Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street (1/5). Por Júlio Marques Mota

Nota do editor

Dada a extensão deste texto de introdução à série Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street, o mesmo será editado em 5 partes. Hoje é publicada a parte I.


Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street (1/5)

 Por Júlio Marques Mota

                                        Coimbra, 30 de Maio de 2021

 

Parte I – Uma racionalidade dos mercados não encontrada – a razão de ser de uma nova série de textos

Depois da série de textos sobre GameStop, supostamente uma série sobre os operadores a retalho e sobre a confusão da esquerda face aos mercados financeiros, fomos sacudidos por dois acontecimentos maiores, duas grandes falências, a do banco Greensill na City de Londres e a do fundo Archegos em Nova Iorque. Curiosamente, a ideia desta série surgiu-me quando me aparece na minha caixa de emails um texto de Axios Capital com o seguinte gráfico:

Olho para isto e recordo-me do que se passou com as ações GameStop, com as vendas a descoberto de fundos especulativos gigantes contra a “populaça” dos pequenos operadores a retalho. Na altura nada sabia do assunto, nunca tinha ouvido falar nem de Robinhood, nem de Reddits, nem de Wall Streetbets. Foi uma série curiosa, supostamente sobre uma luta de gigantes, os Golias, contra os pequenos investidores, os David. E no meio aparecia a esquerda a defender que Wall Street também era um local para os “pobres” para os pequenos investidores que queriam completar o seu pé-de-meia ou o seu fim-de-mês. Uma terrível ilusão muito bem explicada pelo último texto dessa série assinado por Eric Levitz do New York Times e intitulado “A vertiginosa subida dos títulos GameStop expõe os perigos do Populismo Meme”

O gráfico acima levantou-me a questão se estaríamos ou não perante uma situação semelhante à de GameStop mas agora conduzida por outros operadores, por outros atores. E não me enganei, era uma outra versão da mesma coisa conduzida por gigantes de Wall Street utilizando instrumentos financeiros sofisticados como os swaps de retorno total. Entre estes gigantes contam‑se Credit Suisse Group, UBS Group AG, Goldman Sachs Group Inc., Morgan Stanley, Deutsche Bank, Mitsubishi, Nomura Holdings e outros . Se GameStop representava o jogo de milhões com tostões a fazerem subir os títulos GameStop contra uns poucos mas com milhões no jogo, o jogo agora era completamente diferente: eram apostas de milhares de milhões apoiados por uns poucos mas muito grandes bancos a fazerem subir as cotações das ações que alguém, os muitos milhões de pessoas que de dinheiro só têm de tostões, a populaça, haveriam depois de comprar e de pagar.

O jogo agora desencadeado, e com que violência, mostrou duas coisas:

  1. Os dados fundamentais que levam à grande crise financeira que rebentou em 2008 estão presentes nas duas grandes falências agora ocorridas, uma alavancagem extrema, caso Archegos, uma titularização elevada no caso das dívidas de Greensill a lembrar a titularização das hipotecas em 2008. Curiosamente e tal como em 2008 esteve presente o incumprimento no pagamento dos reforços de margem de fundos, caso de Archegos.
  2. Os dados desta crise continuam a assinalar que a tese de Jeremy Grantham, de que se caminha a passos largos para se dançar a última dança do capitalismo financeiro tal qual hoje o conhecemos é ainda e com força de razão, uma hipótese pertinente a reter.

No caso presente, o valor de um conjunto de ações disparou em alta e os grandes operadores cegos pela ganância dessa subida e dos lucros fabulosos que a mesma procurava assegurar, não se terão questionado sequer sobre os fundamentais dessas empresas, tal qual como ninguém se questionou sobre os valores GameStop antes da crise rebentar. Aconteceu exatamente o mesmo com a crise GameStop pois esta tornou-se visível apenas quando alguns dos grandes especuladores a descoberto não aguentaram a pressão de muitíssimos pequenos retalhistas juntos. Esses grandes operadores eram demasiado grandes para não serem resgatados. E foram-no. Naturalmente assim.

A força supostamente adquirida pela multidão dos pequenos operadores contra os Golias da especulação, os reddits contra os grandes operadores de Wall Street levou a esquerda “oficial” a pensar que se podia democratizar Wall Street. Esta posição significava inclusive que se estava a ignorar que alguns dos tubarões de Wall Sreet jogaram e montaram no cavalo dos pequenos operadores e saíram depois a tempo. Naturalmente assim também.

