CARTA DE BRAGA – “outra gente noutro lugar” por António Oliveira

Li a estória num diário e não resisto a deixar aqui um pequeno resumo.

«Tinha dedicado uns dias de confinamento a arrumar e ordenar estantes e pensei deixar alguns livros no portal do prédio, para os meus vizinhos escolherem e levarem, para não lhes ficar tão pesado o isolamento. Deixei, nas escadas, uma nota a explicar isto e, apesar da inegável riqueza cultural e da variedade dos livros escolhidos, uns dias depois vi que não tinham levado um só livro, mas havia uma nota para os tirar dali o mais depressa possível. Tinham medo de os livros estarem infectados, apesar de saberem muito bem qual tinha sido a minha vida antes e durante aqueles dias».

Não acredito que esta crise com origem num bicho, o ‘corona’, seja uma guerra, mas um bem complicado exercício de sobrevivência, quando muito de uma guerra que agora começámos contra nós mesmos, pois os vírus já aqui estavam, mesmo muito antes de aparecermos.

Há quem os não considere formas de vida, mas cá vão permanecer, quando já tivermos destruído as condições de aqui continuarmos o que, a ver pelo que se tem discutido nestes últimos anos, não deve tardar muito.

O indescritível abate de árvores em todos os continentes, para mineração, novos cultivos, extracção de petróleo, criação intensiva de gado, a que se junta a destruição dos gelos milenares, para novas rotas comerciais ou outras, usando os mares árcticos, acabaram por soltá-los dos abrigos onde estavam acoitados há séculos.

E eles aí estão, com uma eficácia e sistemas de expansão desconhecidos, pondo à prova os avanços da nossa tecnologia, por se terem posto de lado um número infindável de artigos, obras e ensaios, a avisar do que aí viria e não nos prevenimos, mesmo nas coisas mais simples.

É de lamentar que não tenha havido um maior número de alertas para uma situação que foi prevista por diversas organizações, nomeadamente aqui nos Estados Unidos, onde existiram algumas das melhores previsões e soluções ao nível de vacinas e de campanhas de vacinação, que não foram ouvidas pelos respectivos governos’ afirmou o cientista português António Damásio ao DN, em Abril passado.

E as primeiras e mais numerosas vítimas foram os mais vulneráveis, os nossos ‘velhos’, a maturescência que todos desejaríamos atingir, aquilo que, em princípio, até poderia ser mais meia vida, com a qualidade que deveríamos merecer.

Mas, talvez em conluio com os ‘donos das finanças’ do mundo inteiro, os tais ‘coronas’ encarregam-se de os abater, por já não puderem ser usados como mão de obra produtiva e, ‘aquartelados’ ou ‘afavelados’ pelas pressões enormes que tais ‘senhores’ exercem em tudo quanto é sítio, se transformaram nas primeiras e maioritárias vítimas de uma ‘guerra’ que nem era a deles!

Tudo isto pode envolver uma questão bem mais grave, também a ser considerada agora. O escritor e filósofo Josep Ramoneda, escreveu há poucos dias ‘quando o Estado se põe a dar ordens «pelo nosso bem» e além disso o faz reforçado pelo uso abusivo da legitimidade científica, dá medo’.

E Ramoneda salienta (deixo-o aqui ipsis verbis), ‘parece que en el posconfinamiento, la capacidad de decidir por sí mismo será decretada selectivamente, excluyendo a determinados sectores sociales, empezando por la gente mayor, por supuesto’.

Não pretendo discorrer a partir de um ‘parece’ mas, para uma pessoa como Ramoneda escrever tudo isto, é porque a política já se deve ter demitido da sua função mediadora, entre necessidades e ideologias.

Norberto Bobbio, o grande filósofo italiano, já o tinha abordado e garantido num dos seus escritos, ‘a inserção dos velhos no mercado, como clientela, levou-o a cortejá-los por serem portadores de novos pedidos de mercadoria’.

Mas, agora, a pandemia do ‘corona’, leva o mercado a estabelecer novos parâmetros e, tudo leva a crer que se tenham convertido numa pedra no sapato, por serem os mais vulneráveis, estabelecendo ainda a necessidade urgente de optar entre economia e velhos.

Uma posição já devidamente assumida e interiorizada nalguns sectores, a ver pelas palavras (já aqui referidas) do vice-governador do Texas à Fox News ‘Os mais velhos preferem morrer a deixar a economia afundar’.

Mas, voltando atrás, àquele ‘parece’ de Ramoneda, Fernando Savater escreve ‘Agora não é propriamente Deus que nos castiga, mas as contradições do capitalismo e os pecados a que chamam consumismo, individualismo, patriarcado, rejeição do diferente, ecocídio, lucro e avidez’.

Sei que o pós-confinamento vai levantar imensas questões e não menores problemas e, até por isso, termino esta Carta com duas frases avulsas recolhidas algures, por também me ‘parecerem’ achegas para muitas dessas questões.

A vida é um sopro de ar numa ruela sem saída

Não sei como sairemos disto mas, quando sairmos, seremos outra gente noutro lugar

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

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