União Europeia e o Governo Federal dos EUA por Comissão Europeia vejamos aqui, escrito em 1933, uma brutal critica em forma contra a política seguida pela União Europeia sobretudo depois de 2010:

O programa que propus é, em grande medida, de carácter de emergência, destinado a uma rápida recuperação económica. Contudo, quando a recuperação da economia estiver restabelecida, creio que, para evitar futuras depressões desastrosas e manter uma prosperidade equilibrada, será necessário, durante os próximos anos, que o Governo assuma um maior controlo e regulamentação de todo o nosso sistema económico. Para tal, é necessária uma distribuição mais equitativa da produção de riqueza, a fim de manter o poder de compra num equilíbrio mais equilibrado com a produção; para tal, deverá haver uma unificação do nosso sistema bancário sob a supervisão do Banco de Reserva Federal, a fim de controlar mais eficazmente todo o nosso sistema monetário e de crédito; um elevado imposto sobre o rendimento e sobre as sucessões é essencial para controlar as acumulações de capital (esta divisão dos impostos deve ser deixada exclusivamente ao governo central – o imposto sobre a propriedade imobiliária e o imposto sobre as vendas deixado aos Estados [federados]; deveria haver leis nacionais sobre trabalho infantil, salário mínimo, seguro de desemprego e pensões de velhice (estas leis deixadas ao critério dos Estados [federados] apenas criam confusão e não podem satisfazer a situação a nível nacional, a menos que todos os Estados aprovem simultaneamente leis semelhantes e uniformes, o que é improvável); todas as novas questões de capital oferecidas ao público e todos os financiamentos estrangeiros deveriam receber a aprovação de uma agência do Governo Federal; este controlo deveria também estender-se a todos os meios de transporte e comunicação, a fim de assegurar o seu funcionamento no interesse público. Para uma coordenação adequada das atividades públicas e privadas do mundo económico, é necessário um conselho de planeamento nacional, semelhante ao conselho das indústrias durante a guerra.

Os tempos de Dickens aí estão e a incapacidade de resposta das Instituições face a eles é também ela visível. Basta só pensar que os efeitos da pandemia seriam muito mais baixos se ao nível europeu e do mundo em vez de se andar a esmagar tudo em nome das contas certas e de um futuro incerto se procurasse assegurar uma futuro mais ou menos  certo, seguro para as respetivas populações. Ora, para este sistema certo, um sistema de saúde sólido é uma condição necessária, mas não suficiente, e na primeira fase da pandemia tudo falhou e a expansão da pandemia deu-se. Para tudo isto falta-nos, a nós cidadãos da Europa, uma política macroeconómica coordenada a nível europeu com investimentos e políticas de futuro e com mecanismos de proteção às famílias. Nada disto existe hoje e o texto de Marriner Eccles assenta que nem a luva à situação da União Europeia, o que mostra a importância das posições críticas que contra esta podem ser levantadas e divulgadas e, sobretudo, defendidas.

Espero que a minha neta venha a fazer parte das gentes que tudo farão para que esses tempos à Dickens sejam banidos de uma vez para sempre e que Dickens e os seus livros passem a ser apenas relíquias do passado, a nunca esquecer, e nada mais que isso.

Estes são os meus votos no seu dia de aniversário em que passa à idade adulta.

 

Leave a Reply