Houve ainda outros como Bill Miller, de Miller Value Partners, que deixou de ganhar “apenas” 800 milhões por ter saído um pouco ante do tempo, por ter vendido a sua posição sobre GameStop antes das ações por efeito Reddit terem disparado em alta. Só isto, por si mesmo, dá a dimensão do jogo em Wall Street. Tratava-se de um fundo que investia sobretudo em ações valor e achava que esse efeito valor teria chegado ao fim, quando as ações GameStop teriam atingido um valor que estaria em linha com os fundamentais do mercado. Não imaginaria que o investimento em ação valor era violentamente substituído pelo investimento em ações crescimento e que com esta mudança poderia ter ganho 800 milhões!

Tudo isto nos levou a criar uma série que será à imagem e semelhança da anterior sobre GameStop, mas onde agora se falará sobretudo dos ricos, dos ricos que têm escritórios de gestão familiar dos seus patrimónios, dos ricos que estão à frente dos grandes bancos e cuja avidez como se disse não tem limites. Falaremos deles como falaremos da construção de um sistema que é feito para os servir e das ferramentas financeiras de que se servem para os resultados que se veem. As duas séries mostram quanto Boogle tinha razão ao afirmar:

“Os grandes bancos de negócios americanos poderiam trabalhar uma semana por ano e fechar as suas portas durante todo o resto do tempo sem que isso tenha um qualquer impacto sobre a economia real.

John Bogle, o fundador do grupo financeiro Vanguard, é uma lenda da finança. Criou em 1976 o primeiro fundo de investimento construído sobre os índices bolsistas. E com 85 anos, denuncia o parasitismo crescente da indústria financeira que ele próprio contribuiu para criar.

Nada menos que 32 milhões de milhões de dólares em títulos são trocados todos os anos em Wall Street e diríamos praticamente sem nenhum impacto positivo em termos de investimentos, explica ele. E o financiamento das empresas e da economia, a razão da existência de Wall Street, representa uma fracção ínfima da actividade da indústria financeira. Os grandes bancos de negócios americanos poderiam trabalhar uma semana por ano e fechar as suas portas durante o resto do tempo sem que isso tenha qualquer impacto sobre a economia real…

“O ofício da finança é a de colocar o capital nas sociedades. Fazemo-lo com 250 mil milhões de dólares por ano sob a forma de introduções de empresas na Bolsa e sob a forma também de aumentos de capital” declara John Bogle à revista Time.” E que fazemos para além disto? Levamos os investidores a trocarem entre si cerca de 32.000 mil milhões de dólares de títulos por ano. Por conseguinte se calcular bem, 99% do que se faz nesta indústria consiste em trocas de uma pessoa com outra no único interesse da intermediação. É um desperdício considerável de recursos.”

Porque 32.000 mil milhões de dólares, é quase o dobro do PIB dos Estados Unidos constituído essencialmente por uma renda que consiste em sacar uma percentagem, aconteça o que acontecer à transação, pela intermediação, como se de uma portagem se tratasse, e de que na maior parte do tempo não traz nada de positivo à economia e ao investidor da economia real cujo título serve de suporte à intermediação. de suporte real.”

John Bogle citado por Mitch Tuchman em Why 99% of trading is pointless, texto publicado por Market Watch e disponível em http://www.marketwatch.com/story/why-99-of-trading-is-pointless-john-bogle-2015-07-30

 

Nesta próxima série ir-nos-emos centrar na análise dos mercados financeiros ou melhor, sobre uma sociedade estruturada de tal forma que um dos seus pilares reputados fundamentais, o sistema financeiro, assenta na ganância mais descarada e de tal forma que esta só tem como limite o céu. Tomaremos como referências as duas falências de agora, Archegos e Greensill, assim como variadas situações dos mercados.

O terreno desta série é um terreno difícil, opaco, como diz Gillian Tett do Financial Times, onde é preciso esgaravatar muito para perceber o que está por debaixo da superfície polida com que o sistema é caracterizado: a transformação de créditos de curto prazo, aforradores e bancos, para créditos de longo prazo, bancos e investidores da economia real. Para lá desta função e ligada a ela está a intermediação financeira, que nos diziam que tinha desaparecido com o big bang de Thatcher. Esta intermediação é assegurada pela complexidade cada vez maior de canais a que podemos chamar sistema financeiro em sentido restrito e de uma enorme complexidade compreensível apenas pelas elites financeiras, elites estas que podemos considerar como um enorme grupo social, grupo parasitário, diremos que vive da apropriação (saque) do rendimento criado algures, de transferências como delicadamente lhes chama Stiglitz.

O colapso de Greensill, banco de financiamento da cadeia de abastecimento oferta e o do fundo familiar Archegos na ordem de muitos milhares de milhões e que envolveu bancos como Morgan Stanley, Deutsche Bank, Nomura, Credit Suisse, Mitsubishi e outros, levam-nos, pois, a questionar o sistema financeiro atual. Um trabalho difícil porque exige por um lado um domínio dos instrumentos utilizados nesses mercados, nem sempre fáceis de perceber e de explicar em termos simples e, por outro lado, exige que entremos na lógica de quem vive nesse sistema e que não tem nada a ver com a nossa.

Duas falências brutais, Archegos em Nova Iorque e Greensill na City de Londres, dois momentums que nada mais são do que réplicas do que aconteceu em 2008, com Madoff, falecido há dias, e com o Banco Lehman Brothers. Dois momentums a significarem que possivelmente pouco mudou desde a grande crise financeira que rebentou em 2008 e a ilustrarem, e bem, a tese de Lampedusa de que é preciso que alguma coisa mude para que tudo possa ficar na mesma. E tudo ficou na mesma como agora se confirma com estas duas falências.

Diz-nos Matt Levine da Bloomberg que os bancos estão sempre em boa situação quando a economia vai bem e também quando esta vai mal, quando os tempos são estranhos ou bizarros como é o caso com a pandemia Covid 19.  A demonstrá‑lo cita Matt Levine alguns dos relatórios dos grandes bancos globais: 

  1. JPMorgan

“A época de lucros dos bancos americanos começa hoje, com JPMorgan Chase & Co., Goldman Sachs Group Inc. e Wells Fargo & Co. todos a reportarem esta manhã, e foi sem dúvida o melhor trimestre de sempre para os bancos. JPMorgan escreve:

Os negociadores da JPMorgan Chase & Co. acabaram por fechar o primeiro trimestre de 2021, o melhor trimestre de sempre da empresa, mas as ações caíram quando o banco avisou que a procura de empréstimos continuava tépida.

As comissões do banco de investimento subiram 57%, superando as estimativas dos analistas e aumentando o rendimento líquido para 14,3 mil milhões de dólares, o maior ganho de sempre do JPMorgan num único trimestre. Uma libertação de reservas maior do que o esperado se adicionou aos ganhos inesperados, uma vez que o banco determinou que não precisava de tanta coisa para perdas futuras de empréstimos. (…)

JPMorgan relatou 14,3 mil milhões de dólares de receitas líquidas sobre 32,3 mil milhões de dólares de receitas brutas. Desse montante, 5,2 mil milhões de dólares provêm de reservas libertadas: JPMorgan depreciou os créditos nos trimestres anteriores porque a economia era má e calculou que esses empréstimos iriam entrar em dificuldade de liquidação mas na realidade a economia acabou por ser boa, por isso agora calculou que esses empréstimos serão bons. Mas outros 9,05 mil milhões de dólares provinham das transações em bolsa:

Os operadores em bolsa do banco geraram 9,05 mil milhões de dólares de receitas no primeiro trimestre, mais 25% do que um ano antes e excedendo as expectativas dos analistas. Isto incluiu um aumento de 47% nas ações e um salto de 15% nos rendimentos fixos. As receitas de operações na bolsa permaneceram elevadas após um ano recorde, à medida que a pandemia de coronavírus se propagava nos mercados e fazia disparar em alta a volatilidade.”

 

  1. Goldman Sachs

“O Goldman Sachs Group Inc. aproveitou outro período de grande celeuma para os seus operadores em bolsa e banqueiros de investimento, com receitas e ganhos a subir para um valor recorde.

As receitas das operações em bolsa subiram 47% para 7,58 mil milhões de dólares, alimentadas por ações. Os negociadores do Goldman também contribuíram para o trimestre positivo, com as comissões dos bancos de investimento a subirem 73%. As receitas da subscrição de ações quadruplicaram para 1,57 mil milhões de dólares, enquanto o mercado em ascensão para empresas de aquisição de fins especiais e ofertas públicas iniciais de empresas tecnológicas deu aos banqueiros uma bonança nos primeiros três meses do ano.

Os investidores procurarão sinais de quanto tempo as Ofertas Iniciais de Venda manterão a máquina a rugir no banco de investimento, que teve uma extraordinária passagem pela crise do Covid-19. No ano passado e desde que a pandemia mortal perturbou pela primeira vez a economia global, a Goldman Sachs beneficiou da resultante onda de volatilidade do mercado e de empresas que exploram mercados de capitais amplamente abertos.” (…)

 

Do lado europeu e nestes tempos bizarros, para utilizar a expressão de Matt Levine, o otimismo dos grandes tem o mesmo registo. Dizem-nos, por exemplo, sobre o Deutsche Bank, o banco que vive assente em toneladas de produtos derivados ultra perigosos.

  1. Deustche Bank:

“- O Deutsche Bank relatou que o seu trimestre mais rentável desde 2014 foi o 1º trimestre de 2021, impulsionado pelo seu banco de investimento.

– As receitas líquidas do banco de investimento da empresa aumentaram 32%.

– O Deutsche Bank evitou as consequências da explosão do fundo Archegos e ajustou-se a uma economia normalizante.

O Deutsche Bank teve o seu trimestre mais rentável desde 2014, no primeiro trimestre de 2021, como mostrou a divulgação dos lucros do banco na quarta-feira. Em grande parte, isto deveu-se ao ramo  de investimento bancário da empresa, que registou um aumento de 32% nas receitas líquidas nos primeiros três meses do ano.

O crescimento das receitas do banco de investimento, juntamente com um salto de 23% nas receitas líquidas da divisão de gestão de ativos e um desempenho estável do sector bancário privado e empresarial, resultou num crescimento total das novas receitas de 14% para 7,2 mil milhões de euros.”

Parafraseando Matt Levine poderíamos então afirmar:

O primeiro trimestre de 2021 nas grandes economias é invulgar na medida em que (1) a economia é boa, mas (2) tudo continua a ser bastante louco. Os dados económicos são geralmente bons e a bolsa de valores está num nível recorde, mas o primeiro trimestre também apresentou casos como o GameStop, Archegos, Greensill“. A isto adicione-se o boom nas Ofertas Públicas de Venda (OPVs) das empresas de aquisição com fins especiais (SPACs). Mais os objetos não fungíveis [NFTs-Non Fungible Tokens], que na realidade não são um negócio de grandes bancos universais, mas que ainda se sentem de alguma forma relevantes aqui.

É pois a análise destas duas réplicas de 2008, o caso Archegos e o caso Greensill, que esperávamos não voltassem a acontecer (imagem e semelhança de Madoff e Lehman Brothers), que iremos expor através de uma longa série de textos onde se mostra à evidência que estamos num sistema obrigatoriamente disfuncional, onde um dos seus principais pilares, o sistema financeiro, não é nada mais que um complexo casino onde durante 51 semanas de cada ano o que se faz são, sobretudo, apostas sobre apostas, onde se consomem e destroem milhares de milhões de dólares, senão mesmo milhões de milhões.

E este casino é, por seu lado, dinamizado por homens cuja ganância tem por limite o céu e sustentado por um complexo jogo de portas giratórias. Exemplo disso é o ruído brutal que se verificou em Londres quando se conheceu parte da composição dos consultores do banco agora escandalosamente falido. E de entre estes nomes destacam-se:

  1. David Cameron, Ex-Primeiro Ministro Britânico – Conselheiro especial no Conselho de Administração da Greensill Capital
  2. Julie Bishop, Ex-Ministra dos Negócios Estrangeiros Australiana – – Conselheira especial junto da Administração da Greensill Capital
  3. Bill Clothers um alto funcionário da Administração Pública tornou-se um dos diretores da Greensill Capital
  4. David Blanket, ex-ministro do Interior no governo de Tony Blair – aconselhamento na Greensill Capital para pagamento antecipado de salários (Earned Wage Access [1])
  5. Louise Casey, Baronesa Casey de Blackstock, Presidente do Institute of Global Homelessness. Consultora da Greensill Capital para pagamento antecipado de salários (Earned Wage Access).
  6. Sir Hoganhow, Ex-alto funcionário do Departamento de Polícia Metropolitana – conselheiro na atividade do financiamento antecipado do pagamento de salários da Greensill Capital.
  7. – Maurice Thompson Presidente da Greensill Capital: Director da WH Smith e Ex-Chefe Executivo do Citibank Japão
  8. – Directora Tracy Clark: Ex-Chefe da Banca Privada na Standard Chartered
  9. – Conselheira Sénior Patrícia F Russo: Presidente da Hewlett Packard Enterprise, e pertencente ao Diretório da General Motors.

Esta série está centrada sobre acontecimentos cujos efeitos só agora começam a ficar clarificados dada a opacidade dos meios financeiros. Por esta razão não podemos ainda considerar esta série como concluída. Dito de uma outra forma, diremos que é uma série que ainda continua em construção e à medida que mais informações forem publicadas.

No seu esquema geral os textos selecionados ou ainda a selecionar serão agrupados por três textos de enquadramento e por quatro partes:

      Enquadramento prévio

    • O longo declínio e extinção da lei Glass-Steagall, por Frontline
    • O Sr. Weill vai a Washington, por Frontline
    • A Revogação da lei Glass-Steagall: Não foi uma causa mas sim um multiplicador, por Barry Ritholtz
  1. Questões aos mercados
  2. Greensill e a desregulação dos mercados globais
  3. Archegos e as apostas selvagens de Wall Street

3.A Os produtos derivados- os swaps de retorno total

3.B A história do caso Archegos

3.C Reflexões em torno do caso Archegos

  1. Uma perspetiva global sobre os mercados financeiros

Ao terminar a compilação desta série e sobretudo com os textos do último grupo – sob o título 4. Uma perspetiva global sobre os mercados financeiros [Nota do editor de 25/07/2021: conforme acordado com o Júlio Mota, com o último texto do ponto 3C. Reflexões em torno da Archegos, “6. Archegos vista em inícios de Junho de 2021” finalizamos a série “Tempos de pandemia, de disfuncionamento da justiça, de disfuncionamento dos mercados, de apostas selvagens em Wall Street”. O ponto 4 inicialmente previsto, Uma perspetiva global sobre os mercados financeiros, dada a sua extensão e uma vez que os seus textos não perdem atualidade, será organizado em série separada, que publicaremos oportunamente] – o que nestes textos se lê sobre os mercados financeiros em geral levou-nos a ser atravessados por um sentimento de náusea, com a ideia de que as sociedades desenvolvidas estão a perder o norte das coisas, estão a perder o quadro de valores que as caracterizava como democracias. Num certo sentido dir-se-á que estão a transformar-se em sociedades sem “alma”. Não sou religioso, pelo que sem alma significa aqui sem valores, significa um mundo onde tudo é permitido, e onde tudo é permitido seria então um mundo sem piedade, seria então um mundo em que Deus não existe. Mas o tudo é permitido é apenas para alguns, para a classe de poder económico dominante enquanto para os restantes, em regra, é apenas servir os interesses outros que não os seus. Num mundo sem Deus, ou sem valores para os laicos, a regra é então: tudo é permitido a quem tudo pode e tudo é exigido a quem tem como função servir. E à verificação desta regra, por analogia com a afirmação do romancista russo, chamamos “teorema de Dostoiévski”, o nosso primeiro teorema.

Um laico dirá que o quadro de valores simbolizados por um Deus qualquer que ele seja das velhas religiões é hoje simbolizado pelos reguladores que seriam assim os guardiães da Democracia. Mas pensar assim seria pensar que homens e mulheres que nos Tribunais Constitucionais são os guardiães das Regras da Sociedade, seriam homens e mulheres sem relações sociais, completamente independentes, sem conflitos de interesses, sem enviesamentos de formação, em suma, pequenos deuses, de cuja “fusão” sairia então o BIG Father. Evidentemente, pensar assim e no quadro democrático, que se carateriza por sucessivos equilíbrios criados nas tensões de contrapoderes existentes que são a definição chave da Democracia. é exatamente o oposto do que se pode entender por Democracia.

Relembro aqui o que se passou com o afundamento do Titanic, um paquete de luxo comandado por alguém que saberia muito de regras de navegação, mas não muito da sua razão de ser e que por isso foi incapaz de responder no seu comando a uma situação que não vinha nos livros, a uma situação nova, o iceberg, a posição do paquete, os tempos de resposta para se desviar, para inverter a marcha, ou para chocar de frente contra o iceberg. Mas isso é uma outra história. No que aqui importa, o paquete não dispunha de barcos salva-vidas suficientes. Como nos assinala Barry Ritholtz [2], um analista já nosso conhecido no blog A Viagem dos Argonautas, que tem publicado no Instituto Roosevelt:

“Muitas pessoas morreram, é claro, porque havia muito poucos barcos salva-vidas. Mas mesmo que o transatlântico de luxo tivesse quatro vezes mais, o Titanic ainda teria acabado no fundo do oceano, conduzido por um capitão mais preocupado com a velocidade do que com a segurança – e por esse iceberg.

Esta simples realidade, no entanto, obscurece uma verdade mais ampla.

Antes de afundar, mais de 700 passageiros embarcaram nos 20 barcos salva-vidas a bordo e salvaram as suas vidas. Mais de 1.500 outros morreram. O Titanic tinha capacidade para 64 baleeiras salva-vidas, cada uma com capacidade para 65 pessoas. Totalmente carregados, poderiam ter transportado mais de 4.000 pessoas para segurança – ou cada homem, mulher e criança a bordo. Assim, muitos mais poderiam ter sobrevivido.

Embora a escassez de barcos salva-vidas não tenha causado o afundamento, esta insuficiência após o acidente foi um fator nas 1.502 mortes”.

Os barcos salva-vidas poderão ser tomados como a imagem dos contrapoderes que ao longo dos anos foram sendo anulados ou minimizados nas democracias ocidentais, correspondendo a uma lógica neoliberal que tem sido implantada desde há 30 anos. A filosofia subjacente a este modelo de sociedade “sustentava [e sustenta ainda hoje como se mostra com os casos Greensill e Archegos, entre outros] incorretamente que os bancos podiam regular-se a si próprios, que o governo não tinha lugar na supervisão das finanças e que o mercado livre funciona melhor quando deixado em paz. Este sistema de crenças manifestou-se de formas prejudiciais, incluindo a eliminação da regulamentação e supervisão sobre derivados, permitindo isenções para regras de alavancagem excessiva para um punhado de jogadores e criando legislação perigosa.”

 

Quem supervisiona a supervisão, questionava Frank Partenoy no auge da crise financeira global de 2008? A resposta é simples: ninguém. Simplesmente porque esta supervisão não existia. Não existia ontem, não existe hoje e não creio que vá existir amanhã. Está no ADN do neoliberalismo e não existia porque 2008 era um daqueles momentums em que se poderia afirmar que Deus não existe porque tudo é permitido. E não atravessamos hoje um desses momentuns?  A lógica da construção desta série de textos foi exatamente essa: estamos num desses momentums.

 

(continua)


Notas

[1] Earned Wage Access (EWA) ou Pagamento Instantâneo, Rendimento Ganho, Acesso ao Salário Antecipado, ou Acesso ao Salário Acrescentado, é um serviço financeiro oferecido aos empregados, na sua maioria trabalhadores pagos à hora, tendo acesso a alguns dos seus salários acumulados antes do fim do seu ciclo de pagamentos. Esta tecnologia pode ser implementada de várias formas: carregada automaticamente num cartão pré-pago, depositada via ACH (tipo de transferência electrónica de fundos feita para uma conta corrente ou de poupança de um consumidor pelo seu empregador) num depósito directo existente do utilizador ou, numa abordagem bifocal, os ganhos acumulados são transferidos para uma conta bancária facilitada pelo fornecedor de EWA. Alguns fornecedores de Acesso aos Salários Acumulados têm sido criticados por utilizarem modelos de negócio predatórios e por encurralarem os seus utilizadores em ciclos de dívidas (vd. wikipedia aqui).

[2] Como pequena síntese sobre a revogação da lei Glass-Steagall, veja-se: Barry Ritholtz, Repeal of Glass-Steagall: Not a cause, but a multiplier. Texto disponível  aqui.

 

 

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